Perder peso, repete-se sempre. Mas se
aquele “a mais” já estava lá no ano anterior ao passado, não o há que daquele lá atrás se
perder neste, se nada no de ontem se ganhou (embora o “extra” a dever valha ser
queimado). Aos que, ao revés, quilos lhes faltam - esquálidos, desvalidos, esfomeados,
modelos anoréxicas e bulímicas, viciados nas pedras do caminho -, ganhar peso é
de bom voto. Cortar os cabelos - ou, diz melhor o inglês, “ter os cabelos
cortados” -, é volta-face que se transubstanciaria em bom espírito e humor, e, quem
sabe, a ansiada conquista amorosa? Ensejarão as novas madeixas ou desenhos nos
cabelos novos olhares ou rememoranças de antigas paixões? “Não sei se você
ainda é a mesma / ou se cortou os cabelos / rasgou o que é meu”¹.
(GGN) |
Roupa nova faz falta, até a do Rei o
rato roeu! Uns panos novos para nova fase, um elã arremedado para sentir-se rejuvenescer
(apesar do ano a mais vivido); aos que amargam até a falta de um velho paletó ou
rotos farrapos, que sejam guarnecidos do que lhes proteja do rigor da chuva, do
frio ou do “serenô da madrugada”, que “não deixou meu bem dormir²”.
Um carrão zero, para os mais
abastados, um iate para os milionários! “O barco, o automóvel brilhante³”, só porque
entre ricaços “navegar é preciso³” no mar das aparências. Mais justo seria tê-los
a menor, com menos luxos e narcisismos; aos outros, algo simples e útil, um
saveiro para pescar, uma bicicleta para fazer entregas, um caderno para anotar
as contas? “Mais que isto, só Jesus Cristo, que não sabia nada de finanças nem
consta que tivesse biblioteca”³). Venha a esperada justiça social, trabalho de
corações e mentes que se preocupam com ela: “Bem-aventurados os que têm fome e
sede de justiça, pois serão saciados”4. Aos que foram perseguidos, ergam-se,
eleitos, “por fazerem a vontade de Deus, pois deles é o Reino dos Céus”4.
Às mulheres caberá acolher o ano novo,
nos conformes de seu uso e costume, depilando as pernas para poderem levantar
as saias e saltar quando chegam as ondas; às
humildes, pernas pra que te quero, basta colocar os pezinhos na água fresca do
mar que traz, espumando em vaivém, o novo dia, a plena madrugada; às adeptas de
cultos que reverenciam o mar e sua rainha, apenas pés calejados da labuta do
ano e saúde, que agradecem em suas danças e oferendas; recolhem flores murchas da
água enquanto o arrastão despeja sua colheita viva na areia da praia, ao sol
raiar: “ê, puxa bem devagar / ê, ê, ê, já vem vindo o arrastão”5. É
a rede descarregando em abundância como fosse o milagre dos peixes, rito de
cada dia desde sabe-se lá quando: “Eles não falam do mar e dos peixes / nem
deixam ver a moça, pura canção / nem ver nascer a flor, nem ver nascer o sol”6.
"Beggars Banquet" (Banquete dos Mendigos), LP dos Stones |
Ah, o bendito pão de cada dia! Uma
bela cantina para os afogados na ressaca dos copos virados nas festas de Baco e
Dionísio; os Severinos, “fazendo “dos dedos isca pra pescar camarão”7;
aos que buscam nas latas dos becos o pão do dia e às vezes apenas o único
sustento: que recebam dele seu mais recôndito milagre, e por ele louvarão,
crédulos, ao Senhor.
A Última Ceia (Da Vinci) |
(Vuelo Pharma) |
Que vingue o novo e traga a beleza
dos dias melhores! “É belo porque o novo / todo o velho contagia. / Belo
porque corrompe / com sangue novo a anemia”7. Abram portas e
janelas, deixem o sol penetrar, recebendo-o de braços abertos qual aquele, gigante, que os ergue
sobre a Guanabara. Novo é a visita que se espera há um ano, carece recebê-la, assuntar,
servi-la, agradá-la. Venha desatar nossos nós, estancar nossas dores, pruridos,
as feridas e mesmo as gangrenas, as angústias dos feridos, o sofrimento de
tantos (impossível apagar chagas velhas, pois que cicatrizes). “Bem-aventurados
os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus”4.
Guignard: Natureza Morta |
Passar o pano no ódio, no racismo, na
xenofobia, na misoginia, na homofobia, nos preconceitos e no desrespeito a culturas,
crenças e livre expressão. Apagar a lousa em que foram arquitetados os
pensamentos e atos mais nefastos e cruéis ao homem e à mãe-natureza - que a natureza-morta
sejam apenas as pinceladas de lindos vasos de flores e frutas, tintos pelo óleo
de habilidosos pintores.
Bom ano para islamitas, judeus –
incluindo os sefardi, antepassados de boa parte de nós -, budistas, cristãos de
todas as igrejas, xintoístas, taoístas, umbandistas, kardecistas, os temerosos
ao Tupã-trovão, e (ave, Francisco!) abençoados sejam também os ateus, agnósticos e
os que têm dúvida de fé, porque todos são filhos de Deus. Que as religiões não se
submetam como massa de manobra aos poderosos, e que estes não se sirvam dos que
creem para arrimo das muralhas de seu poder. Que o novo entrelace as mãos de
nossos negros, mulatos, mamelucos, brancos, caucasianos, japoneses, chineses,
coreanos, latinos imigrantes ou refugiados, indígenas de todos os matizes (aqui
desde muito antes de nossos antepassados): guaranis, caiovás, mbys e ñandevas;
ticunas, os caingangues kamé e kaiurukré; os macuxis, os terenas, os
guajajaras; os ianomâmis, os xavantes, pataxós, potiguaras. Todos, apesar de
“humilhados e ofendidos”8, suas terras arrasadas por grileiros e
desmatadores sob a vista grossa, proteção ou mãos dos poderosos; com frequência
cruelmente assassinados, ainda se multiplicam em ritmo dobrado: 3,5% para 1,6%
do resto do país9. Um novo ano novo!
[1: Chico
Buarque. 2: Folclore brasileiro. 3: Fernando Pessoa. 4: Mateus, 5: 3-12 (JFA). 5:
Vinicius/Edu Lobo. 6: Milton/F. Brant. 7: João Cabral de Melo Neto. 8: Romance
de F. Dostoiévski. 9: IBGE]
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