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sexta-feira, 8 de novembro de 2019

A ARTE POPULAR EM TRANSPOSIÇÃO ERUDITA

Tanguinho e maxixe
Troquei algumas ideias com minha filha Marta Autran acerca de sua tese de PHD, em vias de ser defendida em Londres, e fiz algumas reflexões além do tema, as sonatas para violoncelo de Camargo Guarnieri.  Mencionei-lhe o maxixe, o ponteio, as danças e até o tango brasileiro (tanguinho) de Ernesto Nazareth na música do tieteense, como fonte de inspiração ou influência. (Na verdade, o tango brasileiro – ou tanguinho - nada ou quase nada tem a ver com o original argentino, título que veio na garupa do sucesso portenho: o “nosso” tango era uma mescla de maxixe, habanera e polca surgida no final do século 19).
Mário de Andrade
Mario de Andrade advogava uma “transposição erudita” da música popular à música de concerto. Mas de forma alguma disse que o compositor clássico deveria fazer “arranjos” de música popular. Falou em transpor a arte de raiz com elaborada erudição - no sentido de profundo saber e técnica apurada (nada contra o fazer música popular com a formação que bem se entender, seja sinfônica, coro ou quarteto).
Flávio Silva (foto Funarte)
Isso me lembrou uma breve e salutar divergência que tive com o pesquisador Flávio Silva (falecido em 8/10/2019) na Concerto, revista de circulação nacional, e faço-lhe aqui um mea culpa. Debitei apenas na conta do Rio de Janeiro a responsabilidade pela invenção do termo “música erudita”, quando da primeira turma de professores da área na Universidade do Brasil - forma de justificar a falta de diploma superior entre os musicistas ingressantes. Chancelaram-lhes o título de detentores de profunda “erudição”(fora da música popular), perfilando-os com os colegas de direito, por sua vez inspirados na beca, toga e capelo dos acadêmicos d’além-mar, os colegas de Coimbra.
Universidade do Brasil (hoje UFRJ)
Se conferi aos acadêmicos da Universidade do Brasil no Rio a origem do termo “música erudita”– que nem os cariocas usam mais, diz-se “música clássica” ou “música de concerto”, como fazia o maestro Eleazar -, por outro lado o saudoso Flávio Silva creditou a origem da expressão a São Paulo, com Mário de Andrade. Não me lembro de Andrade ter utilizado o termo completo – música erudita -, que, de passagem, sequer existe em outros idiomas. Tudo, caro Flávio, pode ter sido uma feliz divergência que nós, sobre a origem da expressão nesse semi-árido mundo da música de concerto, terminamos por convergir, em cumplicidade, entre Rio e São Paulo.
O jovem Camargo Guarnieri
A “transposição” a que se refere Mário de Andrade é a de Marlos Nobre, compositor pernambucano, como foram as de Guarnieri, Villa-Lobos, José Siqueira, Guerra-Peixe, e como faz o jovem conterrâneo petropolitano dele, o meu amigo Ernani Aguiar, entre diversos outros. Uma das sonatas de Guarnieri analisadas por minha filha data de 1931 e soaria contemporânea e ímpar nos dias de hoje. Não é mero acaso senti-la, nessa contemporaneidade quase precoce em relação ao presente, remetendo aos ponteios de viola e violão, às danças e maxixes. Afinal, até os 17 anos Guarnieri foi “pé-vermeio” menino do interior paulista que travou contato com gêneros e ritmos populares. Costume que cedo, inoculado na pele, é benigno e prazeroso, acompanha qualquer artista por toda a vida.
O Lavrador, de Portinari (1939)
Nas artes plásticas, remeto a Cândido Portinari (1903/1962), que nasceu em uma fazenda em Brodowski, São Paulo, e ainda jovem foi estudar na Escola de Belas Artes, do Rio. Esperto, chegou a pintar (de nariz torcido, claro) um óleo acadêmico só para ganhar medalha de ouro e uma estada de dois anos em Paris, período que lhe resultou fundamental na vida. Mas a ótica pessoal de Portinari era moderna, e seu coração brasileiro. Ele retratava o homem do campo, o sertanejo, o retirante, sempre com os olhos com que os via: os rostos carregados de sofrimento, os pés descalços inchados de tanto caminhar no barro seco e nas pedras – “nos intervalos de pedra plantava palha”, disse João Cabral em “Morte e Vida Severina”; as mãos, calejadas pelo peso da enxada, e dilatadas pela tinta carregada do artista. Penso que a “transposição erudita” de Portinari – das raízes profundas à sua visão técnica modernista - se dá por um virtuosismo pessoal, distante da academia, sofisticação que ele transforma dentro de si próprio, tal e qual Guarnieri.
João Cabral
Um pouco antes, neste texto, citei o premiadíssimo João Cabral de Melo Neto (1920-1999), um dos  nossos maiores poetas, ou o maior da língua portuguesa para muitos, como o festejado Mia Couto. Teve formação intelectual exemplar e grande erudição, lia e conhecia de tudo, foi diplomata de carreira. Mas entre a prosa escorreita do Itamaraty e a livre poesia ficou com a segunda, versos sofisticados que lembram um livro de cordel, e mesmo com frequentes rimas simples, pobres ou repetidas apegou-se à tecelagem barroca das palavras, rendendo-se ao surreal por vezes como Portinari no pincel, sem nunca se esquecer dos pés arraigados na terra brasileira.
Capa da primeira edição: como cordel
Vale ler com atenção: “Esse que andando planta / os rebolos de cana / nada é do Semeador / que se sonetizou. / É o seu menos um gesto / de amor que de comércio / e a cana, como a joga (N.do A.: pedra de rio), não planta: joga fora” (em “A cana dos outros”).  A armação intricada de palavras simples dentro de uma confecção muito elaborada, preciosista, vai compondo sobre um ritmo que o leitor precisa acompanhar, às vezes retrocedendo um verso para avançar dois no encadeamento do estilo do autor.
Bom nordestino, João Cabral transpõe à sofisticada poesia a aridez da caatinga, a fome, o desespero. Como em “Morte e Vida”, “fazendo dos dedos isca pra pescar camarão”). 
[homenagem a Flávio Silva]
Foto: Stock


