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sexta-feira, 26 de junho de 2020

O INVERNO DE SARA WINTER

Baroness Von Altenburg

Sarah Domville-Taylor nasceu em Ludlow, Inglaterra, em 1870. Filha de um coronel britânico, foi criada em Londres por uma tutora, a baronesa Von Altenburg. Desde a adolescência aprendeu com ela o que de pior havia na Alemanha da época: ideias fascistas e antissemitas. Não tardou para Sarah ingressar na BUF (União Britânica de Fascistas), e militar no grupo.
Sarah Domville-Taylor
Bela e sedutora, a jovem Sarah casou-se aos 20 anos com Robert Winter, de 22, jovem de família abastada, adotando o sobrenome do marido. O casal teve um filho, Arthur Trevor Winter, que depois rejeitaria a mãe e suas ideias. Sarah admirava Ormonde Winter, um militante fascista como ela, primo de seu marido e protegé do príncipe de York, futuro Rei George VI, coroado em 1936.
Com a morte do esposo, Sarah, então com 28 anos, passou a dedicar-se a instituições de caridade e envolveu-se com o rico entourage do falecido. Organizava recepções, bailes e reuniões sociais muito comentadas na alta grã-finagem.
Áustria, ocupada por Hitler (Anchluss, 12 de março de 1938)
Apesar de socialite, Sarah continuou fascista, apenas depois da Primeira Guerra passaria a aderir à causa nazista. Em 1935, ingressou na Sociedade Anglo-Germânica, que apoiava o Partido Nazista alemão. Quando da anexação da Áustria por Hitler, em 1938, mandou hastear bandeiras com suásticas em suas propriedades.
Winston Churchil
Sarah nunca foi presa, ao contrário de outros companheiros pró-nazismo, pois tinha bom trânsito com figuras graúdas no Reino Unido – incluindo o todo-poderoso Winston Churchill, primeiro-ministro e ícone da luta dos aliados contra o Eixo.
Worcestershire Cemetery
Winter foi acusada de atos de espionagem contra o Reino Unido mas, como sempre, protegida pelo crème de la crème  britânico - milionários, banqueiros e habitués da realeza -, escapou. Permanecia livre, amada por poucos e odiada por muitos. Um ano antes da derrota do Eixo para os aliados, na Segunda Guerra, Sarah tinha fé na vitória de Hitler, que já conquistara boa parte da Europa. Mas deixou o mundo em 1944 sem ver o naufrágio da aventura nazista. Foi sepultada em Worcestershire, condado de West Midlands.
Sara: Veja (Abril)
Sara Fernanda Giromina nasceu na São Carlos paulista em 1992 e, desde cedo, deixou-se influenciar por estereótipos feministas internacionais. Aos 19 anos, fundou uma vertente brasileira do grupo ativista Femen, cuja principal forma de chamar atenção para seu ideário político eram manifestações topless, com seus lemas e reivindicações pintados nos peitos nus em locais de grande visibilidade, com certa mise em scène  em suas prisões.
A ucraniana Inna Shevchenko
Viajou para a Ucrânia para conhecer Inna Shevchenko, 29, uma das líderes internacionais do Femen, de quem recebeu orientações. Mais adiante, por afastar-se das bandeiras do movimento, foi obrigada a retirar a ‘marca’ Femen de seu grupo por outra líder, a ucraniana Olexandra Shevchenko. Mas não tardou a criar seu próprio clã, o BastardXs.
Aos 23 anos, após o nascimento de seu filho, Giromina abraçou o catolicismo e jurou criar o menino à luz dos Dez Mandamentos, repudiando antigas bandeiras como o aborto legal e o feminismo. Ao contrário, passou a atacá-los, no tom ultraconservadorista da extrema direita.
Buscando projetar-se a qualquer custo, tentou uma vaga pelo DEM na Câmara dos Deputados em 2018, mas recebeu apenas 0,22% dos votos válidos (as verbas de campanha ainda estão sob investigação por supostos desvios). Graças à militância ultraconservadora, em 2019 foi nomeada coordenadora de políticas da maternidade da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves – conhecida pela frase “menino veste azul, menina veste rosa”.
Sara Giromina adotou como “sobrenome de guerra” o de sua ‘Alter ego’ inglesa, Winter, uma reverência à militante do Reino Unido que do fascismo histórico passou a apoiar a via hitleriana, mais radical. Ainda criança, Giromina foi estuprada, sofreu maus-tratos e deixou-se entregar à prostituição durante quase um ano. Seu irmão declarou-a sociopata, pessoa de comportamento fora de sintonia com a vida em sociedade.
Com o brasão imperial
Como militante da extrema direita, Giromina advoga um patriotismo radical extremado típico do fascismo, e vez por outra surge vestida com uma camiseta estampada com o brasão do Império. São frequentes suas postagens nas redes sociais ostentando pistolas automáticas 9 mm ou 765, às vezes uma em cada mão. Mercê de uma ambição doentia por liderança, Sara criou outro grupo, mais radical, o ‘300 do Brasil’ - que na verdade não agrega mais de 30 - e com ele fincou acampamento em Brasília. Disse que teve “inspiração em passagem bíblica” na organização de marcha com feitios da Ku-Klux-Klan.
bbc.com

