“Elogio
da Loucura”, do neerlandês Erasmo de Rotterdam
(1466-1536), padre, humanista e pensador, é um ensaio crítico-satírico sobre os
vícios da Igreja Católica Romana e da sociedade da época. Sua versão do Novo
Testamento influenciou decisivamente a Reforma Protestante. Assim pensei o
título deste artigo: longe de ser uma apologia ao ato de faltar com a verdade é
uma irônica digressão crítica sobre a arte de mentir.
"Tudo o que quero é a verdade, dê-me um pouco de verdade" |
John
Lennon satirizou profissões e contrastes sociais entre ricos
e pobres em “I don’t wanna be a soldier, mama, I don’t wanna die” (“Eu não
quero ser um soldado, mamãe, eu não quero morrer”), uma dicotomia radical que
chega a “Eu não quero ser um advogado, mamãe, eu não quero mentir”. Ora, a
função precípua do exercício da advocacia, seja um representante particular ou
dativo (cedido pelo Estado), é defender o cliente. Não raro alguns rejeitam uma
causa, seja por se julgarem suspeitos ou por razões de foro íntimo, que podem
ir da não concordância com o pleito a outros motivos, como os de natureza religiosa.
Uma
das mais populares das 201 fábulas catalogadas de Esopo (620-564
a.C.) é conhecida no Brasil como “Pedro e o Lobo” (em inglês, do grego, “The
boy who cried wolf!”, “O garoto que gritou lobo!”), que entre nós ficou conhecida
com o nome de um menino. Há diversos outros títulos em outros idiomas,
como “O pastorzinho e os fazendeiros”, mas todos reportam à ideia inicial de
Esopo, a história da criança que toda vez que ia ao bosque retornava gritando “socorro,
tem um lobo!”
No
princípio, os gritos de Pedrinho apavoravam, mas, não tendo
sido encontrado o animal por diversas vezes, passaram a ignorar seus pedidos desesperados.
Até que um dia... Crau! (Não poderia faltar a ‘moral da história’ da fábula: aos mentirosos
contumazes, se um dia contarem a verdade, não será dado crédito).
Mary "Wilcox" Baker |
No século 19, Mary “Wilcox” Baker ficou
conhecida como “A princesa Caraboo”. Segundo a história, a moça, de
personalidade confusa, mudou-se do interior para trabalhar em Exeter como
baby-sitter, onde se tornou famosa como contadora de histórias. Mudou-se para
Londres, e, tresloucada, inventou que era uma princesa que fora sequestrada por
piratas e tinha logrado fugir nadando até a praia. É difícil hoje aceitar que a
história teve credibilidade, mas as pessoas da época, comovidas, queriam crer
que tudo era mesmo sincero.
Hitler e Goebbels |
Joseph Goebbels, o ministro da propaganda de Hitler,
disse: “repita uma mentira muitas vezes e ela se tornará verdade” (vulgo “uma
mentira repetida dez vezes...”). A psicanálise
chama isso de ‘efeito de ilusão da verdade’. Imagine um jogo de grupo no qual os
participantes, em círculo, têm de dar notas à verossimilhança de certas frases,
como “uma ameixa seca é uma ameixa desidratada”. Porém, se a frase for “uma
tâmara é uma ameixa seca”, se alguém afirmar que é verdadeira, pessoas do grupo
podem crê-la real, daí criando a ‘ilusão da verdade’, que surge facilmente em situações coletivas.
Mao e seus guarda-costas |
Grandes ditadores, como Mao-Tsé-Tung, criaram fantasias
acerca de seus poderes às vezes quase sobre-humanos. Em 6 de julho de 1966, aos
77 anos, Mao teria atravessado o caudaloso rio Yangtze, sucesso que, ao lado de
fotos e outros documentos maquiados e montados, reverteu uma curva de decadência
política e o reergueu como o grande líder da revolução chinesa,. Um grande líder
tem de demonstrar força, uma quase indestrutibilidade, quando não é tido como imortal,
caso de Sebastião I, de Portugal - mesmo morto, ele tinha seu retorno aguardado
pelo povo – daí a expressão ‘sebastianismo’.
Estátua de El Cid, em Valencia |
El Cid (do mourisco, ‘o senhor’), ou Don Rodrigo,
príncipe de Castella, foi um líder guerreiro do século 11 na luta entre
cristãos e mouros. Senhor de tantas vitórias, não poderia morrer, seu exército
seria derrotado. Reza a lenda que, após seu assassinato em um ataque dos mouros
ao seu castelo em Valência, em 1099, sua esposa teria colocado seu corpo em uma
armadura sobre um cavalo, empunhando escudo e lança, colocando-o à frente de
seu exército. Com El Cid à frente, símbolo de luta e vitórias, os inimigos,
apavorados, fugiram, mas foram capturados e mortos – a figura inerte de El Cid liderando
a vitória.
O perjúrio (perjury, em inglês), no
Brasil é crime chamado falso testemunho, tipificado no Art. 342 do Código
Penal: “fazer afirmação falsa, negar ou calar a verdade”, com pena
de 2 a 4 anos e multa. Pode-se ficar em silêncio em um inquérito policial, como
facultam a lei brasileira e a 5ª emenda americana, mas em juízo o cidadão é obrigado
a dizer a verdade.
Já a chamada mentirinha social é aceita, com as devidas cautelas, como quando alguém está
com dor de barriga e manda dizer a quem telefona que está em reunião. Há ainda
outras, danosas à sociedade, como as fake news. No dia 8 de junho, sob uma pressão
bilionária de anunciantes internacionais que retiraram suas contas do Facebook,
a maior rede social fechou no Brasil um número enorme de perfis que, juntos,
tinham até um milhão de seguidores com potencial de compartilhamento, fato que
vem se somar ao inquérito que tramita no STF e à CPMI instaurada no Congresso.
O tema: propagação do ódio, do racismo e de informações falsas por meio da
Internet. A mentira vai ao banco dos réus, mas há uma precaução a ser tomada no combate a mentiras criminosas: que tomem o cuidado de nunca atropelar a
liberdade de expressão em seus limites legais.
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[Livro: Memórias de Isolamento - Saudosos Velhos Amigos e Outras Crônicas. Pedidos pelo e-mail memoriasdeisolamento@gmail.com ]
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[Livro: Memórias de Isolamento - Saudosos Velhos Amigos e Outras Crônicas. Pedidos pelo e-mail memoriasdeisolamento@gmail.com ]
Muito interessante, Henrique! Muito atual!
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