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Tanguinho e maxixe |
Troquei algumas
ideias com minha filha Marta Autran acerca de sua tese de PHD, em vias de ser
defendida em Londres, e fiz algumas reflexões além do tema, as sonatas para
violoncelo de Camargo Guarnieri. Mencionei-lhe
o maxixe, o ponteio, as danças e até o tango brasileiro (tanguinho) de Ernesto Nazareth na
música do tieteense, como fonte de inspiração ou influência. (Na verdade, o
tango brasileiro – ou tanguinho - nada ou quase nada tem a ver com o original argentino,
título que veio na garupa do sucesso portenho: o “nosso” tango era uma mescla
de maxixe, habanera e polca surgida no final do século 19).
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Mário de Andrade |
Mario de
Andrade advogava uma “transposição erudita” da música popular à música de
concerto. Mas de forma alguma disse que o compositor clássico deveria fazer “arranjos”
de música popular. Falou em transpor a arte de raiz com elaborada erudição - no
sentido de profundo saber e técnica apurada (nada contra o fazer música popular
com a formação que bem se entender, seja sinfônica, coro ou quarteto).
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Flávio Silva (foto Funarte) |
Isso me
lembrou uma breve e salutar divergência que tive com o pesquisador Flávio Silva
(falecido em 8/10/2019) na Concerto, revista de circulação nacional, e faço-lhe
aqui um mea culpa. Debitei apenas na conta do Rio de Janeiro a responsabilidade
pela invenção do termo “música erudita”, quando da primeira turma de
professores da área na Universidade do Brasil - forma de justificar a falta de diploma
superior entre os musicistas ingressantes. Chancelaram-lhes o título de
detentores de profunda “erudição”(fora da música popular), perfilando-os com os
colegas de direito, por sua vez inspirados na beca, toga e capelo dos acadêmicos
d’além-mar, os colegas de Coimbra.
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Universidade do Brasil (hoje UFRJ) |
Se conferi
aos acadêmicos da Universidade do Brasil no Rio a origem do termo “música
erudita”– que nem os cariocas usam mais, diz-se “música clássica” ou “música de
concerto”, como fazia o maestro Eleazar -, por outro lado o saudoso Flávio
Silva creditou a origem da expressão a São Paulo, com Mário de Andrade. Não me
lembro de Andrade ter utilizado o termo completo – música erudita -, que, de
passagem, sequer existe em outros idiomas. Tudo, caro Flávio, pode ter sido uma
feliz divergência que nós, sobre a origem da expressão nesse semi-árido mundo
da música de concerto, terminamos por convergir, em cumplicidade, entre Rio e
São Paulo.
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O jovem Camargo Guarnieri |
A “transposição” a que se refere Mário de Andrade é a de Marlos Nobre,
compositor pernambucano, como foram as de Guarnieri, Villa-Lobos, José
Siqueira, Guerra-Peixe, e como faz o jovem conterrâneo petropolitano dele, o meu amigo
Ernani Aguiar, entre diversos outros. Uma das sonatas de Guarnieri analisadas por
minha filha data de 1931 e soaria contemporânea e ímpar nos dias de hoje. Não é
mero acaso senti-la, nessa contemporaneidade quase precoce em relação ao
presente, remetendo aos ponteios de viola e violão, às danças e maxixes. Afinal,
até os 17 anos Guarnieri foi “pé-vermeio” menino do interior paulista que travou
contato com gêneros e ritmos populares. Costume que cedo, inoculado na pele, é benigno
e prazeroso, acompanha qualquer artista por toda a vida.
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O Lavrador, de Portinari (1939) |
Nas
artes plásticas, remeto a Cândido Portinari (1903/1962), que nasceu em uma
fazenda em Brodowski, São Paulo, e ainda jovem foi estudar na Escola de Belas
Artes, do Rio. Esperto, chegou a pintar (de nariz torcido, claro) um óleo acadêmico
só para ganhar medalha de ouro e uma estada de dois anos em Paris, período que
lhe resultou fundamental na vida. Mas a ótica pessoal de Portinari era moderna,
e seu coração brasileiro. Ele retratava o homem do campo, o sertanejo, o
retirante, sempre com os olhos com que os via: os rostos carregados de
sofrimento, os pés descalços inchados de tanto caminhar no barro seco e nas
pedras – “nos intervalos de pedra plantava palha”, disse João Cabral em “Morte
e Vida Severina”; as mãos, calejadas pelo peso da enxada, e dilatadas pela tinta carregada do artista. Penso que a “transposição erudita” de
Portinari – das raízes profundas à sua visão técnica modernista - se dá por um virtuosismo
pessoal, distante da academia, sofisticação que ele transforma dentro de si próprio,
tal e qual Guarnieri.
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João Cabral |
Um pouco
antes, neste texto, citei o premiadíssimo João Cabral de Melo Neto (1920-1999),
um dos nossos maiores poetas, ou o maior
da língua portuguesa para muitos, como o festejado Mia Couto. Teve formação intelectual
exemplar e grande erudição, lia e conhecia de tudo, foi diplomata de carreira.
Mas entre a prosa escorreita do Itamaraty e a livre poesia ficou com a segunda,
versos sofisticados que lembram um livro
de cordel, e mesmo com frequentes rimas simples, pobres ou repetidas apegou-se à tecelagem barroca das palavras, rendendo-se ao surreal por vezes como Portinari no pincel, sem nunca se esquecer dos pés arraigados na terra brasileira.
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Capa da primeira edição: como cordel |
Vale ler
com atenção: “Esse que andando planta / os rebolos de cana / nada é do Semeador
/ que se sonetizou. / É o seu menos um gesto / de amor que de comércio / e a
cana, como a joga (N.do A.: pedra de rio), não planta: joga fora” (em “A cana
dos outros”). A armação intricada de palavras
simples dentro de uma confecção muito elaborada, preciosista, vai compondo sobre
um ritmo que o leitor precisa acompanhar, às vezes retrocedendo um verso para
avançar dois no encadeamento do estilo do autor.
Bom nordestino,
João Cabral transpõe à sofisticada poesia a aridez da caatinga, a fome, o desespero. Como
em “Morte e Vida”, “fazendo dos dedos isca pra pescar camarão”).
[homenagem a Flávio Silva]
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Foto: Stock |
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