Em Revolution
(1968), Lennon e McCartney cantam: “Você diz que quer mudar o mundo / (...) todos
nós queremos mudar o mundo / (... e) que vai mudar a Constituição / (...) nós
gostaríamos que você mudasse de ideia / (...) Mas se carrega imagens do camarada
Mao / não vai conseguir nada de ninguém”. Um não ao líder comunista chinês Mao Tsé-Tung
e outro à ideia de alterar a intocável Constituição inglesa: o rock dos Beatles
era apolítico e conservador.
Já em Back in the USSR,
a dupla fala da União Soviética: “Peguei um voo da BOAC em Miami Beach / (...)
cara, eu tive um sonho terrível esta noite / estou de volta à USSR / você não
sabe o quanto é sortudo, garoto”. Viajando pela antiga companhia inglesa, o personagem diz que passou
mal, teve enjoo a noite inteira e se viu de retorno à União Soviética, bradando aos que
ficaram “vocês não sabem como são sortudos, caras”.
Os Beatles receberam a MEB
(Ordem da Maior Excelência do Império Britânico) das mãos da Rainha por levarem
o nome da nação a píncaros tão altos quanto os da vitória na Segunda Guerra. Os fab
four (“quatro fabulosos”) eram bem-comportados em seus terninhos de
alfaiate e cabelos bem aparados.
Depois de 1970, desfeito o
grupo, Lennon tornou-se um “revolucionário pacifista” que sonhava em transformar
o mundo compondo no piano Steinway branco de seu amplo apartamento em um prédio
na frente do Central Park nova-iorquino, em cuja calçada seria assassinado em
1980. Seus protestos iam de palavras de ordem confusas a nudes como o famoso duplo
traseiro, ao lado da esposa Yoko Ono.
Caetano na passeata dos cem mil |
Caetano Veloso atuou em movimentos
pacíficos como a passeata dos cem mil ao lado de inúmeros artistas, intelectuais e religiosos
de diversas crenças, unindo-se a eles no protesto contra a censura e as prisões.
O quatro religiosos em julgamento |
(O AI-5 não poupou da cadeia gente indefesa como um escritor e amigo de meu pai, Hélio Pellegrino, ou um primo, frade dominicano, Carlos Alberto Libânio Christo, ambos por delito de opinião. Com ele, mais três frades - incluindo frei Tito, que se enforcou em um convento em Paris em 1974, vítima de delírios recorrentes após torturas - amargaram la dura cadena. Carlos Alberto “pagou” quatro anos e ao final foi condenado a dois, restando-lhe um impagável “saldo credor”. Já Caetano e Gilberto Gil, após a prisão, partiram para o autoexílio em Londres, de onde, remoendo-se de saudades do Brasil, faziam das coisas de nosso país temas recorrentes para suas músicas).
Cetano no exílio, em Londres |
Nesta altura, lendo o
título deste artigo e as preleções sobre os Beatles e Caetano, o leitor bem
informado sabe do que vou falar. Daí a indispensável breve digressão sobre o grupo
inglês e Caê, um senhor nascido há 77 anos em Santo Amaro, Bahia. Além de
compor e cantar, ele é um leitor voraz, apaixonado por Bandeira, João Cabral,
Jorge Amado e Fernando Pessoa – ícone da poesia lusitana, de quem musicou Os Argonautas: “Navegar é preciso” (atribuído a ele. Link ao final do artigo).
Flávio Cavalcanti |
Em um programa de TV, o
apresentador Flávio Cavalcanti sorteava cartões; vencia o primeiro entre os competidores
que apertasse um botão e cantasse música e letra com a palavra dada. Caetano, disputando
com Chico e outros grandes nomes, era imbatível: sabia todas as letras, mesmo
em outros idiomas. Na vida, sempre que falou sobre literatura Caetano mostrou ser
um leitor contumaz.
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro |
Na primeira semana de
dezembro, matéria da Veja trouxe um novo personagem, Rafael Nogueira, que cometeu
a frase que serve de título ao assunto: “Presidente da Biblioteca Nacional
associa Caetano Veloso ao analfabetismo”. Um disparate sem tamanho e, pior, vindo
de uma pessoa desconhecida, atingindo um artista do porte de Caetano.
Dante Mantovani (O Globo) |
Outro “prócer” da Cultura
é o novo diretor da Funarte, “maestro” (sic) Dante Mantovani: “Soviéticos
infiltrados na CIA distribuíram LSD em Woodstock” (O Globo, 2/12/19) - frase
alucinada, como convém ao tema. Por sua vez, na mesma data o Estadão publicou:
“rock induz às drogas, ao aborto e ao satanismo”. Mantovani, que havia atacado
nossa atriz maior, Fernanda Montenegro, foi empossado no lugar do renomado
pianista Miguel Proença, que era titular do cargo e havia tecido elogios à
artista - logo, foi exonerado (et pour cause, como se diz). Mantovani delira nas
conexões entre “droga, sexo, aborto e satanismo”, ou quando diz que os Beatles
teriam sido “invenção socialista para garotas abortarem” (Revista Época,
2/12/19).
Protesto na Fundação Palmares (foto: Brasil de Fato) |
Sérgio Nascimento, nomeado
presidente da Fundação Palmares, fechou a semana da “nova cultura” negando (detalhe: ele
próprio, negro) a existência de racismo no Brasil, dizendo que a escravidão foi
benéfica e que o movimento negro deveria ser extinto (ibid.). A Justiça mandou
anular a nomeação, mas a União recorreu à AGU.
Richmond, VA |
Os três receberam
orientação direta ou indireta de Olavo de Carvalho, um ex-astrólogo que se autodeclara
filósofo e é chamado de guru por seus seguidores. Sem estudos ou qualquer formação
específica, foi comunista na juventude e hoje, renegando o passado, comete equívocos
considerados juvenis ou simplesmente falhos pelos acadêmicos de história e
filosofia. Dada sua língua ferina, já foi inúmeras vezes réu por crimes de
injúria, alvo de processos por instituições, personalidades e jornalistas. De seu Bunker-clausura
em Richmond, Virginia, um dos estados do historicamente conservador sudeste dos
EUA, elucubra ideias e teorias radicais, excêntricas e polêmicas, objetos de
adoração de seus obstinados defensores, que creem estar seguindo um gênio.
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