O TEATRO DO ABSURDO E NOSSAS
DÚVIDAS
O mundo tem altos e baixos, disse Cartola com
uma pitada de maldição à mulher que o abandonara: “...o mundo é um moinho / vai
triturar seus sonhos, tão mesquinho / vai reduzir as ilusões a pó”. Quantas fantasias
acontecem entre os vaivéns e as moendas da vida!
O pêndulo do transtorno de bipolaridade oscila entre
a euforia - ou mania - e a depressão; outras pessoas, doentes do tipo unipolar,
lutam para emergir das profundezas – quando não exibem socialmente uma falsa
alegria, o que vem a dar no mesmo. A cumplicidade entre a psicanálise e a
filosofia, no caso, é entre irmãs: a última vê ali o niilismo (de nihil,
nada, em latim), a negação. O existencialismo simplifica: “sou para não deixar
de existir”, disse Sartre; Schopenhauer usa as lentes do pessimismo e Franz
Kafka as do absurdo: em “Metamorfose”, seu personagem deteriorou-se até se transformar
em uma repugnante barata.
1945. Fim da II Guerra, negação e angústia tomaram
conta do mundo, como um longo “blues period”, depressão pós-parto. A arte perdera
a fé na condição humana, predominava um pensamento que flertava com o vazio,
entre ‘o ser e o nada’ de Sartre. Embalada na psicanálise e na filosofia, à
arte coube a missão de representar o vácuo que tomou conta do mundo.
O Balcão de Victor García |
Sartre admirava um autor, nascido de uma
prostituta e preso quando adolescente: Jean Genet, cujas peças um dia viriam a
torná-lo um ícone da intelectualidade. O Brasil pôde assistir, nos anos 1970 – “meninos,
eu vi”! - à montagem de seu “O Balcão” pelo argentino Victor Garcia, cujo cenário era uma gigantesca espiral metálica,
um bordel em móbile onde os personagens assumiam seus papeis copulando com as prostitutas nas personas em que gostariam de ser
vistos pela sociedade: general, bispo, juiz; era a transfiguração do personagem
em sua fantasia sócio-sexual - o próprio Genet assumiu-se marginal e
homossexual porque era através dessa ótica conservadora que a sociedade o via.
Vladimir e Estragon |
Mestre do absurdo foi o irlandês Samuel Becket,
de “Esperando Godot” (de God, ou Gott ), em que os personagens Vladimir e
Estragon aguardam a chegada de alguém que nunca virá - a negação de Deus. Dürrenmatt,
em sua “A Pane”, fala do viajante cujo automóvel enguiça na estrada (daí o
título). Perto dali, um juiz aposentado oferece ajuda e o hospeda em sua casa. Os
que lá estavam assumem seus papeis num absurdo tribunal em que o visitante se
torna réu. Condenado em um julgamento vivido como ‘real’ sob enorme pressão, o hóspede
termina por suicidar-se.
[No filme “A noite dos desesperados”, de Sidney
Pollack,1969, um casal participa de uma interminável maratona de dança até que,
exaurida, a mulher (Jane Fonda) pede ao seu par que a mate, e ele o faz. À
polícia, declara: They shoot horses, don’t they?, título do filme em inglês -
“Eles matam cavalos, não matam?”. O fato teria acontecido em 1919, em plena
depressão econômica e pós-gripe espanhola].
O espanhol Fernando Arrabal tem em sua “Fando e
Lis” não uma história de amor, apenas conflitos, violência, disputas vãs e insanas.
Lis, paraplégica, é conduzida por Fando em sua cadeira rumo a Tor, onde nunca
chegam: um duro humor negro. A representação depende, além do talento dos
artistas, na maior parte de seu autoconhecimento e dos personagens, seus
conflitos pessoais e a busca da felicidade - que não sabem onde está, se no
mundo ou no interior de cada um.
Eugène Ionesco, franco-romeno precursor do
teatro do absurdo com “A cantora careca” faz um exercício sobre a impossibilidade
de comunicação entre as pessoas. Homem e mulher com o mesmo sobrenome discutem
sobre a morte, a vida e filhos - até descobrirem que são casados. Real e falso se
anulam, tanto um como outro são verdadeiros. O fio condutor da peça é o desnudar
da comunicação humana em diálogos sem sentido, fúteis, ambíguos.
O italiano Luigi Pirandello investe na
ambiguidade em sua ” (Assim é, se lhe parece ). E subverte o
velho conceito de teatro, em “Seis personagens à procura de autor”, quando
esses surgem com vida própria, junto a um grupo de atores, situação absurda tal
que, ao final da estreia, ouvia-se pessoas gritando “manicômio”, “louco”, tamanha
a perturbação que a peça lhes despertou.
Estamos em conflito mundial contra um poderoso
inimigo que, diferentemente da II Guerra, por sua natureza tenta abater não uma
parte, mas a humanidade inteira. A economia mundial naufraga, como no pós-guerra,
e há um oceano de conflitos de ordem social, filosófica e política (há até o niilista
moderno e o ignorante negacionista!). Alguns até não escondem sua falta de
compaixão pelos mortos, doentes e futuras vítimas. Morrer? “Não lhe custa nada,
só lhe custa a vida”, aproveito Gilberto Gil.
Os conflitos psicológicos de hoje tiveram início
no ódio de um segmento fanático contra as defesas de outro, que em sua maioria depois
se confinaram. Mas, após domada a besta, voltaremos ao ‘normal’? Viveremos os
raros altos e muitos baixos do moinho ou serão por ele moídos nossos pessimismos
e negações, até percebermos a metamorfose? Será a sociedade nessa ressaca viral
um balcão que nos obrigará a assumir as máscaras que quiser nos impor? Seremos
personagens à procura de um líder que nos guie rumo ao futuro ou um Godot que nos
salve, mas que nunca chega? Continuaremos em conflito e perdidos rumo a Tor, um
estranho caminho para Santiago de Compostela que não existe? Teremos de
ressurgir do que nos sobrou e para a sociedade mostrar-nos como lhe parecemos?
(Visite e inscreva-se em meu canal: www.youtube.com/user/autrandourado )
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