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sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

A BÊNÇÃO, SHALOM, BARAKAH, SARAVÁ, EVOÉ!

 

Fratelli Tutti, Papa Francisco!

 


Das músicas memoráveis compostas por Baden Powell e Vinicius de Moraes, o “poetinha”, diplomata e compositor, Samba da Bênção (1962) é uma espécie de oração parte versos, parte falada, com direito a improviso. A letra começa com um elogio à alegria e uma espécie de receita para fazer um bom samba: “É melhor ser alegre que ser triste / Alegria é a melhor coisa que existe / É assim como a luz no coração (...) / Mas pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza / (...) Senão, não se faz um samba, não”. O poeta carioca de educação católica, abraçando a Umbanda, distribui graciosamente as bênçãos à mistura fina brasileira: “Porque o samba nasceu lá na Bahia / E se hoje ele é branco na poesia / (...) Ele é negro demais no coração”. [Trecho deste poema foi citado pelo Papa Francisco no cap. 26:215 da encíclica Fratelli Tutti (“Todos irmãos”): “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”.]


Vinicius proseia, não sem antes apresentar-se como “o branco mais preto do Brasil, na linha direta de Xangô, Saravá!” (Xangô é um orixá ioruba, deus da justiça e da sabedoria). Segue pedindo a bênção a Pixinguinha, Cartola, Nelson Cavaquinho, Cyro Monteiro, Noel Rosa e Tom Jobim, encompridando aqui e ali a fala para tecer suas loas, como mereceram Pixinguinha, “tu que choraste na flauta todas as lágrimas de amor”, Jobim, a quem chama maestro, “parceiro e amigo querido, que já viajaste tantas canções comigo e ainda há tantas por viajar”, e Carlos Lyra, “parceiro cem por cento, você que une a ação ao sentimento e ao pensamento”. Com Baden-Powell Vinicius compôs também Canto de Ossanha, o orixá das ervas medicinais, no sincretismo católico representado por São Benedito (entre os escravos, nas senzalas, as entidades das religiões de origem africana eram simbolizadas por santos católicos, encobrindo as crenças das vistas dos senhorios das casas-grandes). Também da dupla Baden-Vinicius é o Canto de Iemanjá, orixá das águas e filha de Olokun, senhor dos mares, no sincretismo Nossa Senhora.

Maestro Guerra-Peixe

Escolhi o samba de Vinicius e Powell para desejar boas festas especialmente pela encíclica Fratelli Tutti do Papa Francisco, coração aberto aos que adotam religiões afro-brasileiras; os judeus, católicos, islamitas, evangélicos e mesmo os ateus e agnósticos, pois todos, mesmo aqueles que o negam, queiram ou não queiram e saibam ou não, também são filhos de Deus. [Lembro-me do triste episódio acontecido há um ano na UFRJ (Universidade Federal do Rio), quando vários alunos de música se recusaram a cantar Toadas de Xangô, do maestro petropolitano Guerra-Peixe, aliás também autor do hino católico do Colégio Nossa Senhora de Fátima.]

ENM/UFRJ

Uma nova censura tem adentrado debates e travado embates em todo o país, assim como aconteceu na UFRJ. Uma lástima, especialmente quando a laicidade do Estado se encontra abalada e ameaçada, e essa reação à liberdade de criação, censura hoje incubada até pelas vias oficiais, não pode ser bem-vinda contra uma obra de arte no Coro de uma escola do porte da ENM/UFRJ!

Rabino Ruben Sternschein

A bênção, Papa Francisco, o homem da palavra neste mundo, com seu manto mais de humildade do que a pompa da veste de um Sumo Pontífice: pregando a fraternidade, Amém! A bênção, Gabriel Boric, que trilhou o caminho dos justos em busca de livrar o povo chileno do males da sombra de Pinochet - contra o negacionismo, o ódio, o racismo e o extremismo. A bênção rabino Ruben Sternschein, por pregar a paz ao nosso povo judeu, Shalom! A bênção, xeques Rodrigo Jalloul e Mohamad Al Bukai, críticos de qualquer forma de violência como defesa do islamismo, Barakah!

