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sábado, 21 de setembro de 2013
AFINAL, O QUE É AFINAÇÃO?
Raul Gil
Em
princípio, penso ser difícil explicar em curtas linhas, talvez apenas ajude a entender
a palavra, que vem dos tempos de antanho até os dias de hoje. Vejo três
aspectos na questão: histórico-culturais, físico-acústicos (que tentam
organizar e justificar os primeiros), e o mais relevante: a questão do gosto
pessoal por onde pretendo terminar este breve texto. Dirijo-me tanto ao estudante
que pode estar lendo sobre o já sabido – mas não custa acrescentar mais alguma
coisa aqui e acolá - quanto ao leigo. Quem é estranho ao meio musical costuma
ser muito mal orientado pela TV, que mais uma vez presta um desserviço à
classe, com seus “especialistas” de concurso de cantores e programas de
auditório a dizer: “você semitonou”. (Do saudoso Flávio Cavalcanti até Raul Gil).
Semitom é a metade de um tom e fica, por exemplo, entre um dó e um ré, enorme espaço
entre as duas notas. Portanto, semitonar não é desafinar, é errar as notas
mesmo.
Vamos à Grécia antiga do político, físico, poeta e
músico Pitágoras (580/572- 500/490 a.C.) cujas experiências consolidaram os
princípios da acústica, parte de nosso limitado conhecimento humano. Pitágoras usava
um artefato chamado monocórdio para demonstrar suas teorias. Como o nome diz, o
artefato de uma só corda podia ser “tocado” com uma espécie de palheta ou
vareta enquanto algum objeto, como uma pedra, era deslocado ao longo da corda
para produzir sons. Com isso, ele conseguiu estabelecer relações matemáticas
entre os sons de sua primitiva escala – por exemplo, a relação de um Lá para um
outro Lá, imediatamente mais agudo, é de 1:2, ou seja, o segundo Lá tem o dobro
da frequência do primeiro.
Heinrich Hertz
Passaram-se
séculos, e um físico alemão, Heinrich Hertz (1857-1894), definiu as relações de
frequência, cuja unidade de medida leva seu nome. Quando se diz que o piano ou
a orquestra afinam em 440 Hertz, refere-se às unidades de frequência
classificadas pelo alemão. Aquela forquilhazinha metálica que os músicos batem
e colocam no ouvido produzem um Lá 440 Hz para orientar a afinação de seu
instrumento.
O círculo (ou ciclo) de quintas
Complicado?
Não, mais simples do que um jogo de damas. Acontece que, voltando a Pitágoras e
Hertz, foi-se descobrindo que essas relações não se “casam”com o ouvido humano:
tanto as do alemão quanto as do grego. Ou seja, por incrível que pareça, a
física teima em não obedecer aos nossos ouvidos (e vice-versa): o ciclo de
quintas de Pitágoras, faz a escala terminar com uma sobrazinha nada pequena: ao
final, se começamos o ciclo em um Dó, onde deveríamos encontrar um Dó mais
agudo, já não é nota de mesmo nome, é outra.
Manuscrito: "Cravo Bem Temperado"
Difícil
entender? Vamos seguir: essa diferença final se chama “coma pitagórica” (homenagem
ao ilustre grego), e para resolvê-la e adaptá-la aos instrumentos o homem
tentou várias formas de afinação, ajustes que possibilitassem aos músicos tocarem
e cantarem em conjunto. Inventou-se, assim, um certo “meantone”,
meio forçado, que possibilitava aos músicos tocarem juntos em duas tonalidades
– imagine, apenas duas dentre as 24 utilizadas, sem falar nas modais, que são
outra história. No período barroco usou-se um certo "temperamento desigual”, sistema adotado
por Bach (daí o “Cravo Bem Temperado”, de 1722, série de peças em que o Mestre
de Capela demonstra ser possível tocar seu “Cravo” e os Prelúdios e Fugas em 24
tonalidades maiores e menores) e Pachelbel (1653-1706), que também fez suas incursões
no sistema. Por fim, veio o "temperamento igual", que acabou sendo adotado em todo o mundo ocidental até os dias de hoje. Mas cuidado: na
Índia e outros países do Oriente e Oriente Médio existem escalas diferentes,
microtonais – como o nome diz, com partículas menores do que as de nosso
sistema (mas isso é assunto para um tratado em vários volumes, não um artigo). Mais
tarde, surge um novo sistema, o “temperamento igual”, que permanece até hoje.
Afinador eletrônico ("tuner")
A
história não resolveu de vez o conflito entre nosso ouvido “pitagórico” e o
sistema proposto pela física acústica. Hoje, qualquer celular pode baixar um
aplicativozinho para afinação de instrumentos (os “tuners”). Resolvido? Não,
nunca. Pode até servir para orientar o estudante ou o músico, mas abre espaço
para uma verdadeira confusão. É que o maldito aparelho trabalha medindo
frequências, como nas ondas de Hertz, sempre nas proporções físicas de 1:2,
para a oitava de Lá a Lá ou Dó a Dó, 2:3 para Dó ao Sol logo acima deste, e daí
por diante.
Pode
até ser útil para o afinador de piano guiar-se no início, mas da metade do
teclado em diante, para cima e para baixo, ele tem de confiar em seu ouvido de
perito, fazendo ajustes sem o aparelho, para que, ao terminar, os agudos não
soem horrivelmente desafinados para baixo e os graves igualmente para cima.
Conclusão? A física não explica nem resolve a questão do ouvido humano, apenas explica
o fenômeno físico. (Lembro-me de uma frase de efeito, se não me engano, do
comentarista de economia Joelmir Betting: “a única coisa que sobe igual ao
índice de inflação é o índice de inflação”).
"La Callas"
Finalizo
na questão do gosto pessoal, como afirmei no início. Violinistas e cantores,
entre outros, “desafinam”, especialmente em determinadas notas da escala que
são “atraídas” por outras, o que agrega um “tempero” agradabilíssimo às suas
interpretações. Os mitos Jasha Heifetz, Maria Callas e Pablo Casals “desafinavam”
com extremo bom gosto, parte que era de suas performances memoráveis. Na música
popular, ninguém desafinou tão bem como Bob Dylan, Mick Jagger, Janis Joplin,
Billie Holiday... e por aqui Cazuza, Maria Bethânia - e Tom Jobim, mestre
maior. O bom gosto antes de tudo.
(Desfrute abaixo do grande
e inconfundível Jobim: Ana Luiza)
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