Familiarizada com o entourage do Poder, é defensora intransigente de todos os atos do governo, atacando tudo que não seja ele. Por ameaças consideradas criminosas pelo MPF ao ministro do STF Alexandre de Moraes, foi denunciada por ofensa e injúria, tendo fixada multa de valor pedagógico, R$ 10 mil. Em âmbito do inquérito que investiga a organização de manifestações contra a Constituição e o Estado de Direito, no dia 17 de junho Giromina foi presa, em conformidade com a lei. Reclusão preventiva de 5 dias, depois renovada. Um habeas-corpus impetrado em seu favor visando à sua soltura imediata foi denegado pela ministra Carmen Lúcia, do STF. Hoje,  encontra-se em casa, com uma tornozeleira eletrônica. 
Seus protetores não a ampararam como faziam os nomes influentes de sua musa britânica, afinada com milionários e até o primeiro-ministro. Giromina, agora sozinha, não sabe que no Brasil a democracia, sob a égide do Estado de Direito, é pétrea e indissociável da Constituição Federal.
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sexta-feira, 19 de junho de 2020

MONGES CARMELITAS, BENEDITINOS, TIBETANOS, DOMINICANOS. E A QUARENTENA


Monte Carmelo, em Israel
A Ordem dos Irmãos da Sagrada Virgem Maria do Monte Carmelo é uma congregação que deve seu início provável ao  século 12. Perto da montanha que lhe deu nome (em árabe, monte Mar Elijah), é região produtora de azeite e vinho onde em 1948 foi fundado o Estado de Israel. Segundo a Catholic Encyclopedia, sua origem é incerta. A Ordem dos Carmelitas Descalços existe no Brasil desde o século 16.
São João, o hospitaleiro
O Rito do Santo Sepulcro é tido como tradição dos templários, e os Cavaleiros de São João Hospitaleiro uma antiga ordem religiosa-militar católica. O francês Gustave Flaubert (1821-1880) escreveu La légende de Saint Julien l’Hospitalier, sem nexo aparente com a Ordem por razão desconhecida - mas ele remete à lenda. Meu pai, Autran Dourado, traduziu-o a quatro mãos com minha mãe, Lucia: “A Lenda de São João, o Hospitaleiro”. Em “Notas à margem de uma tradução”, comentam as ideias de Flaubert sobre o escrever, a flexibilidade da gramática e a arte de traduzir.
Pietro Novelli (1613-1647)
N. S. do Carmelo
No Brasil, a Ordem dos Carmelitas Descalços (OCD) vem da seção portuguesa do Carmo, cercanias de Lisboa. Nas clausuras, as monjas dedicam-se à contemplação (“Maria escolheu a parte certa”: Lucas, 10:38-42), renunciando totalmente à vida mundana, amizades e família. Estima-se que hoje no mundo elas somem mais de onze mil.
Também monge, um beneditino anônimo do séc. 13 escreveu The cloud of unknowing, que eu traduziria para “A nuvem do desconhecimento”. No Brasil, foi publicado como “A nuvem do não-saber” – uma diferença aparentemente sutil, não obstante profunda, entre a eternidade do desconhecido e o que simplesmente existe, mas não é sabido.
Tenzin Gyatso, atual Dalai Lama
Trata-se de exercícios espirituais cujo objetivo é chegar à alta contemplação via ‘desconhecimento’: o mistério da aproximação com o celestial, tanto quanto a imperfeição humana permite. Os religiosos medievais usavam essas práticas, em tudo similares às dos monges budistas tibetanos e do Lamanismo, do líder Dalai Lama, o mais alto posto na hierarquia. Os beneditinos da Idade Média comungavam da contemplação tibetana: o nada, o desconhecimento, ou a plenitude do nirvana indiano.
Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, meu primo, é um frade dominicano conhecido por suas ideias afinadas com a vanguarda católica, o que lhe valeu prisões e a pecha de comunista. Voluntário em ações sociais como o “Fome Zero”, durante o governo Lula, Betto fez sua "reflexão sobre o poder", em “A Mosca Azul” (Rocco, 2006).
O antigo Presídio Tiradentes
Em 1971 eu morava no Rio, e fui a São Paulo com mais dois amigos ver uma feira de desenho industrial. Queria aproveitar para visitar o Betto, no Presídio Tiradentes, condenado a pena de quatro anos após uma armação forjada pelo DOPS, manobra frequente à época: “associação ao terrorismo”. Foi julgado com mais três frades. Um deles, Frei Tito, enforcou-se em um convento em Paris, vítima dos delírios persecutórios que tinha do delegado Sérgio Fleury, o abominado torturador. 
O julgamento: freis Fernando, Betto, Ives e Tito

