Tempos de colégio, rígida disciplina
de estudos e leitura. Aprendíamos de tudo na decoreba: português (“Última flor
do lácio, inculta e bela”, recitada sobre um praticável), latim básico; francês, Do Contrato Social de Rousseau (l’homme est né libre, mais partout il est met
dans les fers”, ‘o homem nasce livre, mas por todo lado ele está
acorrentado’); geografia, memorizando e desenhando em mapas mudos as capitais e
rios dos países e estados.
Lord Byron |
Um inglês pesado: Shelley, Byron,
Wordsworth. Mais tarde, como músico, vim a dar real importância àquela bendita
decoreba! Em plena ditadura, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, assinada
pelo Brasil na ONU em 1948 e traduzida em mais de 500 idiomas, da qual os
radicais de hoje só ouviram falar da metade do título: ‘direitos humanos só
para bandidos’, afirmam os ignorantes da história. Um acordo monumental pleno
de ideais, por uma vida melhor em um planeta severamente ameaçado.
O dircurso de Gettysburg |
Memorizamos o Gettysburg Address, proferido
em 18/11/1863 durante a guerra civil por Abraham Lincoln, in memoriam aos
soldados mortos na batalha acontecida na cidade do mesmo nome. Optei aqui pelo
último manuscrito do próprio Lincoln, entre mais de cinco versões do texto. Tradução
que busca ser fiel dentro da minha compreensão, com as devidas anotações:
“Quatro vicênios¹ e sete anos atrás nossos pais construíram, neste continente,
uma nova nação, concebida em liberdade e dedicada à proposição de que todos os
homens nascem iguais”². (1. Um score, ou vicênio, significa um período
de vinte anos, Lincoln se referia a 87 anos antes daquela data. Usei ‘quatro vicênios’,
ao invés de four score no singular. 2. Traduzi ‘todos os homens nascem
iguais’, já que are created, ou, literamente, ‘são criados’, entre nós confunde-se com
criação, educação).
criação, educação).
Prossegue: “Agora estamos envolvidos3
em uma grande guerra civil, testando se aquela4 nação ou qualquer outra,
assim concebida e dedicada, pode resistir longamente” (3. Engaged, ao pé
da letra, seria ‘engajados’, mas o sentido é de empenho, comprometimento – a palavra
também pode significar ‘noivos’. Mas entre nós soaria político. 4. Por ‘aquela
nação’ refere-se à que foi construída pelos antepassados: digo ‘esta nação’, a nossa.
“Nós viemos para dedicar uma porção desta5 terra como lugar de
descanso final para aqueles que deram suas vidas para que aquela6
nação sobrevivesse. É ao mesmo tempo justo
e apropriado que nós o façamos” (5. Para that, no caso, ‘aquela’, uso ‘desta’.
6. Aquela, a dos sonhos. Algumas repetições que em inglês soam naturais foram
trocadas, a bem da clareza em português. E Lincoln, advogado nascido de família
pobre e fervorosamente batista em uma cabana Kentucky, refere-se sempre ‘àquela’
terra, remetendo ao tempo do país erguido pelos seus antepassados e de seus ouvintes.
O estilo tem certo tom de prayer, oração em súplica comum aos grandes
oradores americanos que o seguiram – Rev. Luther King, Jr, e Rev. Jesse Jackson,
por exemplo.
Cemitério Nacional do Soldado, hoje: Gettysburg, Phladelphia |
Aos honrosos mortos na guerra, mais
adiante, ele declara ser melhor “nós aqui dedicarmos devoção cada vez maior à causa
pela qual eles entregaram seu último grande gesto7 de dedicação – a que
aqui estamos fortemente determinados8 para que esses homens não tenham
sido mortos em vão9”. (7. Last full measure, em português, ao
pé da letra, ‘última medida inteira’, seria coisa sem pé nem cabeça: a expressão com a palavra, aqui,
tem sentido de ‘último ato com plena devoção’. 8. Highly resolved,
‘altamente determinados.: To resolve aqui tem sentido de forte empenho, não
de resolver. E ‘altamente com forte determinação’ soaria redundante. 9. Diz: these
dead (...) didn’t die in vain: ‘estes mortos não
morreram em vão’ soaria muito estranho entre nós).
E finaliza: “que esta nação, ‘sob a
proteção de Deus’10, tenha um renascimento11 de liberdade
– e que o governo deste povo, pelo povo, para o povo, não desaparecerá da Terra12.
(10. Lincoln diz “under God”, ‘sob Deus’. 11. A new birth of liberty, li
como ‘um renascimento da liberdade’! ‘Um novo nascimento’, não soa bem entre nós. 12. Shall
not perish from Earth: ‘não perecerá da Terra’? Melhor ‘não desaparecerá’).
Usei o ‘Gettysburg’ como exemplo da
dificuldade de se traduzir um simples texto, que é compreender para contar.
Literatura? Extremamente difícil; poesia? Missão impossível. O ideal seria ler
no original, o que não é acessível a todos, embora seja exigência em cursos
universitários, de pós e pesquisa. Vejo o Gettysburg de Lincoln ao lado de ‘Eu
Tive um Sonho’ (1963), de Luther King, Jr, um desafio pela igualdade, e o de Jesse
Jackson na Convenção Democrata de 1988 (vi na TV e me emocionei); Roosevelt, ‘Deveres
da Cidadania Americana’ e Kennedy (1961), em seu ‘Discurso de Posse’ (‘Não perguntem o
que a América fará por vocês, mas o que juntos poderemos fazer pela liberdade
do homem’). Esses estão entre os mais importantes discursos da história
dos EUA.
Na história, desde ‘A Terceira Filípica’, de
Demóstenes (342 a.C.), o ‘Discurso de Alexandre, O Grande’, na Índia (326
a.C.), até ‘Nós lutaremos nas Praias’ (1940), de Churchill (imagem acima), ‘O Apelo de 18 de
Junho’, por De Gaulle, pela BBC londrina, exortando os franceses a não abandonarem a luta contra os nazistas,
e tantos outros.
JK: discurso de posse |
No Brasil, entre os discursos mis marcantes, o da posse de JK (1956), sob
ameaças de golpe, composto a quatro mãos por Augusto Frederico Schmidt e meu
pai, o escritor Autran Dourado, autor da frase de efeito: ‘Deus poupou-me o
sentimento do medo’; o de Jango na Central do Brasil, grande desculpa para o golpe
de 1964, e finalmente
o do deputado Márcio Moreira Alves, um dos estopins do AI-5: “...cada pai, cada
mãe (...) a presença dos seus filhos nesse desfile é o auxílio aos carrascos
que os espancam e os metralham nas ruas”.
E quem serão os escribas e os oradores de hoje?
Nenhum comentário:
Postar um comentário