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sábado, 19 de dezembro de 2020

A LETARGIA ARTÍSTICA E O MERCADO DE ARTE NA CRISE

 


Sempre procuro a etimologia, a origem e o significado das palavras para melhor aplicá-las. Busquei no Houaiss uma breve definição para letargia (do grego lethargía): ”estado de profunda inconsciência, semelhante ao sono profundo, do qual a pessoa pode ser despertada, mas ao qual retorna logo a seguir”. É exatamente o que penso do estado atual das artes de qualidade, principalmente as chamadas performáticas - que acontecem com a presença de público, tais como a música, o teatro e a dança. Em tempos de pandemia, as não-performáticas, como literatura, poesia, composição, pintura, encontram terreno fértil para criação: isolamento, introspecção, neurose e uma espécie de introjeção, reflexo de acontecimentos externos como vindos do interior de cada um.


As artes performáticas – além dos artistas, os profissionais de apoio, técnicos e, claro, o ensino – estão seriamente prejudicadas e algumas em risco. O isolamento as perturba, e apesar de soluções heterodoxas felizes como salas de concerto e shows preparadas, espaçamento entre as pessoas, isolamento dos artistas, ainda se busca soluções criativas para manter vivas essas manifestações, mesclando técnicas online e lives com hora marcada, como se estivéssemos assistindo aos eventos em nossas casas. Mas sem o calor, a presença, a respiração do espectador vizinho, as palmas em efeito coro, os eventuais gritos de “bravo”, “bis”, ou mesmo algum “iuhu”, é inegável que muito se perde.


Nem se fale na óbvia queda de qualidade, uma vez que o público é parte das as manifestações artísticas desde seu surgimento - o ‘fazer arte’ -, e nunca houve um filtro à boa apresentação, algo entre artista e o público, que interagem entre si. Quem já se apresentou cantando, atuando, tocando ou dançando sabe do que estou falando. Aquela curiosidade que vem antes de se entrar no palco (tem público? Casa cheia?) até os naturais sorrisos ao pisar no tablado, a adrenalina, bom hormônio em doses certas que, al punto, acelera os  batimentos cardíacos. Tudo serve para criar um ambiente propício, mesmo com os olhos enevoando a plateia com a chamada “quarta parede”, para que a sensação de ver os rostos do público não invada com tanta força o espaço que é território e domínio do artista.


No final, perde toda a cadeia de profissionais envolvidos nas performances. Mas e as artes não-performáticas? Creia, sobrevivem em plena crise e, em alguns casos, muito bem, obrigado! Matéria de O Estado de SP (11/12) menciona uma análise do mercado de arte em plena Covid-19 em países latino-americanos. Foram consultados marchands, galerias e leiloeiros de pequena estatura, com movimentações de até R$ 500 mil ao ano. Mesmo com a Covid atuando na cena em 2020, as vendas foram bem mais significativas do que no ano anterior. O estudo foi dirigido pela Além Consultoria em Cultura, com a Associação Brasileira de Arte Contemporânea e a Agência Brasileira de Promoção Apex-Brasil.


O mercado brasileiro, pródigo em excelentes autores na área das artes plásticas, teve 78 marchands consultados, e entre eles os que movimentaram além de R$ 10 milhões em 2019, mantendo ou superando as vendas em plenos tempos de Covid. Os negócios chegaram a subir 58% neste ano nos três primeiros meses, de abril a junho sofreram alguma variação negativa e de julho a setembro registraram um crescimento de 55%. O desaparecimento dos leilões ao vivo, devido à pandemia, fez surgirem formas alternativas: visitas presenciais para análise dos objetos à venda com hora marcada, para evitar aglomerações, e pregões virtuais para lances nas obras desejadas. A disputa não sofreu, cresceu. Falamos de um mercado que tem nomes como Di Cavalcanti, Portinari, Guignard, Lígia Clark, Iberê Camargo, Krajcberg, Weissman, Tarsila e Segall, que disputam lances nas vendas da Christie’s e Sotheby’s em NY e Londres.


O que há por trás dessa aparente contradição no mundo artístico? Pura questão financeira,  investimentos mesmo. Ora, vejamos: com as Bolsas em sucessivas quedas, perdas no mercado de capital – as aplicações são frequentemente deficitárias -, o dólar, que já encostou nos R$ 6,00 e hoje descansa sobre os R$ 5,00, o rumo errático da economia do governo, investir em quê? Ora, com a Selic congelada nos 2% a.a., segurando à unha as taxas de financiamento para atrair o consumidor, principalmente o de menor renda na expectativa de aquecer um mercado de trabalho em plena recessão, o investidor abastado e mais esclarecido dispõe de um mercado de que sempre participou, e que agora lhe oferece bons frutos: obras de arte. E não é sempre por amor: um quadro na parede pode guardar em si altos valores, ocupando pequenos espaços e adornando as residências das elites.


Não é um santuário de castas virgens; não raro, é  desvio de dinheiro público e negociatas emoldurado até ser possível usá-lo de forma nem sempre lícita. Entre as ações da operação Lava-Jato e de juízes como Fausto de Sanctis, que ‘grampeou’ o banqueiro Edemar Cid Ferreira, do Banco Santos, foram milhões de dólares em objetos de arte (foto).


O artista não escolhe quem frui de sua arte. O problema é que, entre as chamadas artes plásticas e performáticas, as primeiras são também investimento financeiro, e as de palco são subvencionadas pelo poder público. O capital privado brasileiro, assim como os governos, não veem retorno político ou financeiro que os recompense, exceção feita aos estereotipados “famosos” da TV e seus clones.

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