Vinicius e Mãe Menininha

A bênção todos os mais de 615 mil mortos pela Covid-19 e suas famílias; aos que nas ditaduras sofreram e morreram por um ideal chamado criminosamente de ‘delito de opinião’; a bênção todos os verdadeiros evangélicos, os que professam as palavras dos livros sagrados por fé e não enganando ou sendo enganados por ganância política ou financeira de alguns, escudados em alguma Igreja de fantasia. Amém! A bênção Mãe Menininha de Gantois, por cujo terreiro na Bahia passaram, além de Vinicius, Caetano, Gil, Bethânia, Gal, Caymmi, Jorge Amado, enfim, a fina flor da cultura brasileira: Saravá!

A bênção Emanuel, judeu palestino 
que há mais de dois mil anos foi 
perseguido e crucificado por buscar a paz 
e a igualdade para nos salvar: Feliz
Natal, Joyeux Noël, Merry Christmas, 
Feliz Navidad, frohe Weihnachten 
- todos os idiomas do mundo serão poucos -, 
porque somos um só, todos irmãos, e um dia,
independentemente de credo, matiz ideológico 
ou cor da pele, alcançaremos a paz
na plenitude, livres dos bandidos 
sem e com colarinho, dos tiranos 
e dos inimigos do povo, Amém! 


A bênção Vinicius, todos os músicos, bardos e menestréis, por tornarem a sofreguidão da vida humana mais suave e fazerem se abraçar os amantes (e como diziam Lamartine e João de Barro, em Cantores do Rádio (1936), “de noite embalamos teu sono / de manhã nós vamos te acordar”); a bênção poetas e os que escrevem prosas das mais belas, romances e contos, ou registram com honestidade o dia a dia e a história do país e do mundo, sem corromper ou censurar a verdade; a bênção pintores, escultores e artistas de palco: dançarinos, atrizes e atores (e os que viajam em circos e mambembes, ou pelas esquinas das ruas com seus malabares); os cantadores e cururueiros, Evoé!  Aos que me leem, Feliz Natal e Ano Novo. Siamo tutti fratelli!



 

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

GENTILEZAS, SORRISOS, VACINA, LUZ BALÃO


Sexta-feira, 10 de dezembro
. Depois de uma tentativa quatro dias antes que terminou frustrada pela busca por uma vaga para estacionar e uma longa fila, fui receber minha dose de reforço da vacina, dessa vez da Pfizer. O The Guardian publicou: cientistas descobriram que duas doses de AstraZeneca com complemento da americana praticamente garantem contra o ataque da desvairada cepa ômicron! Se necessário, que venha uma quarta dose. Estava decidido: ou ir ou ir.


Segunda tentativa
. Fui ao ginásio Nebam Ayrton Senna, não por acaso nome de um de meus heróis, um vencedor. Mas ainda faltavam vagas para estacionar perto da escola, teria de andar muito e encarar uma rampa com bengala, minha companheira em terrenos irregulares, tanto no declive quanto no aclive. Com o carro, aproximei-me de um guarda municipal e bastou abrir a janela direita para que ele se aproximasse, solícito. Perguntei-lhe onde poderia estacionar, mostrei-lhe a bengala e ele, apontando para dois carros na diagonal, disse que eram de funcionários, só sairiam dali à tarde, e que eu parasse logo atrás. Satisfeito, estacionei de comprido, no sentido da rua. Já ia desligar a chave quando vi o mesmo guarda acenar, me chamando. Fui em frente e ele me disse acabou de sair um, poderia usar uma vaga na diagonal! Com reflexo de músico, bati palmas umas três vezes, em agradecimento. Que gentileza!


Consegui subir pela calçada
até a entrada do ginásio. Desci a rampa me escorando na parede com a mão esquerda; na direta, a bengala mágica, tudo bem devagar. Cruzei com uma senhora de mais de 80 anos que subia e me perguntou se eu precisava de ajuda. Ela estava com um rapazinho em cujo braço se apoiava, que presumo seria seu neto. Não, obrigado, respondi, muito obrigado! Ela ainda deixou escapar um discreto “cuidado”! Cheguei no ginásio, metade das cadeiras ocupadas, nem me sentei, fui logo chamado por uma moça que estava na entrada. Ela me pediu que fosse direto a uma outra atendente, que, de pé com um microfone, anunciava os números das senhas na ordem sorteada, e encaminhou-me logo para a última mesa, vaga, onde um rapaz olhou meus documentos e preencheu a cartela, deixando-a pronta para a vacina. Dirigi-me a uma pequena fila de candidatos prontos para a inoculação e, mal cheguei, era minha vez.