sábado, 20 de julho de 2019

THEATRO MUNICIPAL DE SÃO PAULO - II


Panorama de uma arquitetura musical e política

Não demorou muito para o Theatro Municipal de São Paulo encontrar o prumo de sua veia artística. Companhias de ópera e solistas passavam por seu palco, tradição consoante aos mais finos costumes europeus. A partir de 1930, época de golpe de Estado e revolução, o TM chega à maioridade em meio a turbulências e assume vocação própria, ainda que sujeita à volátil política brasileira.
Camargo Guarnieri
Há que se ressaltar que, àquela altura, o Municipal não servia apenas a apresentações musicais, mas à política em seu aspecto mais saudável, pano de fundo que é deste meu tríptico de artigos. Além de manifestações estéticas como a de 1950 contra o modismo dodecafônico introduzido no país por Koellreutter, tendo o nacionalista Camargo Guarnieri (1907-1993) como bandeira, lá se exibiram bailarinos como Isadora Duncan, o lendário Nijinsky e Margot Fontein, fora vultos do teatro como Jean-Louis Barrault, Vivian Leigh, Cacilda Becker e Marcel Marceau, entre tantos. (Quando perguntei ao próprio Guarnieri sobre o polêmico evento da Carta Aberta lida no Municipal em 1950 contra a invasão do serialismo, o maestro confessou-me, com sua voz característica: “Eu não era contra o dodecafonismo. Como é que eu poderia ser contra algo que eu nem sabia do que se tratava? Eu era contra o Koellreutter!”).
Modernistas reunidos: no alto, à esquerda,
Mário de Andrade
Outros acontecimentos da máxima importância foram a histórica Semana de Arte Moderna de 1922, que chacoalhou o mundo artístico brasileiro, o Centro de Estudos e Defesa do Petróleo e o memorável 1º Congresso Brasileiro de Escritores, suspiro da classe intelectual contra o Estado Novo, além de inúmeros outros eventos. Foi também das escadarias do Theatro que o líder estudantil José Dirceu, em 1º de abril de 1968, à frente de uma aglomeração de manifestantes, conseguiu (a contragosto da cúpula da UNE) dispersar a concentração popular e contornar taticamente a palavra de ordem de outras lideranças, favoráveis a um confronto com a Polícia, um embate de resultados imprevisíveis (PONTES, J. Alfredo Vidigal. 1968, do Sonho ao Pesadelo. SP: OESP, 1998).
Jânio Quadros, prefeito (Estadão)
Incólume após várias administrações e durante quase nove décadas de mudanças políticas, o Theatro Municipal, orgulho paulistano de diversas gerações, passou por mais duas reformas físicas, preservando-lhe a aparência e funcionalidade. A primeira, em 1952, durou três anos, enquanto a segunda foi concluída em peno choque de gestões, iniciando-se com Jânio Quadros (PTB, 1985-1988) para finalmente ser entregue à cidade durante a transformadora administração de diretrizes ideológicas diametralmente opostas, a da prefeita Luíza Erundina (PT, 1989-1992).
Sociedade de Cultura Artística,com o belo afresco de Di Cavalcanti
Fundada em 1912, a Sociedade de Cultura Artística, entidade privada com 650 assinantes, apresentava solistas, orquestras e música de câmara. O Theatro Municipal passou a ampliar os horizontes artísticos da cidade, recebendo artistas nacionais e companhias líricas estrangeiras. O município passou, então, a fazer parte do roteiro das turnês como extensão natural do trajeto do Rio de Janeiro ao Teatro Colón, de Buenos Aires.
Mário de Andrade
Devido aos custos cada vez mais aviltantes de óperas estrangeiras completas, “prá economizar importação de gente”, como disse Mário de Andrade¹, e dada a necessidade de se ter um corpo estável próprio para a execução do amplo repertório operístico-sinfônico, criou-se um conjunto, mais adiante intitulado Orquestra da Cidade de São Paulo (¹DUARTE, Paulo. Mário de Andrade por Ele Mesmo. SP: Hucitec, 1985). Na verdade, tratava-se de um grupo bastante heterogêneo, já que repleto de músicos de formação popular basicamente pertencentes às orquestras das rádios Gazeta e Piratininga. O conjunto passou a ter papel da maior relevância nas temporadas líricas paulistanas, e o Municipal a abrigar seus instrumentistas, em grande maioria de origem italiana, assim como acolher os alunos que esses professores haveriam de formar para sucedê-los nas estantes, além de oferecer espaço para que esses jovens músicos completassem sua formação com a necessária experiência prática.
