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sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

A GUERRA DAS VACINAS

 


Era o ano de 1904. Presidente da República, Rodrigues Alves ainda enfrentava os ranços da ditadura de Floriano Peixoto, que já vinha de Deodoro, tempos eivados pelo forte estigma positivista de Comte e Durkheim. O grande médico sanitarista Oswaldo Cruz liderava uma campanha de vacinação em massa contra o vírus da varíola, doença que matava em 30% dos casos e deixava os sobreviventes com sequelas como cegueira e bolhas, feridas e cicatrizes pelo corpo. Houve campanha mundial de vacinação em massa, mas a OMS somente veio a declarar a doença extinta em 1980.


Por trás do movimento que ocasionou uma rebelião popular, chamada Revolta da Vacina, havia uma trama dos velhos positivistas para deflagrar um golpe de Estado, estimulando o movimento na capital da República, Rio de Janeiro. O povo, insuflado, não se conteve e foi às ruas: uma lei imporia aos cidadãos não-vacinados uma série de restrições, tais como viagens, empregos, matrículas em escolas e até casamentos. O país já estava assolado pela febre amarela e a peste bubônica, e o medo da vacina antivariólica balançava sobre a cabeça do povo como a espada de Dâmocles. O golpe de Estado aconteceu, levou 30 vidas, centenas à prisão e deportou outros tantos. Mas teve vida curta: oito dias.


Um século e quinze anos depois, sobre um outro vírus, o SARS-CoV-2, ou Covid-19, no dia 25 de novembro de 2020 o conceituado jornal norte-americano The New York Times publicou matéria intitulada “Depois de admitir erro, AstraZeneca enfrenta difíceis questões sobre sua vacina”, e disse que “alguns dos participantes do experimento somente receberam uma dose parcial da vacina”. E mais: “especialistas disseram que a divulgação irregular pela farmacêutica comprometeu a confiança”. Importante lembrar que o NY Times é um jornal americano e que a vacina da AstraZeneca uma parceria privada com a Universidade de Oxford, menina dos olhos dos ingleses na pesquisa contra o vírus.

Sir John Bell

No dia seguinte, 26 de novembro, foi a vez do jornal britânico The Guardian noticiar: “Vacina Oxford/AstraZeneca será submetida a novo teste global”, e, completando, “críticos questionam a informação de que ela poderia proteger até 90% das pessoas contra o coronavírus”. Sir John Bell, assessor do governo para assuntos de saúde e professor emérito de medicina, segundo o jornal, desmentiu as informações de que o teste anterior não havia sido corretamente aplicado ou reportado, e disse, literalmente, que “nós não estaríamos ‘cozinhando’ isso enquanto seguíamos em frente”, e que esperava que informações completas e abalizadas por analistas seriam publicadas no jornal de medicina Lancet, no fim de semana”.

Instituto de Ciências Biológicas/USP

Logo no dia seguinte, 27 de novembro, o The Times noticiou: “Antivacinas exploram confusão sobre a vacina de Oxford”: “militantes antivacinação apegam-se à crítica feita à AstraZeneca para respaldar teorias não fundamentadas sobre segurança, e argumentaram que falhas nos experimentos poderiam causar prejuízo à ciência”. De um lado, um noticiário mais azedo do americano NYT, e do outro uma velada defesa da vacina de Oxford pelo britânico The Times. Enquanto isso, entrava um tertius na briga, o grupo antivacina. No Brasil, a microbiologista Natália Pasternak, do ICB/USP e presidente do IQC, apresentou, no Estadão de 27 de novembro,  uma opinião mais técnica, não-política, dizendo que os voluntários a que se refere a suposta falha do consórcio deveriam ter sido simplesmente excluídos da experiência (o que nos induz a crer que a falha ainda poderia ser corrigida).

Sputnik 5

Enquanto a Rússia mantém sob um véu sua vacina, a Sputnik-5 (nome do primeiro satélite a levar animais ao espaço), a China entra em estágio de finalização para a fase 3 da CoronaVac. Enquanto o mundo avança e o que se vê é uma “guerra mundial das vacinas” e uma corrida pela cura, por aqui há uma queda de braço entre os governos federal, via Anvisa, e do estado de São Paulo, que tem o modelo chinês como seu futuro grande trunfo político. Trata-se de uma guerra particular, talvez uma batalha intestina dentro de um conflito de ampla escala, uma disputa estratégica em que os dois governantes travam um embate cujo maior prejudicado será o povo, caso haja obstruções, impedimento ou procrastinação sem motivos científicos de rigor que embasem a Agência de Vigilância.

Sede da Pfizer nos EUA

Enquanto isso, seguem em paz a Johnson & Johnson e a Pfizer americanas, esta última com uma das maiores farmacêuticas do mundo, com sede em NY, receita anual de US$ 51,75 bilhões e ativos de US$ 167,489 bilhões em 2019 (perto de um trilhão de Reais). Em 1987, Gilberto Gil profetizava em uma música, coincidentemente batizada Lunik-9: “Guerra diferente / das tradicionais / guerra de astronautas / nos espaços siderais”. Não, ainda não chegamos a esta modalidade, mas sim a outra, uma espécie de guerra fria do capital, do poder, do lucro e das ambições de governantes, da disputa pela prevalência de um país sobre o outro, uma Guerra Mundial das Vacinas.

Oswaldo Cruz

A disputa de âmbito nacional torna-se uma questão política, talvez uma Batalha das vacinas. E o célebre Oswaldo Cruz, herói brasileiro na campanha de 1904, que dá nome à FioCruz, sede brasileira da AstraZeneca/Oxford e um dos dois maiores centros de pesquisa sobre Covid no país, amargaria ver tanta disputa, tanta ganância e tanta política, e, entrando em campo pela linha de fundo, os velhos antivacinas – e não mais os positivistas do início do século 20, mas os novos donos de outras bandeiras tão retrógradas quanto as deles.

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