Como aconteceu com todos os outros interlocutores
, fui recebido com gentileza e sorrisos. A enfermeira preparou meu braço, e eu o relaxava lembrando as lições do livro A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen, do filósofo alemão Eugen Herrigel, professor universitário no Japão, que relata sua experiência com um mestre arqueiro budista: não é o braço que joga a seta, ele apenas a solta, como uma criança faz depois de atravessar uma rua com seu pai, deixando ir o dedo que o guiava. Herrigel soltou a flecha e acertou na mosca, num gesto sem ação física. Braço caído e absolutamente inerte, como eu ensinava na prática do arco de instrumentos musicais – está em meu livro O Arco (Vitale) -, nem senti a mão de fada da enfermeira que me aplicou a dose, para depois sorrir e dizer: prontinho, vacinado! Fiz o percurso de volta para o carro e, claro, a tradicional selfie para incentivo na rede social. Foi uma vitória entre gentilezas, sorrisos e amabilidades. Ganhei o dia.


Dia 24/04, da primeira dose da AstraZeneca
. Fui para a Praça Adelaide Guedes, e após uma hora na fila de automóveis cheguei ao drive-thru. Braço na janela, fui logo vacinado. Gentilezas da primeira atendente, que me orientou, e de uma simpática vacinadora. Uma ótima sensação porque, mesmo tendo sido vacinado na minha infância com as doses a que todos os brasileiros têm direito, era a minha primeira inoculação contra o famigerado vírus da Covid.

(Foto: divulgação)

Dia 13/07, segunda dose conforme a cartela de vacinação
. Novas instalações da Prefeitura de Tatuí - aliás, um belo prédio, então ainda por ser inaugurado, pessoas gentis e com sorrisos vincando suas máscaras e cantos dos olhos mostravam o local de cada vacina. Dirigi-me à da AstraZeneca e, feliz, recebi minha segunda cota. Misto de felicidade e alívio, minha proteção estava aumentando! Desta segunda vez, operação muito bem organizada cujo percurso não durou meia hora.


E que venha uma quarta dose
de reforço, como apregoam alguns cientistas - estarei bem protegido, se não surgirem as reticências de uma nova cepa terrível. Mas essa proteção nunca será realmente efetivada sem que um contingente enorme também o faça - a imunização não é um capacete com máscara e tubo de oxigênio, como os dos pilotos de jatos supersônicos: ela precisa de todos, só funcionará para nos libertar com um mínimo de 70% dos cidadãos do mundo vacinados com duas doses – Tatuí chegou a 75,1% na semana passada! Os entraves são a indigência de certas regiões e de muitos países africanos; ou, nos EUA, de cidadãos antivaxxers: 22% da população!


Impossível esquecer Tecendo a Manhã
, do poeta João Cabral, meu favorito ao lado do Drummond: “Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe o grito que um galo antes e o lance a outro, e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos. E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação. A manhã, toldo de um tecido tão aéreo que, tecido, se eleva por si: luz balão”.



  

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

CONSERVATÓRIO DE TATUÍ: PERSPECTIVAS

 


Tendo sido diretor do Conservatório
por dez anos, hoje observo alguns desentendimentos ou mal-entendidos sob ótica privilegiada. Achei por bem opinar pela primeira vez após três anos e meio, pois vejo um cenário ainda obscuro. Durante 30 anos dirigi três das melhores escolas de música do país: a Municipal de São Paulo, a Cantareira (superior) e o Conservatório de Tatuí. Considero-me apto a opinar.


Fala-se em certo contraponto a um ensino “antiquado”
em Tatuí (pano de fundo para a cena financeira, como veremos), e exclusivamente da música, só ela. No meu artigo (Modernidade e Eternidade) da semana passada do jornal O Progresso abordei, entre diversas coisas, a ‘modernidade’ em arte, fechando o texto com Drummond: “E como ficou chato ser moderno, agora quero ser eterno”.


Lecionei em Tatuí entre 1984 e 1987
, duas vezes por semana, daí conhecer o Conservatório razoavelmente bem antes de assumir a direção, em 2008. Em algumas das melhores orquestras do mundo alunos tocam junto com seus professores, a exemplo da Sinfônica de Praga e da Filarmônica de Berlim. Nas melhores daquelas escolas, dado o altíssimo nível dos alunos, há orquestras de estudantes que são ainda superiores a muitas profissionais. Prescindem do trabalho com os professores, sistema que encontrei no Conservatório, sua marca d’água.