Maestro Souza Lima
A Orquestra Sinfônica Municipal foi criada oficialmente apenas em 1949, à frente os maestros Souza Lima (1908-1982) e Armando Belardi (1898-1989), e com sua consolidação logo assumiu papel de destaque em São Paulo e no país. Além de Lima e Belardi, teve como regentes Edoardo Guarnieri, Simon Blech, Roberto Schnorremberg, Tulio Colacioppo, Eleazar de Carvalho (em acúmulo com a OSESP), David Machado, Júlio Medaglia, John Neschling, Isaac Karabtchevsky, Jamil Maluf, J. M. Florêncio, Rodrigo de Carvalho e Roberto Minczuk.
Poucos músicos investidos dos cargos efetivos criados para provimento via concursos públicos restavam até 1988, quando foi promulgada a nova Constituição Federal. Os artistas vinham sendo contratados não para cargos, mas para funções criadas pelas leis 9160 e 9168/80, ‘admitidos em função pública’, um artifício para contratar servidores sem concursá-los, tornando o funcionalismo público vulnerável a apadrinhamentos e interesses políticos. Para a OSM, no entanto, logrou-se manter o instituto da seleção pública, que em tudo se assemelhava à parte prática de um concurso público. Em 1992, Erundina sancionou a lei 11.231, criando novos cargos efetivos para a OSM, Corais Lírico e Paulistano, Balé da Cidade e as escolas de Música e Bailado. Dada a resiliência do poder público contra cargos efetivos para artistas nas gestões seguintes, as vagas abertas por lei nunca foram objeto de concurso. (Continua)

                                             ***
[Se você quiser ler a primeira parte, que antecede o presente artigo, o link é: http://blogdohenriqueautran.blogspot.com/2019/07/theatro-municipal-de-sao-paulo-i.html]




quinta-feira, 21 de setembro de 2017

AOS MÚSICOS E AMANTES DA MÚSICA - PARTE II

(Continuação da Parte I, disponível no link à direita)Ideias se desenvolvendo, fui tomado de uma outra intenção, um depoimento sobre a condição do músico: dificuldade de estudar, insegurança profissional, precária organização das instituições e o descaso geral, sem esquecer a visão preconceituosa. Chega a surpreender que até hoje ainda existam música popular de qualidade e orquestras sinfônicas no país, fora a enorme produção de mau gosto imposta goela abaixo pelas mecas televisivas.
Um pouco de brincadeira, curiosidade, reflexão e algo de autobiografia, se além de diversão introduzir elementos musicais e ajudar o leitor a ter um quadro mais claro sobre a profissão do músico, estarei satisfeito. Preocupei-me com a reação de pessoas ou seus familiares, mas o estigma do exótico está tão incorporado à trajetória do músico que em geral o artista se diverte com o folclore criado sobre si mesmo. Qual filho não riu das maluquices do pai músico? E as estranhezas de seu vizinho compositor? Que artista pode autoproclamar-se absolutamente sério? (Em inglês, francês e alemão tocar é to play, jouer e spiel, respectivamente, que também significam brincar).
Professor de música, era natural que eu começasse a esboçar certa preocupação didática. Se for possível distrair o leitor que possui algum conhecimento musical, por que não aproveitar para enriquecê-lo com algumas pitadas de expressões técnicas ou fatos relevantes? Entre a história e a estória, concluí que a própria bibliografia já nos havia legado um ótimo repertório de curiosidades, até mesmo nos livros e compêndios ditos “sérios” sobre História da Música, onde o anedótico se veste com o charme do pitoresco. Procurei ser didático citando nomes, sempre com a preocupação de informar sobre datas, locais, obras, expressões técnicas e mesmo certo tipo de gíria profissional.
Revisitei livros e anotações em busca de informações já incorporadas ao folclore do músico, despertando minha memória oculta. Estórias que havia lido, vivido ou ouvido começaram a pipocar em minha cabeça. Usava um minigravador durante as longas horas que passava diariamente no trânsito congestionado de São Paulo.

