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quinta-feira, 4 de junho de 2020

AUTOR E ESTILO, O PUNGUISTA E O LÉXICO DA PANDEMIA


Entender a própria escrita é fundamental para redigir melhor. Nos assuntos acadêmicos usei normas e cânones da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas), que padroniza as técnicas de produção - princípios básicos, como rodapés, citações, recuos, bibliografia. Em um jornal ou revista cedo a outras regras bem mais brandas, a depender da linha do veículo e do público que o lê.
Em meu blog a coisa muda de figura. Liberdade de redação, imagens, diagramação, a busca por um estilo (Millôr se gabava: “enfim, um escritor sem estilo”). Tudo fora das limitações dos ‘toques’ (caracteres com espaços) e o quanto na publicação me é reservado. Já na crônica há fatos com algum sabor literário, mas longe da ‘grande forma’, um romance, como na música uma sinfonia.
Se há estilo no que escrevo, ele foi consolidado desde a escola e as leituras da adolescência. Essencial foi a presença constante de meu pai, o escritor Autran Dourado, que após mais de 30 livros e uma dúzia de traduções deixou uma obra inconfundível. Lições paternas... Uma frase, um comentário que fosse me bastavam. Lembro-me de ouvi-lo falar em seduzir o leitor para “bater-lhe a carteira”: distraí-lo para chegar ao que realmente interessa. Ficou marcado.
Livros dele, como Poética de Romance – Matéria de Carpintaria, trazem orientações sobre o escrever e a boa língua portuguesa. Por revelar truques e artifícios, um colega escritor fez uma piada, disse que ele estaria ‘entregando tudo’ do ofício. Eu penso que essa técnica do pungueio já começa pelo título do texto (pungueio é o que faz o punguista, batedor de carteiras, acabo de descobrir no Houaiss procurando sobre o ato do meliante. Aliás, se o leitor que procura uma palavra no dicionário ampliará seus horizontes e vocabulário).
Jorge Luís Borges
Ao enviar um texto para o editor, costumo avisar que o título definitivo está no corpo do artigo, e não no nome do arquivo do e-mail, já que mudar é uma rotina que só é encerrada após clicar em ‘enviar’. O que me   lembra o argentino Jorge Luís Borges (1989-1996), segundo quem a obra só termina quando está impressa.
Morte de Inês de Castro
Véspera da entrega de minha tese de doutorado. Dez pesados volumes no chão da sala e eu folheando o meu, até que foi se desencadeando um processo enlouquecedor: ah, isto não! Apagava com o velho ‘branquinho’ e corrigia com caneta. Cheguei a colar uma tirinha de papel impresso sobre algumas palavras em cada um dos volumes. Fechei tudo e fui dormir, pois sempre haveria o que mudar, nunca estaria satisfeito, e com o texto entregue eu me libertaria (lembrei Camões: “Inês é morta”).
Autran Dourado, escritor
Meu pai era um artesão, um ourives dos minúsculos rabiscos taquigráficos criptografados nos cartõezinhos que levava no bolso. Depois, passava a elaborar o texto  tecla por tecla, palavra por palavra em sua Remington. Datilografava, corrigia no papel, batia tudo novamente, relia, corrigia. E alguém ainda lhe disse o senhor escreve complicado, tive de ler três vezes, ele respondeu mas eu escrevi vinte! (Tento aí um pouco do diálogo no estilo paterno, sem aspas ou travessões).
Com um pouco de experiência, percebi que o melhor é esboçar de vez um ‘boneco’ do artigo – algo como o ‘copião’, a matriz bruta de um filme -, para alterá-lo e editá-lo aos poucos. Fechado meu ‘textão’, releio umas duas vezes no dia seguinte, depurando-o, as datas e fontes anotadas, e no dia subsequente e depois no outro, até dá-lo  por concluído.
Coronas sobre notas
Penso em quatro tipos básicos de títulos: o que diz pouco e deixa o texto trabalhar sozinho; um segundo, que como uma reportagem abre logo o jogo (serve também para aquele preguiçoso ‘leitor de títulos’); um outro ‘bate a carteira’, como dizia meu pai, atrai o cidadão para mais adiante levá-lo ao que interessa. Variante minha é “Corona, fermata, grande pausa e cadenza”. Por mais estranhos que esses termos sejam ao leigo em música,  ‘corona’ apela ao subconsciente do leitor, onde está hospedado sem pedir licença o medo do vírus da pandemia. É isso que ele, até sem saber, vai procurar - e lá pelas tantas encontrar. Por fim, há um quarto tipo, quase um mapa do caminho do texto, que é o caso do presente artigo, um roteiro a ser cumprido sobre uma sequência pré-concebida.
[Falando de português e pandemia, existe um estranho léxico particular da doença. Repórteres de TV generalizam com ‘a’ Covid, quando o substantivo é de dois gêneros (Houaiss): a Covid é a doença, o Covid é o vírus (daí, vacina contra o Covid, fulano está com a covid). Em boa parte das emissoras fala-se récorde de contaminações, como no inglês record. Em português, o correto é recorde mesmo (acentua-se o 'o'); por razões óbvias, algumas TVs não querem menção a certa concorrente, daí a pronúncia exótica. Já mesmo em um assunto legal dizem que fulano foi citado no caso dos respiradores, quando na verdade foi apenas mencionado. Parece que o sujeito foi intimado ou preso por alguma autoridade. Por isso, tenho evitado citar uma pessoa, menciono-a apenas. Mas cito, claro, letras de músicas, frases, livros. Outro vício: não cabe ‘mandato judicial’ algum para busca ou prisão: possui mandato quem é investido de cargo eletivo ou por designação com prazo certo. Mandado é quando a autoridade manda cumprir uma ordem]
memoriasdeisolamento@gmail.com
A ideia deste artigo, da escrita aos vícios covidianos, surgiu com o livro que acaba de me chegar às mãos. Em Memórias de Isolamento, de minha autoria, observo o que tenho aprendido nessas décadas. O título demorou a surgir: não quis combinar a preposição ‘de’ com artigos definidos ou indefinidos, como em “Memórias do Cárcere”, do Graciliano, ou “Memórias de um sargento de milícias”, do Manuel de Almeida. Gosto da simples preposição em Mémoires de Guerre, do De Gaule. Sentido tão amplo que serve até para a guerra pandêmica que estamos vivendo.
[Assista ao segundo programa do meu Canal:
 https://www.youtube.com/watch?v=L-xbNHbPIYw&t=3s ]

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