Grande
sucesso de Jorge Ben em 1963, a música foi gravada e regravada inúmeras vezes e
até nos EUA, com direito a sotaque: “...chove sem parar / pois eu vou fazer uma
prece / pra Deus, Nosso Senhor / pra chuva parar / de molhar meu divino
amor”. (O verbo chover é impessoal, mas eu,
criança, pensava que se o céu falasse diria, poderoso, “eu chovo”; eu ria
muito com isso).
A
chuva evoca às vezes sentimentos líricos, outras de liberdade, aventura, o deixar-se
molhar, como em “Cantando na chuva” (1952), filme estrelado por Gene Kelly,
aquele tipo de ator em extinção: atuava, cantava, sapateava e dançava. A música
era uma ode à chuva e ao amor, tanto que em Portugal título do tema e do
filme foram traduzidos como “Serenata na chuva”. Caetano entregou-se à orgia com
mistura de chuva, suor e cerveja: “Não se perca de mim / não se esqueça de mim
/ não desapareça / a chuva tá caindo e quando a chuva começa / eu acabo
perdendo a cabeça”. O poeta lusitano Fernando Pessoa fez uma complexa digressão
sobre a chuva: “Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva não faz ruído senão
com sossego”. Mário Quintana retratou seu hábito musical: “Eu ouço música /
como quem apanha chuva: / resignado / e triste / de saber que existe um mundo /
do Outro Mundo”.
O grupo The
Hollies viu na chuva a deixa para abordagem de uma garota, em “Bus stop”
(1966): “Ponto de ônibus / ela está lá gelando / querendo meu guarda-chuva”. Romântico
dos velhos tempos, o cantor flertou com ela muitos dias de chuva no verão, demorando
a criar coragem para oferecê-la o amparo de seu guarda-chuva. E seu coração.
Tanto
no filme “Cantando na chuva” quanto em “Bus stop”, o guarda-chuva é símbolo de
proteção, bem explorado por um certo banco do passado em seus comerciais.
Cobrir, proteger, aproximar, desculpa para chegar mais perto de alguém; aceitar
“carona” em um guarda-chuva era sinal de consentimento para um início de conversa,
digamos, bem “cosi”. No memorável filme “Os guarda-chuvas do amor” (“Les
parapluies de Cherbourg”), de Jacques Demy (1964), com Catherine Deneuve no
papel de Geneviève e música do notável Michel Legrand, uma jovem de 16 anos,
filha da dona de uma butique de guarda-chuvas, vê seu amor Guy partir para a
guerra na Argélia. Na orquestra Boston Pops, com Arthur Fiedler, ao final da
música-tema os contrabaixistas giravam guarda-chuvas coloridos. Sucesso.
Mas
nem tudo é amor e alegria no mundo da chuva. O Antigo Testamento conta que Deus
salvou Noé e pares de animais, dando ao patriarca até detalhes da madeira (bordo)
e as dimensões corretas para construção de uma arca. Um dilúvio acabaria com as
gentes da terra e a missão seria repovoá-la, longe do mal que a atingia.
Economia.uol |
Tempestades,
maremotos e tsunamis são a natureza em revolta, desafiam a capacidade do homem
de se prevenir e causam tragédias de dimensões imensuráveis. Em São Paulo, na madrugada e
manhã do dia 10 de fevereiro, caiu 96% da precipitação esperada para o mês
inteiro, a maior desde 1983. O rio Pinheiros, da marginal, uma das principais
artérias da cidade, viu o maior volume de água desde 1967. O Corpo de
Bombeiros, dos valorosos soldados que arriscam suas vidas, recebeu 1.400 chamadas
de emergência para mais de mil alagamentos, com saldo de quatro mortos e um
desaparecido - em 24 horas. Em uma metrópole como São Paulo, números em
catástrofes são geralmente assustadores. O secretário de Infraestrutura e Meio
Ambiente da cidade, Marcos Penido, resumiu o drama paulistano: a chuva é uma
resposta da natureza pelos maus-tratos. (Apesar de os ambientalistas terem ouvido
ironia recente de extremo mau gosto, a ameaça de confiná-los na Amazônia).
Malha fluvial de SP (PMSP/SMVA/SEMPLA) |
O
problema é um tiro no pé dos governantes. No dia seguinte à tempestade, 11 de
fevereiro, matéria de O Estado informava que, de 2015 a 2019, a Prefeitura
paulistana havia projetado gastos de R$ 3,8 bilhões para intervenções nos rios,
riachos e córregos da cidade, mas apenas R$ 1,1 bilhões conheceram seu destino.
Ou seja, a conta desses investimentos sofreu perda de R$ 2,7 bilhões, apenas 28,95%
do que fora planejado terminaram aplicados, e segundo o DAAE na calha do rio
Tietê meros 50% dos recursos para desassoreamento. O solo impermeabilizado na
capital aumentou 11% em 33 anos, um convite à calamidade: concreto, concreto,
concreto.
A LIMPEZA DO TÂMISA 50 anos após ser declarado morto biologicamente, o Tâmisa tem sido saudado como uma história de sucesso ambiental. |
Investimentos
em infraestrutura como piscinões, intervenções nas imensas malhas fluvial e
pluvial de São Paulo, nada disso tem visibilidade eleitoral – para colocar o
assunto em pratos bem limpos. Vale mais nas urnas um lindo viaduto mal feito e mal
acabado (que volta e meia redunda em tragédia) do que 100 intervenções em rios
e córregos, criação, manutenção de piscinões e obras de drenagem. Não se faz um
planejamento independentemente de governos, como a transposição subterrânea das
vias expressas de Boston, EUA, que perpassou vários governos em 20 anos, ou a
despoluição e desassoreamento do Rio Tâmisa, em Londres (o The Telegraph
registrou que o rio foi declarado biologicamente morto em 1957, mas 50 anos
depois estava povoado de pássaros e peixes). Não temos cultura de continuidade,
o país parece ser projetado para cada quatro anos – “os meus quatro” -, e nada
mais. O mal aflige também várias cidades do interior de São Paulo (com a
“contribuição” da capital via Tietê), e, claro, outras metrópoles. Não dá para celebrar
como Bob Dylan no Festival de Woodstock, em 1969: “It’s a hard rain a-gonna
fall” (“Uma tempestade vai cair”). Nada de paz, amor e guarda-chuvas, só lágrimas
e prejuízos.
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