Estácio de Sá (foto Museu da República) |
“Nasci no Estácio / fui educado na
roda de bamba / fui diplomado na escola de samba / sou independente, conforme
se vê” (“O ‘X’ do problema”). Em 1910, no Estácio de Sá, um menino nascia a
fórceps, parto delicado, com uma hipoplasia para complicar. Franzino, o queixo
atrofiado moldou-lhe o perfil, a marca registrada. Na pia, foi batizado Noel. Aos
21, por pressão da família, ingressou na Faculdade de Medicina (hoje da UFRJ), mas sua
educação e diploma vieram mesmo das rodas da boemia e do samba. Abandonado o
curso, a música era carreira e ambiente: o Estácio foi o berço da Deixa Falar,
primeira escola de samba, e Noel era apaixonado pelo ritmo.
Noel e Vadico |
O Rio dos anos 1920, até a morte de
Noel por tuberculose, em 1937, foi o cenário em que o sambista ergueu sua vasta
obra: em pouco mais de dez anos de atividade compôs perto de 300 músicas. Fugia
dos parnasianismos do passado, e seu bordado de frases, palavras e rimas são de
uma simplicidade que só os gênios conseguem elaborar com tanta beleza. Era amoroso
por natureza, mas combativo quando queria. Parceiros e letristas, quando não
ele mesmo o poeta, afinavam com suas concepções: Vadico, principalmente, e João
de Barro, o Braguinha.
Noel (Pinterest) |
(Conta o folclore que Noel, já tuberculoso,
estava em um bar da Lapa, após os funerais de sua mãe. Vestia uma camisa
florida, até que alguém passou e o reprendeu, deveria estar de luto!
Rapidamente o compositor, bom no taco que era, saiu-se com essa: “Luto preto é
vaidade / neste turbilhão de dor / o meu luto é a saudade / e saudade não tem
cor”. Noel também foi visto bebericando conhaque e tomando cerveja, e alguém o alertou
que, tuberculoso, não deveria beber. Noel respondeu que seu médico realmente o
havia proibido, e o advertiu: se não conseguisse resistir, que fosse
pouco, e muito bem alimentado. “Gosto de conhaque. E como dizem que cerveja alimenta...”)
Operários, por Tarsila do Amaral |
O pai do novo samba fazia a crônica
do Rio, como na singela “Três Apitos”, imortalizada mais tarde por Gal Costa:
“Quando o apito da fábrica de tecidos / vem ferir os meus ouvidos / eu me
lembro de você”. Segue-se uma pitada - para a época – de crítica social, retrato
da nova revolução industrial brasileira, como fez a artista plástica Tarsila do
Amaral em sua obra “Operários”: “Você que atende ao apito / de uma chaminé de
barro / por que não atende ao grito tão aflito / da buzina do meu carro”.
Noel, com o garçom: imortalizado em Vila Isabel |
Bom cronista, Noel retratava o
cotidiano do Rio de Janeiro fosse na Vila Isabel, no Estácio ou na Lapa boêmia.
Da primeira, fez o quinhão carioca na sua ótica da divisão produtiva nacional
em “Feitiço da Vila”: “...São Paulo dá café / Minas dá leite / e a Vila Isabel
dá samba”. Descrevia o cotidiano com perfeição, a exemplo de “Conversa de
botequim”, parceria com Vadico: “Seu garçom, faça o favor / de me trazer
depressa / uma boa média / que não seja requentada / um pão bem quente / com
manteiga à beça / um guardanapo / e um copo d’água bem gelado”.
As harmonias de Noel eram simples,
sem encadeamentos complexos ou dissonâncias, e ele as trabalhava com invulgar
preciosismo. Bom exemplo é a alternância de tonalidades maiores e menores, contrastes
entre sentimentos alegres ou tristes, como em “Último desejo”, em tom menor:
“Nosso amor, que eu não esqueço / e que teve seu começo numa festa de São João
/ morre hoje sem foguete / sem retrato, sem bilhete / sem luar, sem violão”. Já
em tom maior, a falsa alegria que logo cede à tristeza, à realidade que o autor buscou fantasiar:
“Se alguma pessoa amiga / pedir que você lhe diga / se você me quer ou não” – mas
a melancolia foi mais forte, e se impôs em tonalidade menor: “Diga que você me
adora / que você lamenta e chora / a nossa separação”.
Com Nana Caymmi
Compositor genial, ninguém pode negar,
talvez nosso sambista maior. Queixo quase ausente, chapéu, cigarro no canto da
boca mesmo quando cantava. Suas gravações originais, dada a precariedade dos
equipamentos da época e provavelmente a anomalia maxilar, registraram aquela voz
anasalada, nada suave. Todo artista brasileiro que se preza gravou Noel, de Jobim a Duardo Dusek, de Nélson Gonçalves a Luís Melodia, de Aracy
de Almeida a Gal Costa. Mas era João Nogueira quem cantava Noel com maior admiração,
de quem dizia ser o maior sambista de todos os tempos.
A turma da bossa nova |
Pelo intimismo e a influência que
exerceu por décadas, mesmo após falecido, Noel poderia ser visto como um pai da
bossa nova. À frente algumas décadas, faltavam apenas a influência do jazz e do
impressionismo francês, como Jobim, e a batida do João Gilberto. Deu régua e
compasso a Chico Buarque, especialmente nas canções do início, e até surge, lembrança
importante, em “Rita”: “...levou seu retrato, seu trapo, seu prato, / que
papel! / Uma imagem de São Francisco / e um bom disco de Noel”.
César Ladeira |
César Ladeira, radialista famoso que
recebeu o epíteto “a voz da revolução constitucionalista”, autor de cognomes
como “a pequena notável” e “o rei da voz”, para Carmen Miranda e Francisco
Alves, deu a Noel Rosa o título de “filósofo do samba”. Noel sabia ser bom de
disputa, mas sem perder a sutileza e a sabedoria de um “filósofo”. Exemplo foi
a riquíssima contenda musical com Wilson Baptista, quando lhe deu essa de troco:
“Quem é você que não sabe o que diz / meu Deus do céu, que palpite infeliz /
(...) pra que ligar a quem não sabe / aonde põe o seu nariz / quem é você, que
não sabe o que diz”.
Pai da MPB, filósofo do samba, esteio e arrimo da bossa nova, salve Papai Noel Rosa!
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