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sexta-feira, 15 de novembro de 2019

OS BICHOS E A MÚSICA


Seja em  nosso folclore, no de outras regiões ou países, seja na música clássica, popular ou de vanguarda, a fauna sempre está presente. A associação entre animais e música surge tanto pelo som quanto pela aparência de um instrumento, pela forma da obra ou pela técnica de composição. Caranguejo, do latim cancer, o crustáceo, dá nome a uma dança do fandango do sudeste brasileiro. E é também um tipo de composição canônica – também do latim, canon, que quer dizer regra, e é forma que vem de meados do século 13. Vozes de uma mesma curta melodia vão ingressando em compassos diferentes, até que elas se entrelaçam em uma cantilena sem-fim, como na conhecida brincadeira infantil Frère Jacques.
Serpentão
Cobra é uma dança do fandango paulista em que homens e mulheres, organizados em sinuosas filas (de onde o nome da festa), dançam, sempre acompanhados por violas caipiras e violões. Gilberto Gil canta Procissão em sua religiosidade sincrética - ora católica, ora umbandista, como bom baiano -, lembrando o andar sinuoso do réptil: “Olha, lá vai passando a procissão / se arrastando que nem cobra pelo chão / e as pessoas que nela vão passando / acreditam nas coisas lá do céu”. O serpentão (em francês, basson serpent, ou basse-cor), é um instrumento de sopro derivado do corneto, criado na França do final do século 16. Tinha voz grave e formato de “S”, e reforçava a voz dos baixos nos coros das igrejas. Caiu em desuso no séc. 19.
Pedro e o Lobo é uma obra sinfônica brincalhona e didática de Sergei Prokofiev (1891-1953) cujos personagens são Pedro (violino), seu avô (fagote), o ágil gato (clarineta), o passarinho (flauta) e o pato (oboé). E os caprinos? No Brasil, bode não é coisa boa, pode ser a ressaca de um porre, um azar ou coisa ruim, como cantou Macalé nos anos 1970: “Se amarrar algum bode eu mato / se amarrar algum bode eu morro / mas eu volto pra curtir”.
Depois de crustáceo e réptil, um aracnídeo. A tarântula, ou caranguejeira, é uma aranha peluda que desperta medo, mas seu veneno, no século 19, era usado para fins medicinais. Tarantulismo seria um distúrbio mental, compulsão frenética para dançar, mazela atribuída à picada do bicho. Dança em agitado compasso 6/8 originária de Taranto, na Itália, à tarantela, no século 17, eram atribuídos poderes de neutralizar o veneno daqueles bichos peçonhentos. Pelo velocíssimo andamento, requerem virtuosismo do instrumentista, como nas tarantelas de Liszt, Glière, Saint-Saëns, Sarasate, Bottesini e vários outros.
A divertida tarantella (Brittanica)

Cavalo marinho
Ah, os equinos! Na capoeira, cavalaria é um toque que serve para avisar os jogadores quando a polícia se aproxima. A cavalgata, ou cavalhada, tradição que vai do sul do Brasil à Bahia, é algo entre cena de dança com espadas e duelo com lanças sobre cavalos, representando a luta entre mouros e cristãos durante a ocupação da Península Ibérica. O cavalo-marinho é um festejo pernambucano das comemorações natalinas que vão até o dia dos Reis Magos. Acompanhado por rabeca e percussão, perfila com bovinos: boi-bumbá, o bumba-meu-boi maranhense, ou o boi-calemba do Recife. Mas muito cuidado! Nunca diga boi com abóbora perto de um carnavalesco, a expressão se refere a samba ruim, mal-ajambrado.
Cavalo marinho, o bicho.

Falando em bovinos, cabe lembrar o boi voador, animal empalhado a mando de Maurício de Nassau, governador da colônia (séc. 17), que deu troco  à negativa da coroa holandesa de financiar uma ponte sobre o Capiberibe, entre Maurícia e Recife (o reino neerlandês advertira: verba para ponte “só no dia em que boi voar”). Às suas próprias expensas, Nassau fez  a ponte, mas encomendou um boi empalhado, sob roldanas, que atravessou o rio, na inauguração, como um teleférico. Inspirou Chico Buarque na divertida “Boi Voador”, que liga a anedota de Nassau com o período em que a censura havia proibido falar do boi gordo retido no pasto, retardando o abate: “Quem foi, quem foi / que falou no boi voador / manda prender esse boi, seja esse boi o que for”.
Besouro (Fiocruz)
Há também insetos como o besouro, um coleóptero pesado para as finas asas traseiras que o fazem voar (as dianteiras servem apenas de carcaça). Elas têm de se agitar com muita velocidade para alçar o bicho a voo, fazendo zumbido. O compositor russo Nikolai Rimsky-Korsakov (1844-1908) é autor de uma ópera, A Lenda do Czar Saltan, em cujo terceiro ato o príncipe Gvidon, filho do monarca, pede a um pássaro mágico que o transforme em um besouro, para que possa ir ter com seu pai - a música descreve o voo errático e agitado do inseto. Mas o “Voo” descolou-se da ópera e passou a ser mais conhecido como peça de concerto de grande dificuldade, tendo sido gravado por boa parte de nossos virtuoses do piano e violino. O lendário flautista James Galway usa a técnica da respiração circular (circle breathing), para que o “voo” não sofra interrupção – ele inspira pelo nariz enquanto assopra no bocal o ar armazenado.
(worldwide.org)
O Elefante dá nome a  um solo dos contrabaixos em O Carnaval dos Animais, do francês Camile Saint-Saëns (1835-1921), o quinto dos catorze movimentos que representam diversos bichos. O 13º, O Cisne, é repertório de dez entre dez violoncelistas, em cuja versão para balé a fenomenal Anna Pavlova fez um cisne inspiradíssimo (1905), sublime dança de luta contra a morte até o momento derradeiro. Assista:


Uma tese sobre bichos e música seria um trabalho interminável. Busquei apenas homenagear os animais, nossos companheiros e inspiração. E os melhores amigos!

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