UniRio |
Comecei meus estudos universitários de
música no início dos anos 1970, na Fefierj (Federação das Escolas Federais
Isoladas do Estado do Rio de Janeiro), hoje UniRio. No corpo docente,
professores como Hélio Sena e Sílvio Mehry, ambos com sólida formação pelo Conservatório
de Moscou, e Marlene França, ex-aluna de Ginastera. No andar de cima, as Artes Cênicas,
laboratório do melhor teatro do século: Arrabal, Ionesco, Brecht.
Fefierj, a "joaninha" e o giroflex |
Na entrada do prédio – de que falarei
adiante -, tempos duros como os cabos das baionetas, às vezes a parada de uma “Joaninha”
(coitado do simpático besourinho rubro-negro, fusca da PM com uma só luz giroflex).
Volta e meia, revista de alunos e professores, preferências recaindo sobre livros
de capa vermelha. Nada que coadunasse com o espírito que mantínhamos: livres
para estudar e criar. Em uma aula de harmonia ao piano, lembro-me de ter apresentado
um exercício para a profa Marlene França em que usei um coral de
Bach. Movi vozes meio tom para cima e para baixo, troquei acidentes e por aí
vai. Uma loucura dissonante, mas ela, após tocá-lo no piano, cenho franzido, ao
invés de me dar um pito levantou-se com um enorme sorriso – o que mais esperar de
uma compositora contemporânea?
UNE, 1947. A garra feminina |
De volta ao prédio: o nome Fefierj surgiu oficialmente
após a fusão dos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, em 1975. Em 1979
passou a chamar-se UniRio, parte da Uferj (Universidade Federal do Estado do Rio
de Janeiro). Um prédio dos anos 1930 com apenas três andares que carregava uma
sina, um carma: fora a sede da proscrita UNE (União Nacional dos Estudantes)!
O prédio, incendiado durante o golpe |
Faço um corte à maneira dos filmes nouvelle
vague, tão ao nosso gosto, à época, para falar da UNE, e depois retornar à
Fefiej. Fundada em 1937, teve participação em todos os movimentos sociais do
Brasil. Na presidência, entre 60 nomes, José Serra, cujo mandato foi encerrado
com o golpe de 1964, Luís Travassos, eleito em 1968 e, líder estudantil de peso, Aldo Rebelo, político que foi ministro em vários governos. O prédio, número
132 da Praia do Flamengo e símbolo da resistência, foi invadido e metralhado no
dia do golpe, 1º de abril de 1964, e logo após incendiado. Enquanto isso, soldados
e milícias radicais tentavam queimar o prédio da Faculdade de Direito com os
estudantes em seu interior, mas foram impedidos pelo heroico capitão Ivan
Proença, que arriscou sua vida entrando no imóvel em meio a tiros e bombas para
salvar os que lá estavam, obrigando seus subordinados à imediata suspensão da
iminente carnificina.
O malogrado congresso de Ibiúna:captura geral |
Durante o período da ilegalidade
determinada pela lei ‘Suplicy de Lacerda’ (1964-79), a representação estudantil
foi pulverizada em diretórios acadêmicos bem vigiados nas universidades. Mas a
Une continuou clandestina, e, por isso mesmo, cada vez mais contaminada por grupos
radicais. Um desastre: o 30º Congresso, com 5 mil estudantes em Ibiúna, 1968, foi
desbaratado pelo número extravagante de pãezinhos e litros de leite
encomendados na cidade do interior paulista. Organização sem planejamento, todos
foram presos, inclusive os líderes Jean-Marc, José Dirceu, Vladimir Palmeira e
Travassos.
Adicionar legenda |
Depois, assume então a presidência Jean-Marc,
que, levado à prisão, deu lugar a Honestino Guimarães, em 1973. Igualmente preso
e, como era frequente, declarado ‘desaparecido’ (leia-se: morto). Naquele
tempo, eram todos estudantes idealistas, rebeldes como qualquer jovem saudável,
mas aos poucos, muitos, foragidos, foram seduzidos pela luta armada do VAR, VPR,
MR-8 e outros. Depois dessas décadas e voltas e reviravoltas, formalidades e proscrição, há quem seja ingênuo o suficiente de pensar que o simples ato de retirar da UNE a prerrogativa de emitir e cobrar carteirinhas de estudante poderia afetar (e, sabe-se lá, neutralizar) a organização.
Depois do ‘corte à francesa’ para
falar da UNE, à Fefierj. O diretor-interventor era o general Jayme Ribeiro da
Graça, egresso do SNI (Serviço Nacional de Informações, órgão da ditadura). Agentes
e alcaguetes infiltrados nas salas de aulas no Rio eram os mais calados, discretos
e misteriosos, e não faziam anotações. Só com o interventor eu tive problemas, e
de ordem musical, a despeito da ignorância dele em artes - achava ‘inferiores’
os instrumentos e a música indígenas. Cheguei a ser ameaçado de ‘virar flauta’,
após discordar dele sobre a ‘inferioridade daqueles instrumentos primitivos feitos
com ossos’.
Escola de Música da UFRJ |
A direção
da Escola de Música da UFRJ não é de generais, mas a história é ingrata: alunos inverteram
seu papel no tabuleiro, encarnando a xenofobia e a intolerância do antigo interventor da Fefierj. Sinal
dos tempos, um retrocesso com troca de papeis. Farta matéria para cientistas
sociais!
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