Aqui, alunos ensaiam e se apresentam ao lado de professores
, trabalham o repertório mais difícil, com solos e passagens intricadas, preparam repertório – por exemplo, sinfonias de Brahms, Beethoven e Mahler. Na capital há várias orquestras onde alunos adiantados podem ter essa prática, incluindo grupos já profissionais, do Centro à Grande São Paulo. Sendo Tatuí uma cidade cem vezes menor (apenas 1% da população da capital!), não há outra opção para esse aprendizado. Em certo momento, o aluno adiantado enfrentará as opções de mudar-se para São Paulo, permanecer amador ou desistir.

New England: Jordan Hall

(Minha formação se deu no Rio e nos EUA, um ano na Berklee e, depois, com bolsa de uma das ‘três grandes’, New England, bacharelei-me. Em 2009, convidado pelo “International Visitors Leadership Program” do US Dept. of State, estive em 27 instituições de música americanas conhecendo seus diretores, currículos, alunos e estruturas. Não me falta experiência para saber o que é ‘moderno’, senão os tradicionais sistemas de ensino do mundo.)

Reunião na Secec (divulgação)

Voltando a Tatuí
, com entreveros políticos evitáveis e pontos de vista divergentes – explícitos ou não – entre a Secretaria de Cultura (Secec), a Sustenidos, OS que gere o Conservatório, professores, muito veladamente, e alunos, nada contribui para um ambiente saudável – como bem ilustra a recente entrevista do maestro da Sinfônica, Edson Beltrami, demitido no dia 1º. Em reunião na Secec com o prefeito de Tatuí, Prof. Miguel, e o presidente da Câmara Municipal, Antonio Marcos (O Progresso de 5/12, pág. 6), o titular da Cultura, Sá Leitão, propôs que fosse criado um Conselho Curador local, mas a diretora da OS mostrou-se refratária à ideia. Talvez a assista certa razão, porque a Sustenidos já tem um Conselho Consultivo, um Conselho Fiscal e um Conselho Administrativo, além da Assembleia Geral, esta última com plenos poderes para até demitir diretores!


Direção e órgãos colegiados do Conservatório
funcionam em São Paulo, e a lei das OS, 846/98, não menciona a modalidade ‘Conselho Curador’. Portanto, ausentes as prerrogativas, a que serviria em Tatuí esse novo órgão sem respaldo de qualquer diploma legal, se a Sustenidos já tem quatro colegiados em SP? E mais: o corpo diretivo da OS propõe 75% do tempo de trabalho para o Guri e 25% para Tatuí (pág. 105 da PTO). Não fosse só isso, a mesma OS ainda assumiu o Theatro Municipal de São Paulo, organismo enorme, complexo e turbulento que conhecemos bem.


Na reunião, a Secec informou que há 2.174 alunos
em Tatuí (pág. 6 do jornal), mas a Proposta Técnica e Orçamentária da OS gestora prevê um número bastante inferior (pág. 23): 1.700 estudantes, incluindo os do Polo de São José do Rio Pardo; por conseguinte, a cota discente de Tatuí ficaria em cerca de 1.400. A proposta da OS é explícita (pág. 24 da PTO): “redução das 496 vagas”.


A Proposta também deixa claro o viés financeiro
de tais reduções: “...percebemos que não há outra forma de equilibrar receitas e despesas a não ser realizar o ajuste sugerido”. Isto nos leva ao projeto do governo (663/21) para a Lei do Orçamento Anual (LOA) 2022, em tramitação na ALESP. O montante proposto pelo governador para o Conservatório, de R$ 26.599.037,00, será submetido à votação plenária após 23.810 (grifo) propostas genéricas de emendas parlamentares. Há outras formas de ‘engordar’ o orçamento, mesmo que seja aprovado o valor proposto, além de alguma emenda à LOA: o Crédito Suplementar - transferência entre secretarias por ato do governador -, ou internamente à Secec, este em valores diminutos haja vista o baixo orçamento da pasta. Mesmo aprovados os 26,6 mi propostos, o orçamento ainda ficará muito aquém da LOA de 2008, ano em que aqui cheguei: R$ 22,25 milhões nominais - que, corrigidos pelo IPCA até janeiro de 2021, equivaleriam hoje a R$ 45,40 mi; somando-se a inflação deste ano, acima de 10%, chega-se a 50 milhões, quase o dobro!


Ao leitor pode parecer um tanto confuso
, e mesmo eu, com toda a minha experiência, ainda tenho dúvidas sobre as perspectivas que só o futuro poderá dirimir. Ah, um aviso: aposentado pelo INSS e pelo estado, não almejo cargo algum em órgão qualquer, nem sou candidato a nada.

