Grupo Oficina: Roda Viva |
Janeiro de 1968. Estreava no Rio a
peça Roda Viva, de Chico Buarque, que com as alegorias de sempre traduziu em
desejo de mudar toda a angústia daqueles tempos: “...a gente quer ter voz ativa
/ no nosso destino mandar / mas eis que chega a roda viva e / carrega o destino
pra lá”. E lá ia “roda mundo, roda-gigante, rodamoinho, roda pião”... Tudo,
tudo a roda levava: sonhos, ideias, pessoas.
Luther King, Jr.: I had a dream |
Naquele ano, em Memphis, EUA, a roda
levou Martin Luther King, Jr., carismático líder negro norte-americano que em
1963 proferiu um dos mais belos discursos da história, “I had a Dream” (“Eu
tive um sonho”). A contralto gospel
Mahalia Jackson interrompeu-o da plateia com sua voz possante: “conte-os sobre o
sonho, Martin!” King abandonou a leitura e, como os bons oradores americanos da Igreja de Lutero, improvisou com verve única frases inesquecíveis.
Cortejo do enterro do jovem Edson Luís |
Junho de 68. Cinco anos após o assassinato
de seu irmão John F. Kennedy, tomba o senador Robert Kennedy, do clã da
matriarca Rose, condessa pelo Vaticano, ambos vítimas da histórica disputa
política, da máfia ou da guerra fria. Naquele mês, no Rio de Janeiro,
marchou a “passeata dos cem mil”, um protesto pacífico contra a censura e a crescente
violação de direitos. A roda levara o estudante Edson Luís, 18 anos, abatido a
tiros pela polícia no restaurante Calabouço, centro do Rio. Para o enterro, no
Cemitério São João Batista, o esquife foi erguido em revezamento durante quilômetros,
a multidão bradando o mantra “mataram uma criança, podia ser seu filho”.
Cota Silva anuncia o AI-5 |
A morte do jovem estudante, a
passeata de artistas, intelectuais e religiosos de braços dados com o povo e o discurso
do deputado Moreira Alves, contra a invasão da Universidade de Brasília, foram
os três fios que, unidos, acenderam o estopim para que no dia 13 de dezembro fosse
detonada a promulgação do AI-5, que
fechou o Legislativo, impôs censura total, suspendeu direitos e concedeu
poderes imperiais ao Presidente da República.
Daniel Cohn-Bendit ("Dani, Le Rouge" |
Esses acontecimentos, somados os ecos
do movimento estudantil na França sob a égide do franco-alemão Daniel
Cohn-Bendit, mais a semente da revolução pop que germinava e floresceu no ano
seguinte em Woodstock, encontraram um mundo no ápice de um ciclo de ebulição
criativa.
Jobim e Chico, Cynara e Cybele |
Naquele cenário, 1968 trouxe pérolas da
MPB como “Baby”, de Caetano, encomenda de Betânia para o irmão; Retrato em
Branco e Preto”, de Jobim e Chico, um lamento apaixonado: “o que é que eu posso
contra o encanto / desse amor que eu nego tanto / evito tanto...”. “Sabiá”, da mesma dupla, é uma doce canção de
saudade - ou uma ode ao devaneio do retorno do exílio: “Vou voltar / sei que
ainda vou voltar / para o meu lugar”. O Maracanãzinho tremeu ante apupos e protestos
da plateia do 3º Festival Internacional da Canção: a massa não se conformava
com o primeiro lugar dado a “Sabiá” em detrimento de sua favorita, “Pra não
dizer que não falei de flores”, de Vandré, que se tornaria hino político da
juventude.
E quantos bons sambas nos deu 1968! Destaque
para o genial “Samba do crioulo doido”, de Sérgio Porto, samba de enredo que
nunca foi à avenida mas desfilou pelos ouvidos do país inteiro: “Foi em
Diamantina / onde nasceu JK / que a princesa Leopoldina / arresolveu se casá / Mas
Chica da Silva / tinha outros pretendentes / e obrigou a princesa / a se casá
com Tiradentes”.
A MPB pós-bossa começava sua fase
universal, livre de velhos conceitos e imersa em ricas influências. “Tropicália’,
de Caetano, foi a pedra fundamental: “O monumento é de papel crepom e prata /
os olhos verdes da mulata” (link no final do artigo). Surrealista, dadaísta, antropofágico,
Caetano também compôs “Superbacana”, enquanto Jobim lançava “Wave” (“Vou te
contar”), de melodia e harmonia bastante sofisticadas. Gilberto Gil, de braços
com o tropicalismo, lançou “Soy loco por ti, America” (“...soy loco por ti de
amores”).
Por Hélio Oiticica |
No balanço, “Nem vem que não tem”, de
Carlos Imperial (“Nem vem de garfo que hoje é dia de sopa / (...) nem vem de
escada que hoje o incêndio é no porão”); a Jovem Guarda chega de roupa nova com
“Vesti Azul”, de Nonato Buzar, enquanto Marcos e Paulo Sergio Valle falavam de música e luta
social em “Viola enluarada” (“... no sertão é como espada”). Nas artes
plásticas, Andy Warhol, nos EUA, e Oiticica, no Brasil; na filosofia, Sartre,
Marcuse, Adorno, Hubermas; no teatro e cinema, Gláuber, Zé Celso, Pasolini,
Godard. Na poesia e prosa, Capinam, Drummond, Bandeira, Cabral e Clarice, a
quem Caetano homenageou (“Que mistério tem Clarice”). O Pasquim era gestado enquanto
questionamentos, inquietações e medo pululavam. Criava-se, e como se criava!
Se o ocaso do Império Romano viu a
“Idade das Trevas”, também houve o Renascimento e o “século das luzes” (séc.
18). Aconteceu também um longo ciclo, barroco-classicismo-romantismo. No século
20 eclodiram duas guerras mundiais, enquanto ideologias extremistas avançavam. Seria
má-fé postular que foi o mal que levou o ciclo da cultura ao pico ou creditar
ao tsunami repressivo mundial em 1968 a explosão criativa em todos os níveis. Só
entristece saber que hoje, no Brasil, com guinadas e retrocessos de toda ordem, mas
dentro de relativa normalidade democrática, navegamos na rasante da maré, quase
a seco, no ponto de tangência mais baixo de um ciclo.
SEVERIANO,
Jairo. MELLO, Zuza Homem de. “A canção no tempo”. Vol. 2. SP: Ed. 34, 1998. SOUZA,
Tárik de. “O som nosso de cada dia”. P. Alegre: L&PM, 1983. MOURA, Roberto.
“MPB”. Sp: Vitale, 1998.
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