Um simbólico STF de então ‘reduziu’ a pena de Betto para dois anos, quando ele já havia cumprido quatro – ‘haver’ que nunca será saldado (ou esquecido). Contou-me que, enquanto recluso, contemplava – talvez assim tenha sobrevivido, na transcendência da eternidade daqueles anos para um átimo.
Frades no átrio (foto: Jorge Butsuem)
Passada a meia-noite, éramos três amigos chegando ao Convento dos Dominicanos em Perdizes. Recebeu-nos o frei Paulo, que nos xingou de tudo pelo adiantado da hora, mas nos hospedou e juntou-se a nós em uma roda de violão e caipirinha. Dia seguinte, depois do café da manhã, era outro Convento: fomos para uma espécie de átrio, onde os frades, silenciosos, liam suas bíblias ou meditavam, contemplavam em devoção monástica! Mas visitar o Betto? Nunca, o regime dele era incomunicável.
Vinte anos depois, eu o procurei. Saímos para um café, voltamos, um pouco de história e política. Falei-lhe de ansiedade e preocupação (andava com insônia). Betto então deu-me um exemplar de The Cloud of Unknowing  (NY: Paulist Press, 1981). Fazia os exercícios na ordem, em posição de lotus. Um dia, acordei sentado, dor no pescoço da cabeça caída, o sol nas frestas da janela: exercitando a mente, eu havia dormido!
Igreja do Convento dos Dominicanos
Betto e eu nos vimos outras poucas vezes, a última em uma missa para a qual ele havia me convidado, em 2002, dedicada ao prefeito assassinado Celso Daniel. Igreja lotada, celebrou-a à frente de uma dúzia de frades, com direito a uma emocionante homilia, mesmo estando ele com o direito aos sacramentos ‘cassado’ pelo Vaticano.
Marta, de pé, e Maria, contemplando
Da reclusão encoberta dos pés à cabeça das monjas da Ordem Carmelitas até o Rito do Santo Sepulcro e a Lenda de São João Cavaleiro, dos monges tibetanos e indianos aos beneditinos e sua ‘nuvem do desconhecimento’, da contemplação de Maria no Evangelho de Lucas ao isolamento inerente a esses estados espirituais, há muito que aproveitar dessa quarentena forçada pela pandemia. Fora da TV, videogames, novelas, leituras, redes sociais  e comida: meditação,  autoconhecimento, exercícios de abstração do mundo terreno,  pensamentos -  ou, ainda melhor, a desejada ausência deles -, em períodos diários. Para os que creem, rezas ou orações.
Jovem chinesa pratica o Tai Chi Chuan 
A sintonia com o universo também está em  várias modalidades de Yoga ou suaves movimentos de Tai Chi Chuan. Os exercícios que nos elevam e ajudam a cumprir esses tempos de pena em nossos presídios particulares é um caminho para, durante e depois do isolamento social, absorvermos as sequelas do retorno à vida que antes chamávamos ‘normal’. Se o transitar neste período de quarentena tem sido difícil, também o será a volta. 
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quinta-feira, 11 de junho de 2020