 

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

MODERNIDADE E ETERNIDADE

 


Bach (1685-1750) estudou em Eisenach
, tal como Lutero dois séculos antes. Ali, frequentou classes de alemão, latim, grego, prosódia e disciplinas musicais como harmonia e contraponto. Compôs 3 oratórios, 7 corais vocais-instrumentais, duas longas Paixões, 5 motetes, 190 cantatas, salmos, 371 corais a 4 vozes e um sem-número de concertos para cravo, violino e muitas peças para órgão e teclado, entre tantas outras. Dominava o contraponto de Palestrina (1525-1594), de século e meio antes, fundamentando seus estudos seguintes. Foi gênio na harmonia, dominando-a e chegando a Stravinsky e o dodecafonismo de Schönberg.

Flaubert

As regras ele mesmo, volta e meia, transgredia
, em submissão ao processo criativo, nada muito diferente do que disse Flaubert (1821-1880) - em tradução de meus pais, Maria Lúcia e Autran Dourado: “O escritor é livre, conforme as exigências de seu estilo, de aceitar ou rejeitar as prescrições gramáticas que regem a língua, e que as únicas leis às quais é preciso se submeter são as leis da harmonia”. Pois se Bach às vezes subvertia, o fazia com plena consciência, sem perder o prumo em toda a sua obra.

Série de 12 sons não repetidos

Se dermos um salto para Arnold Schönberg
(1874-1951), ‘pai’ da Segunda Escola de Viena e criador do sistema dodecafônico, encontraremos um sistema bem mais rígido do que o de Bach: séries de doze sons não-repetidos e seus retrógrados (escritos de trás para a frente), inversões, pura matemática. Nos EUA, estudei as chamadas harmonias funcional e tradicional – curioso: esta, segundo o método tradicionalíssimo do ‘revolucionário’ Schönberg, que foi “moderno” parte da primeira metade do século 20. (Tive o privilégio de ter estudado a ‘harmonia tradicional’ do mestre com um ex-aluno dele, Di Domenica; no Rio, outro contemporâneo de Schönberg, Hindemith, em seu método tradicional). Conheci o microtonalismo (divisões de sons que estariam entre as teclas pretas e brancas do piano), e o que foi ‘vanguarda’ no século 20. Bem “moderno”, estudei Microtonalismo com Joe Maneri, ex-aluno de Alban Berg, por sua vez discípulo do mesmo Schönberg. Mas sempre pés na terra firme com Bach, desde a polifonia de Palestrina, do século 16.


No Brasil, o dodecafonismo surgiu
, temporão, com o alemão Hans-Joachim Koellreutter (1905-2015), casado com uma judia, que aqui chegou fugindo da Gestapo em 1937, e depois de algumas viagens para cá retornou em 1975. A técnica dos ‘doze sons’ de que falei antes, quando chegou já era obsoleta na Europa, mas seduziu muitos alunos de composição, a ponto de os nacionalistas, liderados pelo tieteense Camargo Guarnieri, armarem uma “cruzada” contra o movimento. (Como era sedutora aquela técnica de se criar com enorme facilidade, quase sem pensar, apesar do resultado sonoro invariavelmente ruim! As minhas composições dodecafônicas valeram como treino, nada mais, e as considero obras tão ruins que nem sei se ainda guardo alguma).


Koellreutter foi diretor do Conservatório de Tatuí
por pouco tempo, não deu certo e como compositor seu ‘novo’ já era velho. Guardo comigo um livro de harmonia funcional e outro, “A Estética do Paradoxal e do Imprevisível”, que faz incursões intelectuais sobre o aleatório – de “alea”, dado, em grego: sorte, acaso. Santoro, Edino Krieger e Guerra-Peixe, entre outros ex-alunos dele, não demoraram muito para reencontrar seu prumo musical fora da ‘modernidade’ do alemão – com quem estive, aliás, algumas vezes.

Teclado em microtons: projeto

Na música, assim como na literatura
– vide a citação a Flaubert, que fiz no início deste artigo – e outras artes, a transgressão ‘moderna’ serve para sacudir a poeira do que parece estático. Mas tudo são conceitos vagos, às vezes ficam só no discurso. A mesma harmonia funcional “pasteurizada” da Berklee, de Boston, onde também estudei, não diferia muito da de Koellreutter, exceto pela grafia dos acordes e análise muito bem organizadas. Os demais exercícios de ‘modernidade’ tive no New England, onde obtive meu bacharelado, com o já citado Joe Maneri. Coisa acadêmica, como se fosse aula de história. No estudo, porém, nos socorríamos sempre em Bach, de tabela degustando o velho Palestrina, meio milênio atrás.

