Agrupamento de músicos na Roma antiga. |
Bem antes do que se poderia supor, os
agrupamentos de músicos em guildas, associações e pequenas máfias corporativas,
familiares ou de compadrio já existiam – e isso, muito antes do surgimento do capitalismo,
sistema em que a competição acirrada cria, em cada nicho, armaduras de autodefesa
e, com elas, hostilidade a estranhos. Sendo o dinheiro primordial à subsistência,
é necessário agregar-se para viver da nobre arte.
Árvore genealógica de Bach, plena de músicos |
A família de Johann Sebastian Bach
era tão numerosa que, entre os séculos 17 e 18, na cidade de Erfurt, foi selado
um protocolo estabelecendo multa de cinco táleres (moedas de prata da época)
para quem contratasse um músico em cujo sobrenome não constasse Bach, de festas
de casamento a funerais (ironizando, Bach em alemão quer dizer riacho,
sem cuja água peixe não nada – e em Erfurt
músico não trabalhava). A máfia da cidade era poderosa a ponto de obter do
governo uma multa para um conhecido líder musical, Tobias Zabelitzky, que desafiou
o protocolo e prestou serviços a outra guilda.
Igreja de Santa Maria, em Lübeck |
A disputa entre os músicos na época
era tão acirrada que por uma bom emprego valia até casar-se com a filha do Kapellmeister
(mestre de capela da cidade). Na aprazível Lübeck, no norte da Alemanha, Händel
e Mattheson amargaram perder uma boa vaga porque não simpatizaram com a filha
de Buxterhude, um respeitado organista muito admirado por Bach, que com
frequência viajava para vê-lo tocar (talvez o empecilho para uma possível união
tenha sido a idade um pouco avançada e poucos atrativos da filha do chefe).
Dieterich Buxterhude era poderoso e teria, ele próprio, obtido sua posição
casando-se com a filha de Franz Tunder, a quem sucederia na função.
Guilda medieval |
Os músicos agregados às máfias eram
bem organizados: tinham uniformes e distintivos próprios, a fim de não serem
confundidos com membros de outras guildas. Na Alemanha barroca, a profissão
tinha seus rígidos monopólios, sendo as pagas fixadas entre contratantes e
líderes dos grupos.
Anúncio da estreia de Benvenuto Cellini, de Berlioz |
Esse tipo de organização não era
privilégio dos alemães. Também existia na Itália, mas com certa liberalidade
músicos podiam aqui e ali pular a cerca e
“dar uma palinha” em outra guilda. Benvenuto Cellini, ainda no século 16, era um artista tão completo que o francês Berlioz, dois séculos depois, dedicou-lhe uma ópera cujo título traz o nome do italiano. Além de ourives, pintor e projetista, Cellini era flautista, cornetista, cantor e compositor; famoso, transitava livremente em diversas guildas. Não bastasse a música, era entalhador de marfim e construtor de alaúdes, címbalos e diversos tipos de viola. Apesar disso, o trânsito de seu pai na corte de Piero de Medicis certamente o ajudou a obter permissão para o acúmulo de cargos.
“dar uma palinha” em outra guilda. Benvenuto Cellini, ainda no século 16, era um artista tão completo que o francês Berlioz, dois séculos depois, dedicou-lhe uma ópera cujo título traz o nome do italiano. Além de ourives, pintor e projetista, Cellini era flautista, cornetista, cantor e compositor; famoso, transitava livremente em diversas guildas. Não bastasse a música, era entalhador de marfim e construtor de alaúdes, címbalos e diversos tipos de viola. Apesar disso, o trânsito de seu pai na corte de Piero de Medicis certamente o ajudou a obter permissão para o acúmulo de cargos.
Basílica de San Marco, em Veneza |
Em Veneza, embora fosse possível
atuar em guildas diferentes, os músicos da igreja de San Silvestro rivalizavam
com os da San Marco na disputa pelos trabalhos musicais. E havia divergências contábeis
sobre o que seria objeto dos cachês: apenas a cerimônia ou também os festejos
posteriores, como bufês ou jantares.
Claudio Monteverdi |
O célebre compositor Claudio
Monteverdi (1567-1643), pioneiro no gênero operístico, acumulava as funções de
mestre de capela na San Marco com as de músico oficial do doge (espécie de juiz
plenipotenciário escolhido por votação, em Veneza). Após uma discussão com um
ressentido e furioso músico, chegaram às vias de fato e o mestre quase teve sua
barba arrancada.
Trompa da caccia |
Dentro das próprias guildas, as
funções, por classes de instrumentos, tinham suas especialidades: os saquebutes
(antigos trombones) eram mais afeitos a funções religiosas: juntos, tinham o
poderoso apelo de um órgão de tubos. Trompetes e clarins eram palacianos,
serviam à pompa e circunstância dos poderosos, enquanto as trompas, originárias
da tradição dos caçadores (por isso mesmo, da caccia), tinham
seus tubos enrolados para possibilitar aos músicos carregá-las a tiracolo, em
seus cavalos. Por causa dessa mobilidade, prestavam-se a outras funções além de
sinalizadores da caça. O shawm (antecessor do oboé), com seus agudos
cortantes, anunciava de cima das torres quando alguém se aproximava do burgo. Mas
os trompetistas, com trânsito nas cortes devido ao privilégio de suas funções
palacianas, tinham regalias especiais e, claro, cachês mais altos nos serviços.
Esquadra inglesa |
Havia disputa até “no macro”, entre
países, pelo domínio da música: no séc. 17, a Inglaterra era uma grande
potência, e singrando mares invadia e conquistava terras em todos os cantos -
de meras ilhotas a continentes - onde pudesse fincar as âncoras de seus navios.
A armada real levava também valioso auxílio à consolidação de seu poder: lições de economia, agricultura e arte, com
destaque para a música. Trazia na bagagem farto material de Henry Purcell,
organista da Royal Chapel e da Westminster Abbey, que compunha em todas as
formas e estilos. Mesmo assim, a coroa inglesa nunca chegou a ameaçar a
hegemonia musical dos alemães, muito menos a dos italianos. O escritor francês
Stendhal (1783-1842) chegou a afirmar que parecia ser proibido compor em lugar
que não fosse à sombra do Vesúvio!
O Vesúvio, próximo a Nápoles |
[Fontes: DOURADO, Henrique Autran. Pequena Estória
da Música. SP: Vitale, 1999. RAYNOR, Henry. História Social da Música.
RJ: Zahar, 1981]
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