TEMPOS DE GEORGE FLOYD: MULTIDÕES IGNORAM




O ISOLAMENTO SOCIAL 
E AS BARREIRAS DA POLÍCIA
Em 25 de maio, George Floyd, um negro de Minneapolis com dois metros de altura e aficionado pelo basquete, foi alvo de uma das mais cruéis ações policiais dos últimos tempos nos Estados Unidos. Hoje nome conhecido e evocado no mundo inteiro, Floyd teve o pescoço esmagado contra o asfalto pelo joelho de um policial branco, Chauvin (nome de onde vem chauvinista, que estranha coincidência!). Foram nove longos minutos assistidos pelas TVs do mundo inteiro, o moribundo sussurrando uma frase que se tornaria lema de protestos: I can’t breathe! (“Não posso respirar!”). Outros policiais observavam, cúmplices de sádica tortura e premeditado assassinato.
Floyd tornou-se ícone de um novo movimento e palavra de ordem na luta de milhões de manifestantes pelo mundo. Nos EUA, chamou a atenção o grande número de jovens brancos que participarem dos protestos - um fenômeno, nas proporções em que aconteceu, se comparadas a manifestações anteriores. Houve alguns absurdos vandalismos, por radicais surgidos de uma ebulição estancada, mas os riots foram pacíficos.
Ébano e marfim
Há um diferencial neste que foi mais um dos incontáveis assassinatos raciais pela polícia americana em décadas: uma amiga escritora bem lembrou a música Ebony and Ivory, “ébano e marfim”, de Paul McCartney: (negros e brancos) “que vivem juntos em perfeita harmonia”. Ébano e marfim, dois dos materiais usados nos talões dos melhores violinos: peça que retesa a crina e serve para o instrumentista manobrar a vareta, superando as mais intricadas passagens e suaves nuanças – em alusão poética).
Há também uma particularidade nessa amálgama de ébano e marfim a fazê-la tão especial; outra amiga, ex-jornalista da Veja, trouxe luz à questão. Na manifestação contra a violência de policiais brancos, todos estavam unidos, civilização contra a barbárie, tendo como bandeira de luta um crime racial cujos ecos repercutiram em protestos pelo mundo e até no Brasil. Racismo é muito mais do que ofender e humilhar negros, latinos e muçulmanos, é preteri-los nos empregos e oportunidades, é tratá-los como seres diferentes (daí o black lives matter, “vidas negras importam”).
Martin Luther King, Jr.
Não ouvi o canto lamentoso we shall overcome someday (“nós conquistaremos, um dia”) das marchas de um dos maiores líderes e oradores da história, Martin Luther King Jr., o homem do grande discurso I had a dream, “eu tive um sonho”. O ódio racial, fruto do segregacionismo americano e de tantos países, ressurge mais forte em razão da atual conjuntura política - o fascismo populista que toma corpo tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil. Racismo e fascismo, qual xifópagos unidos por um elo forjado em aço, é liga que deve ser rompida e ambos eliminados já, a qualquer custo.
Inegável que o acúmulo de tensões do isolamento social desses meses elevou a temperatura emocional ao vermelho nos EUA, cujo povo sofre com o avanço recorde da Covid-19. Multidões revoltadas, energias represadas até o limite, cortaram amarras em mais de 400 cidades em 50 dos estados americanos, furaram o cerco de quarentenas, barricadas, policiais armados e toques de recolher. E, mesmo após quase duas semanas, no dia 6, mais de um milhão marcharam pelo país.
Ku-Klux-Klan
O presidente americano vê trincar a maioria que o levaria de volta à Casa Branca, a única coisa que parece importar além de uma prepotente e inepta liderança. Com America First, ofende outras nações, eivado de radicalismos xenofóbicos e preconceituosos sob a égide da extrema direita, até da medievalesca Ku-Klux-Klan. Em busca de bodes expiatórios, Trump conclamou os governadores de seu país a combaterem com energia as manifestações.
Zumbi
Enquanto isso, o que acontecia no Brasil? Sergio Camargo, negro – necessário frisar -, nomeado presidente da Fundação Cultural Palmares, foi exonerado por uma ordem da Justiça, depois revogada. Novamente entronizado no cargo, o pivô da saída de Regina Duarte expressa-se não titular de um cargo, e menos ainda como um negro que dirige uma fundação que honra Zumbi dos Palmares, um quilombola assassinado no século 17. Camargo tornou-se porta-voz negro da direita branca radical e contumaz nos ataques aos seus irmãos de cor.
(Katiadoolodum)
Em tom racista, julgando-se escudado pela cor da própria pele, agrediu: “Zumbi era um filho da puta que escravizava pretos”, “o movimento negro é escória maldita”, enquanto no mundo George Floyd se tornava símbolo da luta pela igualdade de direitos. A uma mãe de santo, parte da rica cultura afro-brasileira, Camargo referiu-se jocosamente como “macumbeira”, e que “macumbeiro não terá um centavo da autarquia” frases amplamente noticiadas pela imprensa - como se o erário público fosse de seu bolso e a seu absurdo critério.  
Sergio Camargo (horadopovo.com.br)
Andreia Sadi, da Globonews, disse na TV: “Sergio Camargo está no governo a despeito de suas falas. No momento em que o mundo se levanta contra o racismo, manter Camargo no cargo é avalizar suas declarações como política de governo”.
Juracy e Castelo
Juracy Magalhães, general-embaixador do Brasil nos EUA de Castelo Branco e Costa e Silva, proferiu uma frase-símbolo, desnudando a subserviência do Brasil de então: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Hoje, vivemos uma caricatura do modelo Trump, apesar de a nação americana ser amiga e não culpada como um todo pelos crimes raciais: há tantas coisas que poderiam nos servir de exemplo! Como, agora, a opção pela civilidade contra a barbárie e um racismo endêmico e belicoso.
George Floyd foi enterrado no dia 9 de julho de 2020.
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3º programa em meu canal do Youtube: 

