(Inventou o relógio, que um dia quis amarrar a música)
A Criação (Michelangelo) |
Salmo
90: “Mil anos são aos vossos olhos como o dia que passou, e como a vigília da
noite”. Para o homem, o tempo era chrónos (do grego, “ciência das
medidas do tempo”), e para Deus, kairós (o tempo qualitativo), de magnitude
abstrata. E assim a humanidade sentia o tempo entre dias e noites se
alternando. Mas tudo era muito vago, ele queria subdividir em frações esse longo
tempo entre a luz e a escuridão. E demorou muito até serem concebidos artifícios
para que galgasse os primeiros passos rumo à sua ambição.
A clepsidra |
O
primeiro engenho para medir o tempo foi uma espécie relógio de sol, no Egito do
faraó Tutmés III (1479 a 1425 a.C.), e demorou um milênio para que Tales de
Mileto aprimorasse a invenção. A clepsidra, medidor feito de um cone invertido por
cujo ápice vertia um fio de água, era conhecida na Grécia e na Itália até por
volta de 150 a.C. No século 2 d.C. surgiu o tipo hidráulico, que aperfeiçoou o
de
Ctesíbio (285 – 222 a.C.), aproveitando a engrenagem de Arquimedes (297-212
a.C.) para mover um mecanismo de rodas.
Arquimedes, por Domenico Fetti (1620) |
Ampulheta |
Os
relógios de areia, chamados ampulhetas (dim. de ampolla), mediam tempos curtos
pré-definidos. Em 1088, o chinês Han Kun Lien criou um engenho de 9m de altura movido
a água, e em 1092 seu conterrâneo Sü Sòng empregou o recém-criado mecanismo de
escape em seu modelo, de 10m de altura, no qual a água em movimento movia uma
engrenagem com pás, que fazia girar o eixo do relógio. Recentemente, chegamos
ao modelo atômico, cuja medição absolutamente precisa, a UTC (Coordinated
Universal Time), determina de horas até frações de segundos para o mundo inteiro.
Johann Joachim Quantz |
Mestre
do período barroco, Quantz registrou que os andamentos musicais na época tinham
como parâmetro os batimentos cardíacos de uma pessoa em estado de descanso,
cerca de 80 b.p.m. (batidas por minuto). Daí surgiram as subdivisões, como 40
ou 120 b.p.m., mas foi apenas no romantismo que surgiu um artefato chamado metrônomo.
O pêndulo de Galileo Galilei |
Para
falar dele, precisamos voltar a Galileo Galilei, que em 1581 descobriu o
isocronismo (do grego: o mesmo tempo) do pêndulo, que oscila em movimentos iguais. Em meados do século 17, Christian Huyghens e George Graham adaptaram
pêndulos a relógios, mas faltava o chamado escape, algo que provocasse impulso constante
ao pêndulo, e este foi o grande avanço no mecanismo. Baseado no pêndulo, o
primeiro metrônomo foi construído por Etieune Loulié, em 1696, e possuía calibragem
dos andamentos, mas ainda não o escape para mantê-lo em movimento.
Meu Maelzel |
A
lista de inventores que aperfeiçoaram o metrônomo, a partir dessa época, é
enorme: uma dúzia de nomes, de Suvert, em 1711, a Smart, em 1821. Em 1812 o
relojoeiro Dietrich Winkel, de Amsterdam, já havia desenvolvido um pêndulo com
dois pesos, um em cada extremidade do eixo, possibilitando marcações mais
precisas mesmo em andamentos mais lentos. Utilizando-se da ideia de Winkel, em
1816 Johann Mëlzel (diz-se Maelzel, com contração das vogais) iniciou a
fabricação de metrônomos portáteis que levavam seu nome – sofrendo à época fortes
críticas por ter usurpado o modelo do holandês. Tenho um desses metrônomos dos
tempos da manufatura do próprio Maelzel em Paris, uma beleza de adorno, e apesar
de não muito preciso repete bem o “pa-pa”, vai e volta oscilando.
Ilustração de Johann Maelzel e sua máquina de jogar xadrez (fraude) |
Maelzel,
que já havia sido acusado de fraude, fascinou Beethoven, com quem colaborou em
1813 para uma composição chamada “A Batalha da Vitória”. Houve apresentações em
que Maelzel roubava a cena, apresentando nos intervalos seu aparelho como um
instrumento à parte (bem depois, Ravel e Villa-Lobos chegaram a empregar o
metrônomo como instrumento de percussão).
Em
1814, Beethoven processou Maelzel por apropriação indébita de sua obra,
reclamando inclusive da qualidade da transcrição musical empregada. Descreveu o
inventor como “um homem rude e grosseiro, inteiramente desprovido de educação
ou cultura”. Em 1856, o “Livro do ano dos fatos da ciência e da arte” (pág. 94, acima),
ao mesmo tempo em que qualificava Maelzel como “briguento, extravagante e
inescrupuloso”, lamentava que “se ele possuísse cultura e consciência poderia
ter prestado serviço à grande arte”.
Maelzel
estabeleceu-se em Paris em 1816, e em 1817 transferiu-se para Munique. Meio que
deslumbrado, Beethoven, já completamente surdo, reaproximou-se do inventor, e chegou
a pensar em retirar de suas partituras indicações de tempo como “andante” e “alegro”,
substituindo-as pela precisão numérica das subdivisões do metrônomo. O próprio
compositor passou a anotar em suas partituras o que hoje se convencionou chamar
metronome markings, como MM=68 e MM=120, por exemplo.
Metrônomo eletrônico moderno |
O
metrônomo é um aparelho de grande utilidade para exercícios graduais de velocidade
e técnica, uma espécie de ginástica, e suas gradações de tempo servem também
como referência para os andamentos. Pessoalmente, sou contra o uso do aparelho para
estudo de uma obra, que pode ser engessada com a repetição dessa prática. Tremo
ao imaginar o que seria do primeiro movimento da Sonata ao Luar, de Beethoven, se ouço o inimitável Horowitz (link no final do artigo).
Cena de "Ensaio de orquestra", de Fellini |
O
filme "Ensaio de Orquestra", de Federico Fellini (1978), é uma alegoria política em
que músicos e seus sindicalistas terminam por derrubar o poder do maestro,
trocando-o por um enorme metrônomo. Após o fracasso da sublevação, o regente reassume,
soberano, ensaiando em meio aos escombros do salão.
Horowitz e a Sonata ao Luar
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