O Estadão publicou, no dia 12/11,
matéria que acende a luz vermelha: “Até que ponto chega o ódio cego e visceral,
quando não patológico” (link da TVT logo abaixo). Palavras do ministro do STF
Celso de Mello, indignado com a alucinada incitação de uma advogada gaúcha:
“estuprem e matem as filhas dos ordinários ministros do STF”. Ela protestava contra a decisão da Suprema Corte pela inadmissibilidade
da prisão em segunda instância, antes de esgotados todos os recursos e o
trânsito em julgado. A advogada se referia, claramente, à decisão que teve como
consequência a soltura do ex-presidente Lula. Sem entrar no mérito da questão, que
é coisa julgada, sirvo-me desse gravíssimo incidente de possíveis desdobramentos
penais para uma digressão a partir do que Mello chamou “fundamentalismo
político”.
O então deputado Moreira Alves, em seu pronunciamento |
Para mim, foi imediata a associação
das palavras da advogada a um discurso do passado, guardadas as proporções e o contexto
histórico. Em setembro de 1968, em Brasília, o então deputado Márcio Moreira
Alves fez um pronunciamento, no Congresso, com teor naïve se comparado ao tom da
advogada contra o STF. Longe de ser uma ameaça criminosa, a fala de Alves foi
uma atitude até pueril naquele momento crítico do país.
UnB, 1968 |
A Polícia Militar do Distrito Federal
havia invadido a Universidade de Brasília (UnB) e Alves subira à tribuna para pedir
o boicote ao desfile de 7 de setembro, que seria um artifício para incutir no povo
um “falso instinto patriótico”. E estendeu o pedido “às moças, aquelas que
dançam com cadetes e namoram oficiais”. O governo Costa e Silva, via STF, exigiu
do Congresso a cassação de Alves, que terminou rejeitada. Foi o estopim: em
dezembro, três meses depois do discurso e seus desdobramentos, era baixado o hediondo
AI-5; Alves fugiu do país, retornando somente com a anistia, em 1979.
Karen Armstrong |
A inglesa Karen Armstrong (1945), formada
em Oxford e ex-professora da Universidade de Londres, conseguiu uma façanha: chegou
a ser freira durante sete anos, no Sagrado Coração de Jesus, hoje leciona
Judaísmo e Treinamento para Rabinos na escola superior Leo Baeck e é membro
honorário da Associação de Estudos Sociais Muçulmanos. Seu precioso livro “Em
Nome de Deus¹” remete a 1492, ano em que, segundo ela, aconteceram três fatos
de suma importância para Cristãos, Judeus e Muçulmanos: “a descoberta da
América, a conquista de Granada e a expulsão dos Judeus da Espanha”, quatro
décadas após a queda de Constantinopla.
Muhammad XII se rende aos "reis católicos" (F. Pradilla) |
Baruch Spinoza |
Com seu cabedal e ecletismo, Karen tornou-se
uma das maiores especialistas sobre o fundamentalismo nas três grandes
religiões monoteístas. O livro traz uma caudalosa bibliografia como suporte,
incluindo textos de Nietzsche e os teológico-filosóficos de Spinoza, e é primordial
para quem quer compreender o fundamentalismo político ou religioso (ou ainda ambos
em convergência) nos dias de hoje.
Embaixada da Venezuela invadida |
Dias após a investida afrontosa da
advogada contra as filhas dos ministros, um grupo de 30 militantes favoráveis a
Juan Guaidó, autoproclamado presidente da Venezuela, invade a embaixada de seu
país em Brasília. Segundo declarou à Revista Forum o deputado Paulo Pimenta,
que lá esteve, não lhe parece que o governo brasileiro tenha relação com o episódio
em si, mas foi notório o acirramento de ânimos após o declarado apoio do Brasil
a Guaidó contra o presidente Maduro. Detalhe importante: todos os invasores venezuelanos
portavam mochilas com celulares, carregadores, baterias e... uma bíblia - o que
nos leva à certeza de que o fenômeno que acontece no Brasil não nos é
exclusivo, está presente em vários outros lugares. Além de cristãos de diversas
ordens e seitas, incluindo as obscurantistas como os católicos “Arautos do
Evangelho” e “Opus Dei”, são tão fundamentalistas quanto alguns núcleos ortodoxos
judeus e muçulmanos, seguindo a ótica equidistante e imparcial de Karen
Armstrong.
Sempre em nome de Deus, é inegável
que o fundamentalismo político e religioso vem avançando no Brasil. Sem qualquer
nexo, a ministra Damares Alves (também
já alvo de críticas do ministro), em um seminário sobre a “cura gay”
(Estadão, 12 de novembro), disse que “o Estado é laico, mas não é laicista”. No
dia 2 de janeiro já havia declarado ao mesmo jornal: “O Estado é laico, mas
esta ministra é terrivelmente cristã”. Laicista é um termo que não está no
VOLP (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa) nem no Houaiss, há uma referência no Priberam . Damares na verdade quis contrapor-se a quem compreende a laicidade, “qualidade
do que é laico ou leigo”. Todas essas palavras que remetem à mesma coisa. Ou seja, têm
a ver com o antigo secularismo e o lema revolucionário francês “Liberdade,
Igualdade e Fraternidade” identificado, em 1905, com a lei que determina a
separação entre Igreja e Estado. Hoje, políticos tentam seduzir certas correntes
religiosas que, além de lhes proporcionarem o apelo hoje sedutor do extremo
conservadorismo, representam números bastante significativos na contabilidade
eleitoral.
A indignação do ministro Celso de
Mello com a provocação da advogada não é só dele, que de pronto resolveu
manifestar-se à luz de sua vasta cultura jurídica e universal, à parte das
possíveis consequências de uma denúncia criminal. Na verdade, ele representou todos
os brasileiros que pensam um país mais justo, mais digno e sob plena democracia.
Quem diria, o discurso de Moreira Alves virou história da carochinha.
[¹AMSTRONG, Karen. Em Nome de Deus
(O fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo). Trad.
Hildegard Feist. SP: Ed. Schwarcz, 2001]
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