quinta-feira, 4 de junho de 2020

AUTOR E ESTILO, O PUNGUISTA E O LÉXICO DA PANDEMIA


Entender a própria escrita é fundamental para redigir melhor. Nos assuntos acadêmicos usei normas e cânones da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas), que padroniza as técnicas de produção - princípios básicos, como rodapés, citações, recuos, bibliografia. Em um jornal ou revista cedo a outras regras bem mais brandas, a depender da linha do veículo e do público que o lê.
Em meu blog a coisa muda de figura. Liberdade de redação, imagens, diagramação, a busca por um estilo (Millôr se gabava: “enfim, um escritor sem estilo”). Tudo fora das limitações dos ‘toques’ (caracteres com espaços) e o quanto na publicação me é reservado. Já na crônica há fatos com algum sabor literário, mas longe da ‘grande forma’, um romance, como na música uma sinfonia.
Se há estilo no que escrevo, ele foi consolidado desde a escola e as leituras da adolescência. Essencial foi a presença constante de meu pai, o escritor Autran Dourado, que após mais de 30 livros e uma dúzia de traduções deixou uma obra inconfundível. Lições paternas... Uma frase, um comentário que fosse me bastavam. Lembro-me de ouvi-lo falar em seduzir o leitor para “bater-lhe a carteira”: distraí-lo para chegar ao que realmente interessa. Ficou marcado.
Livros dele, como Poética de Romance – Matéria de Carpintaria, trazem orientações sobre o escrever e a boa língua portuguesa. Por revelar truques e artifícios, um colega escritor fez uma piada, disse que ele estaria ‘entregando tudo’ do ofício. Eu penso que essa técnica do pungueio já começa pelo título do texto (pungueio é o que faz o punguista, batedor de carteiras, acabo de descobrir no Houaiss procurando sobre o ato do meliante. Aliás, se o leitor que procura uma palavra no dicionário ampliará seus horizontes e vocabulário).
Jorge Luís Borges
Ao enviar um texto para o editor, costumo avisar que o título definitivo está no corpo do artigo, e não no nome do arquivo do e-mail, já que mudar é uma rotina que só é encerrada após clicar em ‘enviar’. O que me   lembra o argentino Jorge Luís Borges (1989-1996), segundo quem a obra só termina quando está impressa.
Morte de Inês de Castro
Véspera da entrega de minha tese de doutorado. Dez pesados volumes no chão da sala e eu folheando o meu, até que foi se desencadeando um processo enlouquecedor: ah, isto não! Apagava com o velho ‘branquinho’ e corrigia com caneta. Cheguei a colar uma tirinha de papel impresso sobre algumas palavras em cada um dos volumes. Fechei tudo e fui dormir, pois sempre haveria o que mudar, nunca estaria satisfeito, e com o texto entregue eu me libertaria (lembrei Camões: “Inês é morta”).
Autran Dourado, escritor
Meu pai era um artesão, um ourives dos minúsculos rabiscos taquigráficos criptografados nos cartõezinhos que levava no bolso. Depois, passava a elaborar o texto  tecla por tecla, palavra por palavra em sua Remington. Datilografava, corrigia no papel, batia tudo novamente, relia, corrigia. E alguém ainda lhe disse o senhor escreve complicado, tive de ler três vezes, ele respondeu mas eu escrevi vinte! (Tento aí um pouco do diálogo no estilo paterno, sem aspas ou travessões).