Cifra e análise: Berklee

Godofredo Rangel

A literatura portuguesa
consolidou-se com Camões, e a italiana com Dante, que praticamente fixaram as bases de seus idiomas. Meu pai, ainda garoto, escrevia seus contos, mas seguiu os conselhos um escritor mineiro, Godofredo Rangel: deu uma meia-volta às origens, fixando-se na leitura dos grandes mestres, como Machado de Assis e Faulkner, fazendo da leitura a âncora onde lastrear seu trabalho. Aliás, o pai dizia que em arte, filosoficamente, não há progresso, que é quando se supera: houve ‘progresso’ de  Michelangelo e Paul Klee? Dizia que era grande o risco de, levado pelo “canto da sereia”, o artista reinventar a pólvora.

Estátua de Drummond (créd. UOL)

Além das escolas de música brasileiras e estrangeiras
que já conhecia, em 2009 fui aos EUA, a convite do US Dept. of State, para o “International Leadership Visitors Program”. Estive com professores e diretores de 27 instituições de música americanas, fora as que eu já conhecia, e as afamadas Juilliard e Curtis, ou ainda onde também estudei, New England. O que ensinam até hoje, fora instrumentos? Harmonia, contraponto... Via métodos tradicionais de Hindemith e Schönberg - a mesma que Bach aprendeu, tradição que continuará a ser ensinada enquanto a música ocidental existir - aqui, nos EUA ou nos países da Europa. Posso concluir com Drummond: “E como ficou chato ser moderno / agora quero ser eterno”.

 

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

MATHEUS 19, BERTOLD BRECHT E ORÇAMENTO SECRETO

 

 


Então lhe trouxeram algumas crianças para que lhes impusesse as mãos, e orasse; mas os discípulos os repreenderam. Jesus, porém, disse: deixai as crianças e não as impeçais de virem a mim, porque dos tais é o reino dos céus”. (Matheus, 19:13-15; trad. J. F. D'Almeida, 1681: foto).


Diversas organizações ao redor do mundo
dedicam-se a crianças desnutridas e doentes cujas figuras esquálidas se assemelham nos mais diversos países, como Etiópia, Haiti, ou entre nossos Yanomamis. Difícil é não se emocionar e até não sentir-se fraco quando, na TV, uma ONG chamada Médicos sem Fronteiras ou a WFP (World Food Program) expõem crianças que não têm pátria, sua nacionalidade é o mundo. Distribuem sachês de complemento alimentar fazendo de refeição, medem-lhes os perímetros dos braços como escalas de desnutrição, pesam-nas em espécies de gangorras – já não suportam o próprio peso de pé, nem de suas protendidas barrigas. É o preço da desigualdade, da guerra, da violência, do racismo, do desinteresse dos poderosos. A nacionalidade deles é a miséria, não conhecem outra.


Contribuir para essas instituições
e inúmeros voluntários é como ajudar seus próprios filhos ou netos (sinta-os como seus). Uma colaboradora francesa do Médicos sem Fronteiras foi quem acompanhou o triste final do haitiano Jean Gerald, oboísta que havia chegado ao Brasil para estudar no Conservatório de Tatuí. Depois de desaparecer da cidade e terminar em Port-au-Prince, capital do Haiti, foi ela quem, em meio a seus afazeres humanitários, deu a terrível notícia: Jean havia sido morto em um incêndio suspeito no quarto do casebre em que dormia. Os colaboradores dessas organizações estão nos locais que lhes foram designados para o que der e vier - acima dos serviços médicos ou de enfermagem, tornam-se bons samaritanos pela natureza de sua missão.


O dramaturgo alemão Bertold Brecht
(1898-1956) fez uma breve e histórica incursão na alienação social: “O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia política. Não sabe o imbecil que de sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado...” Sim, Brecht chama a atenção para o fato de a alienação ser cúmplice, portanto também culpada, pelo que há de ruim no mundo, e parece não ter fim. O alienado finge não ver miséria e desigualdade; se não, pior, fecha os olhos, tornando-se cada vez mais insensível e cruel. Transforma-se, sem se dar conta, de passivo a ativo na miséria de tantas crianças, neste mundo tão desigual em que vivemos.


