Com Elis Regina |
Enquanto
sua música premiada na competição - “O amor é meu país” - fazia sucesso, houve quem
a achasse ufanista. “Madalena” (1970), estourou nas paradas pela voz de Elis
Regina com uma poesia de Ronaldo Monteiro de Souza que é um grito de dor de
cotovelo – “Ê Madalena /o meu peito percebeu / que o mar é uma gota / comparado
ao pranto meu” -, enquanto a música laureada, “O amor é o meu país”, era o
brado de um louco apaixonado e errante: “Eu queria, eu queria, eu queria/ um
segundo lá no fundo de você / eu queria me perder, ah, me perdoa / porque eu
ando à toa sem chegar”.
Eram
tempos do programa cult de TV da Globo “Som Livre Exportação” que mostrava o
que acontecia na MPB. Participei como instrumentista de um grupo de uma dessas
gravações, dirigida pelo produtor Walter Lacet, em um programa no qual já
estrelavam Os Mutantes, Ivan Lins, Baby e Os Novos Baianos e outros tantos. Ivan ainda
navegava no sucesso de “Madalena”, talvez passando ao largo da vanguarda pop de
Os Mutantes e da politização de alguns. Antes de iniciar uma tomada de vídeo de
uma canção romântica com Ivan, o diretor Lacet pediu a algumas garotas presentes
que pusessem a mão no queixo, repousando sobre ele as cabeças como se estivessem apaixonadas,
em um ângulo filmado entre o vão da tampa aberta do piano e o corpo do instrumento
– truque de marketing que lembra Franz Liszt (1811-1886), inovador do passado
que pagou do bolso mocinhas para chorarem durante suas apresentações.
Eram dias de Vandré, Chico Buarque, Sérgio Ricardo, Sidney Miller, todos
engajados, e das universidades vigiadas, dos protestos contra o regime e a
censura, um crescente movimento popular que fez Ivan engatar seu romantismo em
marcha mais lenta, até conhecer o poeta Vítor Martins, e aos poucos se
familiarizava com as aflições de sua geração.
Ivan Lins, com Vítor Martins em primeiro plano |
Da
parceria de Ivan Lins com Vítor Martins, iniciada em 1974, surgiu um belo LP cuja
música principal dava nome ao título do álbum: “Somos todos iguais esta noite”,
subtítulo “É circo de novo” (1977), uma alegoria sobre os tempos em que
vivíamos. O circo era uma menção poética ao cerco político exercido sobre toda
uma geração: “Nós vivemos debaixo do pano / pelo truque mal feito dos magos /
pelo chicote dos domadores / e o rufar dos tambores”. A incursão no trato de assuntos além daquelas paixões e dores de cotovelo do
início foi gradativa e mostrou um outro Ivan Lins, bem evoluído musicalmente, com
a poesia mais elaborada e cheia das figuras de linguagem de seus parceiros. Mas
foi outro letrista, porém, que trouxe Ivan Lins a um engajamento mais aguerrido:
Maurício Tapajós. É dele a letra de “Aparecida”, uma alusão aos presos
políticos desaparecidos, que passou rente ao fio da navalha da censura: “Diz,
Aparecida / sumir desse jeito não tem cabimento / me conta quem foi, por que
foi / e tudo o que você passou / preciso saber seu tormento / preciso saber da
aflição”. E veio a magnífica "Cartomante": "Nos dias de hoje é bom que se proteja / ofereça a face pra quem quer que seja", para encerrar com essa metáfora sobre o baralho e o momento político, um vaticínio, quase: "Cai o rei de espadas / cai o rei de ouros / cai o rei de paus / cai, não fica nada".
Gravação de "We are the world" |
Enquanto
se preocupava com seu país, novas portas se abriam. Ivan chegou a ser reconhecido nos
EUA: suas músicas haviam sido gravadas por estrelas como Ella Fitzgerald, Sarah
Vaughan, George Benson e Quincy Jones. Foi convidado a participar da histórica
gravação feita por uma constelação de astros mundiais do movimento USA for
Africa, músicos se alternando na canção We are the world (1985). Importante: antes de se internacionalizar,
Ivan havia passado por uma fase nacionalista, mais raiz, de que é exemplo um
baião moderno, com seção rítmica sofisticada, “O velho sermão”: “Um velho de
barba bem comprida / numa praça bem perto da estação / com Jesus numa cruz bem
encardida / contava histórias do sertão” (letra de Ronaldo Monteiro de Souza).
Na mesma linha ‘pé no chão’, abraçou o sertanejo de raiz, com “Ituverava”,
homenagem ao município paulista onde nasceu o parceiro, cantada em terças paralelas
como fazem os caipiras, uma lindíssima moda de viola com letra de Vítor Martins
gravada em 1977. Houve ainda a incursão do músico no folclore, com “Bandeira do
divino”, registrada pela dupla caipira Pena Branca e Xavantinho.
Com o Grammy Latino (HTFORUM) |
Em
sua longa estrada, Ivan Lins foi um universitário romântico e sonhador, foi
vanguarda de uma tintura bem pessoal, foi artista militante como tantos de seu
tempo e foi internacional. Sempre com ótimas parcerias, gravou e foi gravado no
exterior, recebeu um Grammy Award (1997) e foi nove vezes laureado com o Grammy Latino,
mas nunca se esqueceu de suas raízes, como vimos em “Ituverava”, “O velho
sermão”, sua versão da “Bandeira do divino” e a marcha-rancho moderna “Dona
Palmeira”.
Um brasileiro cosmopolita!
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