Com um pouco de experiência, percebi que o melhor é esboçar de vez um ‘boneco’ do artigo – algo como o ‘copião’, a matriz bruta de um filme -, para alterá-lo e editá-lo aos poucos. Fechado meu ‘textão’, releio umas duas vezes no dia seguinte, depurando-o, as datas e fontes anotadas, e no dia subsequente e depois no outro, até dá-lo  por concluído.
Coronas sobre notas
Penso em quatro tipos básicos de títulos: o que diz pouco e deixa o texto trabalhar sozinho; um segundo, que como uma reportagem abre logo o jogo (serve também para aquele preguiçoso ‘leitor de títulos’); um outro ‘bate a carteira’, como dizia meu pai, atrai o cidadão para mais adiante levá-lo ao que interessa. Variante minha é “Corona, fermata, grande pausa e cadenza”. Por mais estranhos que esses termos sejam ao leigo em música,  ‘corona’ apela ao subconsciente do leitor, onde está hospedado sem pedir licença o medo do vírus da pandemia. É isso que ele, até sem saber, vai procurar - e lá pelas tantas encontrar. Por fim, há um quarto tipo, quase um mapa do caminho do texto, que é o caso do presente artigo, um roteiro a ser cumprido sobre uma sequência pré-concebida.
[Falando de português e pandemia, existe um estranho léxico particular da doença. Repórteres de TV generalizam com ‘a’ Covid, quando o substantivo é de dois gêneros (Houaiss): a Covid é a doença, o Covid é o vírus (daí, vacina contra o Covid, fulano está com a covid). Em boa parte das emissoras fala-se récorde de contaminações, como no inglês record. Em português, o correto é recorde mesmo (acentua-se o 'o'); por razões óbvias, algumas TVs não querem menção a certa concorrente, daí a pronúncia exótica. Já mesmo em um assunto legal dizem que fulano foi citado no caso dos respiradores, quando na verdade foi apenas mencionado. Parece que o sujeito foi intimado ou preso por alguma autoridade. Por isso, tenho evitado citar uma pessoa, menciono-a apenas. Mas cito, claro, letras de músicas, frases, livros. Outro vício: não cabe ‘mandato judicial’ algum para busca ou prisão: possui mandato quem é investido de cargo eletivo ou por designação com prazo certo. Mandado é quando a autoridade manda cumprir uma ordem]
memoriasdeisolamento@gmail.com
A ideia deste artigo, da escrita aos vícios covidianos, surgiu com o livro que acaba de me chegar às mãos. Em Memórias de Isolamento, de minha autoria, observo o que tenho aprendido nessas décadas. O título demorou a surgir: não quis combinar a preposição ‘de’ com artigos definidos ou indefinidos, como em “Memórias do Cárcere”, do Graciliano, ou “Memórias de um sargento de milícias”, do Manuel de Almeida. Gosto da simples preposição em Mémoires de Guerre, do De Gaule. Sentido tão amplo que serve até para a guerra pandêmica que estamos vivendo.
[Assista ao segundo programa do meu Canal:
 https://www.youtube.com/watch?v=L-xbNHbPIYw&t=3s ]