Entender a própria escrita é fundamental para redigir melhor. Nos assuntos
acadêmicos usei normas e cânones da ABNT (Associação Brasileira de Normas
Técnicas), que padroniza as técnicas de produção - princípios básicos, como rodapés,
citações, recuos, bibliografia. Em um jornal ou revista cedo a outras regras bem mais brandas, a depender
da linha do veículo e do público que o lê.
Em
meu blog a coisa muda de figura. Liberdade de redação, imagens,
diagramação, a busca por um estilo (Millôr se gabava: “enfim, um escritor sem
estilo”). Tudo fora das limitações dos ‘toques’ (caracteres com espaços) e o quanto na publicação me é
reservado. Já na crônica há fatos com algum sabor literário, mas longe da ‘grande
forma’, um romance, como na música uma sinfonia.
Se
há estilo no que escrevo, ele foi consolidado desde a escola e as leituras
da adolescência. Essencial foi a presença constante de meu pai, o escritor Autran
Dourado, que após mais de 30 livros e uma dúzia de traduções deixou uma obra inconfundível.
Lições paternas... Uma frase, um comentário que fosse me bastavam. Lembro-me de
ouvi-lo falar em seduzir o leitor para “bater-lhe a carteira”: distraí-lo para chegar
ao que realmente interessa. Ficou marcado.
Livros
dele,
como Poética de Romance – Matéria de Carpintaria, trazem orientações sobre o
escrever e a boa língua portuguesa. Por revelar truques e artifícios, um colega
escritor fez uma piada, disse que ele estaria ‘entregando tudo’ do ofício. Eu penso
que essa técnica do pungueio já começa pelo título do texto (pungueio é o que
faz o punguista, batedor de carteiras, acabo de descobrir no Houaiss procurando
sobre o ato do meliante. Aliás, se o leitor que procura uma palavra no dicionário ampliará seus horizontes e vocabulário).
Jorge Luís Borges |
Ao
enviar um texto para o editor, costumo avisar que o título
definitivo está no corpo do artigo, e não no nome do arquivo do e-mail, já que mudar é
uma rotina que só é encerrada após clicar em ‘enviar’. O que me lembra o argentino Jorge Luís Borges
(1989-1996), segundo quem a obra só termina quando está impressa.
Morte de Inês de Castro |
Véspera
da entrega de minha tese de doutorado. Dez pesados volumes no
chão da sala e eu folheando o meu, até que foi se desencadeando um processo enlouquecedor: ah,
isto não! Apagava com o velho ‘branquinho’ e corrigia com caneta. Cheguei a colar
uma tirinha de papel impresso sobre algumas palavras em cada um dos volumes. Fechei
tudo e fui dormir, pois sempre haveria o que mudar, nunca estaria satisfeito, e com o texto entregue eu me
libertaria (lembrei Camões: “Inês é morta”).
Autran Dourado, escritor |
Meu
pai era um artesão, um ourives dos minúsculos rabiscos
taquigráficos criptografados nos cartõezinhos que levava no bolso. Depois,
passava a elaborar o texto tecla por tecla,
palavra por palavra em sua Remington. Datilografava, corrigia no papel, batia
tudo novamente, relia, corrigia. E alguém ainda lhe disse o senhor escreve complicado,
tive de ler três vezes, ele respondeu mas eu escrevi vinte! (Tento aí um pouco
do diálogo no estilo paterno, sem aspas ou travessões).
Com
um pouco de experiência, percebi que o melhor é esboçar de vez um
‘boneco’ do artigo – algo como o ‘copião’, a matriz bruta de um filme -, para
alterá-lo e editá-lo aos poucos. Fechado meu ‘textão’, releio umas duas vezes no dia seguinte,
depurando-o, as datas e fontes anotadas, e no dia subsequente e depois no
outro, até dá-lo por concluído.
Coronas sobre notas |
Penso em quatro tipos básicos de títulos: o que diz pouco e deixa
o texto trabalhar sozinho; um segundo, que como uma reportagem abre logo o jogo
(serve também para aquele preguiçoso ‘leitor de títulos’); um outro ‘bate a carteira’,
como dizia meu pai, atrai o cidadão para mais adiante levá-lo ao que interessa. Variante
minha é “Corona, fermata, grande pausa e cadenza”. Por mais estranhos que esses
termos sejam ao leigo em música, ‘corona’ apela ao subconsciente do leitor,
onde está hospedado sem pedir licença o medo do vírus da pandemia. É isso que ele, até sem saber,
vai procurar - e lá pelas tantas encontrar. Por fim, há um quarto tipo, quase um
mapa do caminho do texto, que é o caso do presente artigo, um roteiro a ser cumprido sobre uma sequência pré-concebida.
[Falando de português e pandemia, existe um estranho léxico particular da doença. Repórteres de TV generalizam
com ‘a’ Covid, quando o substantivo é de dois gêneros (Houaiss): a Covid é a
doença, o Covid é o vírus (daí, vacina contra o Covid, fulano está com a covid). Em boa parte das emissoras fala-se récorde de
contaminações, como no inglês record. Em português, o correto é recorde
mesmo (acentua-se o 'o'); por razões óbvias, algumas TVs não querem menção a certa concorrente,
daí a pronúncia exótica. Já mesmo em um assunto legal dizem que fulano foi citado no
caso dos respiradores, quando na verdade foi apenas mencionado. Parece que o sujeito foi intimado ou preso por alguma autoridade. Por isso, tenho evitado citar
uma pessoa, menciono-a apenas. Mas cito, claro, letras de músicas, frases,
livros. Outro vício: não cabe ‘mandato judicial’ algum para busca ou prisão: possui
mandato quem é investido de cargo eletivo ou por designação com prazo certo. Mandado
é quando a autoridade manda cumprir uma ordem]
memoriasdeisolamento@gmail.com |
A
ideia deste artigo, da escrita aos vícios covidianos, surgiu com
o livro que acaba de me chegar às mãos. Em Memórias de Isolamento, de minha
autoria, observo o que tenho aprendido nessas décadas. O título demorou a
surgir: não quis combinar a preposição ‘de’ com artigos definidos ou
indefinidos, como em “Memórias do Cárcere”, do Graciliano, ou “Memórias de um sargento
de milícias”, do Manuel de Almeida. Gosto da simples preposição em Mémoires de
Guerre, do De Gaule. Sentido tão amplo que serve até para a guerra pandêmica que
estamos vivendo.
[Assista ao segundo programa do meu Canal:
https://www.youtube.com/watch?v=L-xbNHbPIYw&t=3s ]
[Assista ao segundo programa do meu Canal:
https://www.youtube.com/watch?v=L-xbNHbPIYw&t=3s ]
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