Cartas, além de declarações de ódio ou amor, são eficientes para gravar palavras a ferro e fogo. Diz o provérbio latino: Verba volant, scripta manent (“palavra voa, escrita permanece”). São muito mais que um e-mail, WhatsApp ou Telegram, cada vez mais taquigráficos com os cacoetes de hoje.
Cartas não morrem, se as guardarmos com zelo. As de nossos avós amarelaram com a tintura do tempo, cor de fundo para letras desenhadas, da caligrafia à assinatura final.
Romântica é a dor de quem espera por uma carta, como em Hey, Mr. Postman (“Ei, Sr. Carteiro”), dos Beatles: ”Deve haver algum bilhete hoje / da minha garota, tão distante / por favor, Sr. Carteiro, olhe e veja / se há uma carta, uma carta para mim” (para enamorados, esperar é angústia pura). Com angústia semelhante, “Ninguém escreve ao coronel”, de García Márquez, descreve a vã espera de um militar reformado pela chegada da carta de pagamento da pensão, entre crises asmáticas da esposa e um galo de briga com que levantava uns trocos nas rinhas.
Frédérik Chopin (1810-1847), compositor polonês - autor de mazurcas, noturnos, polonaises e dois concertos para piano - nutria paixão por Aurore Dupin (foto), escritora conhecida como George Sand na velha boemia da Paris que se vestia com terno e chapéu, e fumava charutos como homem. Para Chopin, parecia-lhe um rapaz, e Liszt uma viril amazona. O relacionamento entre Chopin e Sand teve muitos bilhetes e cartas (as que Sand recebia de Chopin eram sumariamente rasgadas). Se ele desconhecia o destino de suas missivas, tanto faz, importava tê-las escrito – vítima da sofreguidão, de um amor platônico que se convertia em sons no coração, e dele para suas obras, hoje repertório de dez entre dez pianistas.
Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), “O predileto dos deuses”, viajava muito pelas cidades da Europa. Desesperadamente apaixonado por sua amada Constanze, tinha um jeito excêntrico de escrever-lhe cartas: “beijo-te 1.095.473.082 vezes”. Tratava sua cara-metade de forma absolutamente infantil, e se despedia: do teu ‘stu! Knaller-paller. Schnip-schnap-schnur. Schneppeperl-snail – que não quer dizer nada, mas o som lhe agradava como um segredinho entre jovens namorados.
Cartas, no passado, serviam como declaração de herança e tinham efeito legal, como o Testamento de Heilingenstadt (ilustração), de Beethoven, pródigo em alterações ao ‘calor do momento’, ao sabor de seus desentendimentos familiares; deixou bens e dinheiro como herança, e inseriu em seu inventário a confissão da loucura por que estava passando, incompreendido pelos médicos: além da surdez, uma cruel depressão e a perda do juízo.
Distrito de Whitechapel, Londres, 1888. Jack, o estripador (the ripper), nunca identificado, enviou carta à imprensa declarando-se o assassino serial, mas, assim como seu nome pode ter sido um blefe, o texto apenas um jogo para disseminar o pânico em Londres. Alcunhado “avental de couro”, aludindo aos açougueiros, tal a crueldade empregada em suas vítimas, todas mulheres, costumava buscar prostitutas do East End londrino para dilacera-las ao seu “estilo”: garganta cortada e abdômen retalhado. Ao oficial de polícia de Whitechapel enviou outra carta (foto), que “traduzo” buscando preservar a condição de semialfabetizado do criminoso: “Do inferno. Mr. Lusk., Sinho eu lhe mando metade do rin priservado eu tirei de uma mulher a outra parte fritei e comi. Estava muito bon. Posso mandar a fac ensanguentada que tirei se o Sr. eperar um pouco. Assinado: pegue-me quando puder, Mishter Lusk” (deixando escapar um possível sotaque escocês).
Getúlio Vargas, em 23/08/54, iniciou sua carta-testamento apontando “as forças e os interesses contra o povo”, e encerrou-a com pompa e circunstância: “dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história”. Matou-se com um tiro no coração (foto).
(cnj.jus.br) |
7/09/21, dia dos desfiles, da saudação à independência do Brasil. Concentrações de militantes, fanáticos e agregados em diversas cidades do país extrapolaram os limites. Não com ataques físicos, mas com a ocupação da Esplanada, em Brasília, e faixas contra a ordem e o STF. Discursos do presidente da República repetiam o que foi considerado grave ameaça ao estado de direito, pano de fundo para ofensas diretas a ministros do STF. Claro, houve reações negativas tanto por parte dos ofendidos quanto na imprensa; pior ainda, até mesmo por parte de indivíduos que convocaram militantes para a manifestação. O presidente chegara à encruzilhada, seria preciso galgá-la para sobreviver sem um tropeço fatal.
"Verba volant..." |
Para tal, chamou Michel Temer, ex-promotor, ex-presidente e homem forte no MDB, que lhe propôs uma breve “Declaração à nação”. Temer leu a minuta ao telefone, e sua ida pessoal a Brasília foi condicionada à aceitação da carta pelo presidente. Pois foi, e com verve forense, usou a figura do “calor do momento” como justificativa possível para os excessos presidenciais. Ato contínuo, daqui e dali buscou-se apagar o incêndio, mas o recuo não agradou aos militantes. As palavras se foram (“verba volant...”), mas a imprensa, os vídeos não. Temer pensou que talvez bastasse um aceno, ceder discreta e elegantemente, mas a militância aguerrida estava incendiada.
O ex-ministro tatuiano do STF, Celso de Mello (UOL, 11/09), lembrou a carta de Hitler para o acordo de paz de Munique na 2ª Guerra, em 1938, rompido quando os alemães invadiram Praga no ano seguinte. A carta do Führer, disse o antigo decano, fora uma farsa.
(A escrita também “voa”, só os fatos permanecem,
talvez)
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