Adoniran e o Trem das Onze
Artigos da imprensa, bate-papos, páginas de livros e anedotas, tudo se transformou em fonte. Por isso, longe deste texto o chamado rigor científico, são meras reflexões! (O apresentador de Rádio e TV Flávio Cavalcanti deliciava-se em encontrar erros nas letras das músicas. Quebrou o disco do Adoniran Barbosa (1910-1982) porque foi checar aquele famoso "se eu perder esse trem que sai agora às onze horas, só amanhã de manhã" e, ao vivo, ligou e descobriu que havia mais duas viagens, a próxima às onze e meia. O desastrado rigor científico de Cavalcanti quebrou-lhe o disco ao vivo e se esqueceu de que o trem das onze poderia ser uma mentirinha do filho mimado para despedir-se da amada e voltar para casa).
Mesmo em vista da informalidade do texto, convém lembrar fontes como as cartas pessoais de grandes compositores, reproduzidas em livros como Appassionata, de Kurt Pahlen. No Conselho Municipal de Cultura de São Paulo conheci o operófilo Edson Lima, que me emprestou um livro raro, Risos e Lágrimas no Mundo da Música, de Gumercindo Saraiva, algo como as Curiosidades publicadas nos anos 1950 por Letícia Pagano. Mais lágrimas do que risos, com jeito de almanaque, Saraiva trouxe algumas estórias que pude confirmar, inspirando o bom humor do texto.
O amigo Aylton Escobar tinha um curso de pós de História da Regência, na USP,essencial para o texto sobre maestros. Músico instigante, de cultura e inteligência fora do comum, Escobar foi peça decisiva para a compreensão do regente e tudo o que é preciso para ser um deles. Fora, é claro, saber reger.
Mário de Andrade
Gostaria de ter usado a linguagem irreverente do Mário de Andrade. Infelizmente, faltou-me o talento do mestre, mas espero, inspirado nele, ter criado uma leitura agradável. Mário não freava aqueles pensamentos que às vezes nos assaltam quando lemos sobre a história chamada ‘séria’. Deixei escapar expressões como "coisa de maluco". (O filósofo e musicólogo alemão Theodor Adorno escreve "ridículo" e "o som eunucóide da jazz band com naturalidade).
Sid Vicious
Minhas desculpas aos eruditos encasacados, cujos cabelos poderão ficar arrepiados diante da simples menção a nomes como Sid Vicious, do Sex Pistols, ou Kurt Kobain, do Nirvana, entre outros. Vicious, como músico, foi muito fraco, mas é personagem muito importante para se compreender o comportamento de um artista no chamado fundo do poço.  

As referências desde já serão abandonadas definitivamente, A matéria-prima sobre a qual se fundamenta este texto reside basicamente em minha memória, na vida de músico e professor. Informações foram colhidas nas mais diversas fontes. Fatos do passado podem mesclar-se a outros recentes, e tome situações, causos e anedotas ouvidos em bate-papos ao longo de muitos anos nessa divertida estrada - como os personagens circenses do filme La Strada, de Felini - de músico. O mundo está em crise e o país à deriva, mas a música tem o condão de fazer mais suaves nossos pesadelos - assim como fez Wallace Hartley, do Titanic, que não parou a valsa enquanto o navio afundava.
Homenageio os colegas músicos, que se divertem mas amargam o dito “orquestra é como sítio, só tem duas alegrias: quando a gente entra e quando sai”. No fundo, a lida musical diverte, mas faz sofrer. Cantam em uníssono samba e fado: a gente vai levando, navegar é preciso.

[Terminada a segunda parte da introdução, em breve passarei ao texto propriamente dito - a parte mais divertida das estórias]