Mais ativo ainda
é o mundo da corrupção pública. Este é o campo em que são semeadas ilusões para colheita de votos, dos votos o poder, e dele o dinheiro, e mais poder, assim por diante. A distribuição de emendas de relator, na roleta dos mais altos escalões, são especialmente pródigas em ralos de dinheiros públicos para a obtenção de favores. A fim de tornar essa “distribuição amigável” de riqueza invisível aos olhos de todos – contra a moralidade e a publicidade que são impostos pela Constituição no trato com a coisa pública -, tentaram o malfadado ‘Orçamento Secreto’, que recebeu uma definição surpreendentemente bastante clara do vice-presidente Hamilton Mourão: “é manobra que beneficia apoiadores do governo” (O Globo, 17/11). Contribui-se, assim, para as pautas mais escusas e obscuras no Congresso, confabuladas nos celulares e na intimidade dos gabinetes. No dia 5/11, a ministra do STF Rosa Weber decidiu pela suspensão “integral e imediata da prática”. No dia 10, a malfadada conduta recebeu 8 votos a zero no plenário do STF, com duas divergências: o neófito Nunes Marques e Gilmar Mendes. Mais uma vez, Mourão saiu em campo, declarando que a interferência do STF foi oportuna.


Um volume enorme de recursos
(20,1 bi em 2020) vai como ‘agrado’ para votos dos parlamentares em questões de interesse palaciano, como o chamado "tratoraço": distribuição de tratores como fossem gorjetas. Além da transição atabalhoada do Bolsa Família para Auxílio Brasil – e houve problemas desde o app do celular ao montante sacado pelos contemplados mesmo após longas filas nas agências da Caixa. Ah, a culpa de tudo é a falta do ‘orçamento secreto’, que impediu os nebulosos repasses aos interessados nos valores prometidos! Enquanto a farra, antes, continuava na distribuição de ‘favores’ a altíssimo custo, agora os culpados passam a ser a moralidade e a publicidade escamoteadas da vista de todos, longe do mesmo povo que sofre e precisa do auxílio financeiro.


Não menos deprimentes
do que as cenas referidas no princípio deste texto, crianças desnutridas e morrendo no Haiti, Madagascar ou Etiópia, são os depoimentos na TV sobre a ‘nossa’ fome infantil: a mãe que não se alimenta todos os dias para que os filhos tenham um mínimo para comer, ou a que faz de uma carcaça de geladeira carrinho de mão para trabalhar como catadora – reprovada pela cooperativa -, tudo isso é culpa direta não apenas de muitos agentes públicos, mas indiretamente também de nossos ‘analfabetos’, os que ignoram o bom exercício político – que exige honestidade, raciocínio e espírito humanitário (do outro lado, os que o atacam negativamente com palavras e atos cegos, fanatizados).


É preciso estancar a corrupção
 de qualquer que seja a forma que ela surgir travestida; quem sofre primeiro são os pequenos, que mais dependem de ajuda. Que logrem sobreviver a esta dura jornada com suas famílias: deixai irem a elas as suas criancinhas, e dai-lhes um Natal sem fome.

 

 

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

O BAILE DA ILHA FISCAL E A REPÚBLICA


Era o ano de 1889
, seguinte ao da Lei Áurea da princesa Isabel, que chancelou o que já acontecia de fato: após as leis dos sexagenários (1871) e do ventre livre (1885), os escravos estavam quase todos aquilombados ou libertos. A história – fato tão frequente no país... – conta que a turma revolucionária se reunia com assiduidade no Clube Militar, tramando o golpe republicano que feriria de morte o Império. O Visconde de Ouro Preto, chefe do Conselho de Ministros e bajulador-mor do monarca, foi quem concebeu a festa, um bem-bolado entre os 54 anos de Império sob D. Pedro II e as Bodas de Prata do Conde D’Eu e a Princesa Isabel. Ampliou ainda mais a festança, ou bacanal, a recepção ao navio chileno Almirante Cochrane, que, aliás, já havia aportado dias antes – homenagem ao país amigo, aliado do Império. Marcada para 19 de outubro, com a morte do rei de Portugal e sobrinho de Pedro II, D. Luís, a fuzarca foi adiada para o dia 9 de novembro. O baile demonstraria o poder imperial e a robustez da monarquia brasileira.


