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Difícil
mesmo é escrever sobre o pai da gente. O apelo emocional exige cuidado, para
que a escrita não se dobre à paixão - mesmo que seja falando da literatura de um
escritor acima de qualquer suspeita, sobre quem tantos já falaram. Recordar é
preciso, especialmente para os que tiveram felicidade de com ele aprender no
dia a dia, no almoço, no jantar, ter o privilégio da companhia nos finais de
semana, quando disponíveis.
A Monte Santo antiga |
Em um
18 de janeiro como este nasceu em 1926 um menino, capiau de Patos de Minas, batizado
Waldomiro (não usava, preferia só Autran Dourado, já complicado o suficiente). Muito
cedo, foi levado por seu pai, Telêmaco, juiz de direito, com a mãe Alice e irmãos,
para Monte Santo, perto da divisa de onde à noite se vislumbra a suave tenda das
luzinhas da paulista Mococa. Ali, foi criado moleque da terra, “menino curió”,
dizia, e como a cidade era muito pequena, já andando com pernas próprias deu de
dividir seu tempo com São Sebastião do Paraíso, quase três vezes maior. (Ainda
pequeno, uma senhora analfabeta pedia-lhe que lesse trechos de um livro ilustrado
sobre a I Guerra. Não tinha “sabência” para ler aquilo, então criava sobre o
que entendia. Aí talvez o começo de tudo).
Como
se as duas cidades ainda não lhe bastassem, aos dezessete foi para a capital mineira
descobrir um novo mundo, cidade grande que o acolheu com seu belo horizonte,
nome com que fora batizada. Aprendeu taquigrafia – a espanhola, mais rápida,
explicava -, que iria acompanhá-lo a vida inteira (em cartõezinhos, resumia nos
curtos sinais as ideias de um novo livro).
UFMG |
Em BH,
estudou Direito na UFMG, para a qual já idoso viria a dedicar em testamento
todo seu acervo de mais de cinco mil livros - era o que cabia em casa, rodeando
as paredes de seu escritório, corredores, sala e quartos dos filhos, até na
parte de cima dos armários embutidos.
Tudo agora recompõe na universidade o ambiente
caseiro de que mais gostava, aquele onde sua obra alcançara plena maturidade. Uma
espécie de versão mineira de seu cantinho de escritor, no Rio, para onde havia
se mudado em 1954. Com a posse de Juscelino Kubitschek, que tinha apreço
especial por ele, foi trabalhar no Palácio do Catete, na capital da República. Em
1958, foi nomeado Secretário de Imprensa da Presidência, o pioneiro no cargo hoje
chamado Porta-Voz.
Com JK, na entrada do Palácio do Catete |
Godofredo Rangel |
Na
literatura começou cedo, publicando já aos dezenove anos; foi aconselhado por um
escritor mineiro, Godofredo Rangel, que o dissuadiu do mito do artista precoce.
O pai concordou que melhor seria trilhar o caminho da formiguinha, a labuta
diária, construir uma literatura coesa e única em personagens e cenários, quase
todos da cidade mítica de Duas Pontes, que criara à imagem e semelhança de sua
vivência interiorana.
Seguiram-se
muitos livros, diversos deles traduzidos para o inglês, alemão, francês,
espanhol e outros idiomas. Com Teia, a segunda publicação, aos 21 anos, foi
agraciado com o Prêmio do Jornal das Letras. Seguiram-se diversos outros, como o
Jabuti, o Machado de Assis, o Prêmio Camões, o Goethe de Literatura, e viu a
inclusão de seu trabalho nas Obras Representativas da Unesco. Quis o destino
que a Grã-Cruz da Ordem do Mérito Cultural Brasileiro fosse entregue
simbolicamente à família meses após sua partida, em 2012.
Machado de Assis |
Com
suas tramas, riscos, bordados e carpintarias, consolidou um estilo único, inconfundível,
livre de academicismos, arquitetura que desenvolvera tanto na própria labuta
quanto nas leituras e releituras incansáveis de mestres como Machado de Assis,
Faulkner e Flaubert. Difícil é escolher o melhor livro: parece-me que será
sempre o último que reler, mas o que mais me seduz é Ópera dos Mortos (talvez
por isso, foi o último!), do qual peço a ele licença para reproduzir um trecho:
O relógio de pêndulo que foi de meus pais |
“Não
adiantava parar os relógios. Ainda bem que eles deixaram a pêndula na copa. De
duas bolas, em formato de 8; tem pêndula mais bonita, de capelinha. Relógio de
8 é muito comum, até enjoa. Relógio de capelinha é que é mais bonito. Mas igual
o relógio-armário (quando ele desceu, veio e parou, olhou parando na cara de
cada um, foi assim mesmo que ele fez ou foi Rosalina? no dia do enterro, veio e
parou o relógio-armário), igual o relógio da sala não tinha igual, nem nunca
viu um assim tão rico, antigo de velho. O relógio da copa, quando chegar a vez,
ela é que ia parar. Gostava de ouvir as batidinhas, o tique-taque gostoso no
vaivém da pêndula. (...) As pancadas das horas, a musguinha vindo. (...)
Minueto, Rosalina diz que é minueto”.
O coro dos relógios, nessa Ópera dos Mortos, a ourivesaria de cada momento, cada único
momento e cada um após o outro, diversos relógios cujo oscilar dos pêndulos
seria interrompido, cada um a sua vez, com a morte de cada pessoa do casarão. Tensões
elaboradas, um crochê intricado e denso. (Musicalmente me lembraria Brahms, os
momentos se sucedendo em ondas de pensamentos e angústias onde navegar o leitor: um desenvolvimento pleno de encadeamentos, cadências e dinâmicas, temas e contratemas recorrentes, como em uma sinfonia do alemão).
Melhor
assim, saudar o velho Autran por seu trabalho, nada de remoer no dia do
nascimento os tempos difíceis que precederam sua partida. É dia de agradecê-lo
por ter vindo a este mundo nos deixar tudo o que produziu com humildade,
sempre avesso a badalações. Uma obra para a posteridade, sem nunca pensar em
enriquecer, bons livros não dão dinheiro, falava. “Também sei escrever um
best-seller: leitura bem fácil, suspense, traição e uma pitadinha de
sacanagem”. Só que nunca o fez.
seu pai também deixou para você o dom da escrita, querido Henrique!
ResponderExcluirum beijo com carinho,
Aída