Bico de pena de minha autoria, 1970 |
Que
fascínio, que charme gauche, que atração é essa que a malandragem exerce sobre
a nossa MPB? Será a convivência nos morros, como exaltou Jorge Ben (1969) em “Charles,
anjo 45”? “Robin Hood dos morros / rei
da malandragem”. E ainda: “Então os malandros otários / deitaram na sopa”, uma
verdadeira ode ao vadio, ao bandido? (Antigamente, a vadiagem era contravenção,
a “dura” prendia e jogava na viatura. Lendária é a história do famoso delegado
Padilha, tema um samba de breque do malandro de “liforme” branco Kid
Morengueira. Andar sem Carteira do Trabalho assinada era coisa de vadio mesmo.
Imagine hoje, com o desemprego oficial nas barras dos 12%). Jorge Ben, em 1975,
já havia feito uma incursão no tema em “Se segura, malandro”, uma breve lição
de como se assumir malandro, como o malaco deve se se virar com classe.
Continua: “pois o malandro que é malandro não se estóra (sic) / malandro que é
malandro não se devora”.
Bezerra
da Silva (1927-2005) era um carioca aficionado de vários gêneros, do coco ao
samba de partido alto: “Malandro é malandro, mané é mané” (por mané entenda-se
otário ou trouxa, vítima do pilantra). Ele
exalta as “virtudes” dá conselhos ao bom malaco – que também atende por vagabundo –,
como em “Malandro não vacila”: “Malandro não cai, nem escorrega / malandro não
dorme, nem cochila / malandro não carrega embrulho / e também não entra em
fila”. 1985 foi um ano pródigo em exaltação ao pilantra: “Malandro Rife”, de
Otacílio e Ari do Cavaco, gravado por Bezerra em um LP em cuja capa ele exibe um tesoitão: “O malandro de primeira / sempre foi considerado / em qualquer
bocada que ele chega”. Naquele ano cantou-se até disputa de pilantragem, como em
“Malandro sou eu”, de Arlindo Cruz, Sombrinha e Franco: “malandro que sou / eu
não vou vacilar”, e até lembrou até Júlio César, mandando contar ao Senado
romano sobre a batalha de Zela: Veni, vidi, vici. Claro que com erudição
“de ouvido”, pegou a frase no ar e mandou ver: “malandreando eu vim e venci”.
Bezerra
da Silva fala até sobre maconha, em “Malandragem dá um tempo”, botando ordem no
terreiro: “Vou apertar / mas não vou acender agora / se segura, malandro / pra
fazer a cabeça tem hora”. O samba menciona até mesmo três artigos do Código
Penal: “é que o 281 foi afastado / o 16 e o 12 ficou no lugar”. (Em 1976 o Art.
281 foi revogado, e dividido entre os de nº 16, porte, e 12, tráfico de
entorpecentes).
Elevando
em grande estilo o nível do tema, Chico Buarque escreveu, em 1975 – que parece
ter sido o ano do grande culto à "classe" -, o musical “Ópera do Malandro”, que ele,
com aquela erudição de berço, buscou em John Gay, um dramaturgo inglês do séc.
18, na peça “Ópera dos Mendigos”, e, mais recente, a “Ópera dos três vinténs”,
dos alemães Bertod Brecht e Kurt Weill. A “Ópera do Malandro” do Chico passeia
entre prostitutas, um cafetão, “corretores” do bicho e um traveco, Geni – cujo nome,
coincidentemente, é título de uma música que fez sucesso à parte da peça, “Geni
e o Zepelim” (que parece falar de uma prostituta, e não do transformista
da peça). O papel de Geni coube a Emiliano Queiroz.
É
para esse bas-fond, essa marginália moderna, que Chico transporta Brecht e sua
“Ópera dos três vinténs” (Die Dreigroschenoper), e abre espaço para a
exploração do culto, do mito, da exaltação à malandragem, lembrando o artista
plástico carioca Hélio Oiticica (1934-1980), que em uma serigrafia de 1968, feita
em homenagem ao famoso bandido Cara de Cavalo estampou: “Seja marginal, seja
herói”. Daí, no musical proliferaram variações sobre o malandro, como a letra que
Chico fez a seu jeito para a música de Kurt Weill: “O malandro / na dureza /
senta à mesa / do café / bebe um gole / de cachaça / acha graça / e dá no pé”. Mas,
pasme, em “Homenagem ao malandro”, Chico descobre que aquela figura caricata de
pilantra acabara: “Eu fui fazer um samba em homenagem / à nata da malandragem /
que conheço de outros carnavais”. Mas qual não foi sua decepção, ao ir à Lapa, gueto
da malocagem carioca, e ver que “aquela tal malandragem não existe mais”! E
prossegue, agora levando esse malandro agora “oficial’ a outras instâncias, coisa bem atual: “malandro
candidato a malandro federal / (...) com retrato na coluna social / (...) com
contrato, com gravata e capital” – e faz a ressalva: “que nunca se dá mal”. (Veja e ouça no final do texto)
Madame Satã |
Com
certeza, criar um charme especial na malandragem é algo que os franceses
diriam ser pour épater la bourgeoisie (para chocar a burguesia). Guetos de
malandros há muitos no país, apesar de a velha Lapa carioca ser um panteão dos
sambistas. Era o reduto da boemia da classe C, gente como o velho e perigoso
transformista Madame Satã, com longa folha corrida de processos e assassinatos
– matou com um soco no fígado o grande sambista Geraldo Pereira, parceiro de
Wilson Batista no clássico samba “Acertei no milhar”.
Existe
também o malandro caipira, Pedro Malazarte, um pilantra cínico importado do
folclore português da Idade Média - que no Brasil virou ópera cômica de Camargo
Guarnieri e Mário de Andrade, história do trapaceiro do gato de vinte contos de réis. O tema pegou Cazuza e retornou com Cassia Eller, em “Malandragem”:
“Eu só peço a Deus / um pouco de malandragem / pois sou criança e não conheço a
verdade”, mostrando em tempos mais recentes que certa dose da tal malandragem seria
necessária para defendê-la dos trambiques da vida.
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