Temendo os revolucionários
, avaliando a segurança de possíveis locais para o baile, como o Palácio Imperial de Petrópolis, decidiu-se pela Ilha Fiscal, uma enorme construção na Baía de Guanabara, arquitetura de influência francesa – comme il faut. Disse o imperador: “é um delicado estojo, digno de um brilhante” (coroa e cetro na mão, devia estar pensando em si mesmo). A Marinha de Guerra, única das Armas que restava aliada fervorosa da monarquia, cedeu a Ilha para hospedar a festança. O Visconde de Ouro Preto não mediu esforços e sangrou  a verba do Ministério de Viação e Obras Públicas destinada aos flagelados da seca no Ceará (ninguém se importará, pois a seca é um flagelo permanente, e o Baile será uma ostentação única, deve ter imaginado). Para o rega-bofe, foram adquiridas mais de 4.500 garrafas de vinho, 12 mil litros de cerveja, 1.900 garrafas de champanhe e um bocado de conhaque, licores e outras bebidas. Quase 5.000 convidados foram lautamente servidos com faisão, caviar, salmão e outras iguarias finas.


Chegado o dia do baile
, D. Pedro, 64, subia, imponente, as enormes escadarias, vislumbrando um palácio sob cujos degraus os convivas se curvaram para recebê-lo. Acometido por um mal-estar, o monarca fraquejou e foi ao chão, sendo acudido daqui e dali. (Ao se recuperar, se já houvesse aquele samba genial do Paulo Vanzolini, de 1962, teria ouvido: “reconhece a queda / e não desanima / levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima”). No silêncio, entre muitos ‘ohs’, D. Pedro, após recompor-se do tombo, deu de proferir uma daquelas frases lapidares, que deve ter matutado após seu breve fanique: “cai o imperador, mas não cai o Império!” Sendo a política, especialmente em tempos de turbulência, feita de gestos e frases, houve quem tenha pensado em pura encenação para enchanter la noblesse (em francês, já que o menu e a carte des vins, crème de la crème, também o eram). A célebre frase do imperador foi um vaticínio adverso: seis dias depois, 15 de novembro, caiu o Império, sob o golpe republicano de Deodoro.


Na manhã seguinte
, após terminada a farra, relatórios da serventia encarregada da limpeza fizeram o rol das peças de roupas e objetos largados no pomposo castelo: numerosas cintas-ligas, corpetes e coletes de senhoras, além de quase 30 chapéus e cartolas masculinas, sem falar em discretos canudinhos e bandejas de prata com vestígios de um alcaloide muito apreciado pela sociedade da época, proibido no Brasil apenas em 1921: o cloridrato de cocaína.

Palácio Imperial de Petrópolis

E veio a República
- do latim res-publica, ‘coisa pública’. Ainda que tarde, um século após a queda da Bastilha, na Revolução Francesa (1789), e a revolução americana (1791), o Brasil ingressaria no seleto clube republicano, dando fim ao regime monárquico. Na época, o país imaginou estar encerrando o ciclo de farras às custas das secas, das locupletações da ‘coisa pública’, das fartas mordomias, da cobrança do ‘quinto’. Mas até hoje alguns luxos ainda sobrevivem: todos os negócios imobiliários em Petrópolis, RJ, ainda pagam o laudêmio, um imposto devido à enfiteuse, “direito real em contrato perpétuo, alienável e transmissível para os herdeiros”, que reverte para os dez membros sobreviventes da realeza: um afago de mais de R$ 6 milhões, todos os anos.


No último dia 15 de novembro
a Proclamação da República foi celebrada pela 132ª vez. Mas os gastos palacianos com luxúrias, hoje, não vão longe daqueles do Baile da Ilha Fiscal, guardadas as devidas proporções: lagostas, camarões, caviar e champanhe às pencas. Assim como os gastos ministeriais, as mordomias da caserna cresceram, tal qual as benesses para as classes militares e policiais, as promoções nas carreiras e até casas próprias subsidiadas pelo Poder Público. “Não!”, alertou com a perspicácia de sempre o respeitado general Villas Boas, ex-Comandante do Exército,  genuíno democrata, e prosseguiu: os militares não estão no poder, só resta assegurar que a política não chegue aos quartéis. Em vista dos recentes imbróglios sobre orçamento secreto e teto de gastos, um vez derrocado o primeiro, que não seja a responsabilidade fiscal um novo baile palaciano, sem ilha nem navio chileno. Mantenha-se o espírito republicano!