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sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

O POETINHA E OS ORIXÁS

Escola Nacional de Música da UFRJ
No dia 5 de setembro de 2019 o jornal O Globo trouxe matéria estarrecedora, que comentei neste espaço. Na UFRJ, conceituada universidade brasileira, estudantes de música adeptos de certa Igreja se recusaram a cantar “Toadas de Xangô”, do ilustre compositor petropolitano Guerra-Peixe (1914-1993) - aliás, de formação católica, autor do “Hino do Colégio Nossa Senhora de Fátima”. Xangô é o orixá da justiça e do poderoso trovão, nos cultos afro-brasileiros, e Guerra pensou no tema como material brasileiro por excelência. Era a fase nacionalista, sob a influência do movimento liderado por Mário de Andrade.
Eleazar de Carvalho e suas "índias", na estreia de sua ópera
O Descobrimento do Brasil, em 1939
Também na música de concerto, Villa-Lobos, o “Índio de Casaca”, compôs sobre ritos indígenas, crenças de origem africana e... um “Magnificat”, de 1958. Francisco Mignone, autor de “Festa das Igrejas”, criou “Babaloxá”, de Babalorixá, que é o sacerdote nas religiões afro-brasileiras. Contemporâneo, meu amigo Ernani Aguiar, nascido na Petrópolis do Guerra e na época ateu, compôs “Cantos Sacros para Orixás” - e três “Missa Brevis”. O paraibano José Siqueira e o cearense Eleazar de Carvalho eram diretores da Ordem dos Músicos do Brasil, fundada em 1960, organização que sofreu intervenção da ditadura em 1964. A diretoria foi defenestrada, Siqueira acusado de comunista, mas Eleazar era notório conservador. O golpe sobre a OMB foi mordaça em sindicatos e organizações de classe (o interventor lá ficou por 40 anos!) Siqueira compôs o “Oratório Candomblé” e “Macumba de Pai Zusé”, com poema de Manuel Bandeira, deísta - acreditava em Deus e ponto.
Dorival Caymmi
Na MPB, Caymmi (“Oração de Mãe Menininha”) e Caetano (“Xangô manda chamar Obatalá Guia”), devotos da Umbanda. Sérgio Ricardo e Ruy Guerra (“Saravá, Ogum, mandinga da gente continua / cadê o despacho pra acabar”), Edu Lobo, de formação católico-jesuíta, é autor de “Arrastão”, com o Poetinha (“ê meu irmão me traz Iemanjá pra mim”). Margareth Menezes gravou de “Faraó, Divindade do Egito” ao álbum “Pontos de Umbanda”.
Vinicius de Moraes, o "Poetinha", e Baden-Powell: a dupla
Vale lembrar o “Poetinha”, neste atual surto de retrocesso cultural que vivemos, fenômeno de que foi reflexo o incidente no coral da UFRJ. Vinicius de Moraes (1913-1980) foi diplomata, homem culto e erudito. Mas a paixão dele, além da poesia – preciosista na difícil arte dos sonetos! -, era a música popular, contando para isso com parceiros do naipe de Jobim, Toquinho e Baden-Powell, este último fabuloso violonista e bom colega de copo e de samba. É da dupla o “Canto de Ossanha” (veja e ouça abaixo). Ossanha, ou Osanyin, é o orixá das ervas medicinais, representado no sincretismo por São Benedito. A gravação original teve arranjo do maestro Guerra-Peixe, por coincidência ou não admirador da cultura afro-brasileira. A obra foi concluída pela dupla na frente de Elis Regina, que a gravou e fez estourar nas paradas: “O homem que diz dou, não dá / porque quem dá mesmo não diz”. Do Poetinha e Baden são também “Lamento de Exu” e “Canto de Iemanjá”. Exu é o orixá da disciplina e da adivinhação, intermediário entre homens e deuses, enquanto Iemanjá é o orixá das águas e filha de Olokun, senhor dos mares.



O Poetinha com Mãe Menininha de Gantois
A dupla Poetinha/Baden-Powell também nos deu “Canto do Caboclo Pedra-Preta” (“Pandeiro quando toca faz Pedra-Preta chegar / viola quando toca faz Pedra-Preta chegar”). “Canto de Xangô” celebra a entidade que vive nas pedreiras: “Sou filho de rei / muito lutei pra ser o que sou / eu sou negro de cor / mas tudo é só amor em mim / Xangô Agodô”. Uma curiosidade: foi o carioca Poetinha, já iniciado, quem levou Maria Bethânia, de Santo Amaro, ao terreiro da Mãe Menininha de Gantois, em Salvador. A cantora ingressou no Candomblé em 1971 e descobriu-se filha de Iansã, uma das três mulheres de Xangô, e de Ogum, o guerreiro, e também de Oxóssi (Oxoce), orixá da caça. Profundamente enraizados na cultura baiana, os cultos afro-brasileiros fazem parte do dia a dia de incontáveis cidadãos brasileiros, e, como não poderia deixar de ser, fornecem rica matéria-prima para muitos artistas.
Grupo Olodum (YouTube)
Em Gil, Caetano, Caymmi e compositores baianos, em geral, a cultura afro-brasileira corre livre nas veias. A própria “Axé music”, popularizada por Daniela Mercury e o grupo Olodum (de Olodumarê, orixá do destino), leva esse nome porque axé, força sagrada dos orixás, é uma espécie de bênção no Candomblé. A dupla Poetinha-Baden passou a afinar com esse mundo. Parecem de real convicção os laços de Vinicius com o Candomblé, ele que era conhecido como “o carioca mais baiano do mundo” e autoproclamado “o branco mais negro do mundo”, e é tanto quanto verossímil que tenha se convertido de fato e de fé. Em “Samba da Bênção”, o Poetinha pede, nome a nome, para que seja abençoado por uma longa série de pessoas conhecidas, para ao final pedir saravá! (salve!), palavra de origem banta.
Maestro Guerra-Peixe: Xangô

Já os chamados “eruditos” da música de concerto sempre viram nas culturas indígena e afro-brasileira matéria-prima fértil para suas obras. Se comungavam ou não de uma ou outra crença, isso não vem lá ao caso, que aqui é o fruir artístico. Interessa, sim, aos estudiosos, visando ao aprofundamento de suas indagações históricas e estéticas.  Mas universidade é lugar de aprendizado via pesquisa, produção, criação, questionamento. O que não se pode é deixar o ambiente acadêmico ser contaminado pelo obscurantismo ou fundamentalismo de qualquer espécie ou origem, seja religioso ou ideológico, e tornar-se uma pedra inamovível no caminho da cultura e do conhecimento. 
Axé, Poetinha!

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