Há muitos anos li uma frase de autor desconhecido, apesar das especulações de sempre, que considero genial: “A informática veio para resolver problemas que antes nunca existiram”. Parece anedota, mas é ‘verdade verdadeira’, como diz o popular, figura de linguagem usada até mesmo no meio jurídico. Basta pensar na informática em si, um campo em que a cada hora se cria uma novidade. Logo surge um vírus, um trojan, o diabo, fazendo com que o mundo consuma mais dinheiro na pesquisa e fabricação de ‘antídotos’ para cada nova cepa de pandemia digital. E, claro, na ponta é sempre o consumidor quem vai pagar o pato e a fatura.
A "Geração Espontânea", de Darwin |
Golpes de toda monta surgem como fossem a geração espontânea imaginada por Darwin: brotam em árvores para assaltar o “cidadão de bem”, termo já bem desgastado pelo sectarismo de hoje. E quando se pensa que tudo está sob controle, surge uma nova invenção (como diria o Nélson Rodrigues, para seduzir a ‘massa ignara’ - leia-se: todos nós). Veja o whatsapp: um aplicativo multiplataforma para celular que se transformou em fonte de golpes e ferramenta de extorsão. Amigo ou parente que teria mudado de número escreve para pedir dinheiro ao incauto cidadão – “é só pra cobrir uma despesa e amanhã devolvo”... Só que, no caso, amanhã não vai ser outro dia, esse amanhã nunca virá.
E há o novo golpe (Folha, 28/08), com o logo do Ministério da Saúde, sobre a 3ª dose da vacina: o sujeito recebe mensagem dizendo que foi sorteado para a inoculação extra, bastando apenas clicar no link do fabricante desejado. Mas...Todos os caminhos levam a Roma, e todos os links entregam o cidadão ao hacker.
Vem o Banco Central e lança mais uma invencionice eletrônica, panaceia para todos os males financeiros que aparentemente veio para privilegiar os mais pobres – os que possuem celular, bem entendido. Talvez para fazê-los viver o charme discreto das classes mais altas, que passa TEDs, DOCs e afins: o PIX (de pictures, ou ainda pixels, em inglês).
A nova ‘pedra filosofal’ parece transformar latão em ouro fazendo do pacato cidadão um pagador à vista - que seja de três vinténs, como na peça de Brecht e Weill (1928) adaptada da “Ópera dos Mendigos”, de John Gay. Orgulhoso, ele saca seu celular e paga, toca a pagar, é tão fácil, não? O negociante, ou credor, agradece penhoradamente. É a maravilha, salvo-conduto para a Pasárgada de Manuel Bandeira - “tem um processo seguro / de impedir a concepção / Tem telefone automático / tem alcaloide à vontade...”
(folhadaregiao) |
No dia 26 de agosto, o Estadão publicou matéria que escancarava o título “Roubo com PIX dispara em SP; sequestros-relâmpagos crescem 39%”. E descreve uma cena dramática: André Chaves e sua noiva param em um sinal vermelho no centro de São Paulo. Em um segundo, o vidro da passageira é estilhaçado, um sujeito rouba o celular e foge por entre os veículos. Resultado: em meia hora Chaves havia perdido R$ 5,8 mil, transferidos via PIX. Pior ainda são os que envolvem o sequestro do dono do celular que, ao toque do cano gelado de um 38 ou uma .40, transfere tudo o que tem para a conta que o bandido mandar. Na garupa do roubo, vem ainda o perigo de estupros, agressões e mesmo assassinatos. A depender da fragilidade da vítima, basta uma faca de cozinha para consumar o crime.
"Bob Fields", à direita, e Castelo Branco |
No dia seguinte, 27 de agosto, novamente segundo o Estadão, a Polícia fez soar o alarme da escalada vertiginosa dos sequestros-relâmpagos, 39%, e logo o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, anunciou mudanças para prover melhor segurança às operações com o PIX, falando em uma salvadora limitação no horário das transações. Neto do ultra-ortodoxo economista Roberto Campos, ministro do governo militar de Castelo Branco tido como “americanista” e "entreguista" pelos críticos – de onde o apelido “Bob Fields” -, o atual presidente do BC não prima pela argúcia do avô, personagem de parte de nossa triste história: a maior vantagem do PIX, para os bandidos e sequestradores, é exatamente poder levantar sua féria em plena luz do dia, sem que ninguém - ou quase – perceba, fazendo sua operação tão rapidamente quanto um mago prestidigitador. Ou discretamente, com a vítima sob sua mira. Após as 20h, só se poderá “pixar” (e vamos neologizando) até R$ 1 mil. Não sabe o ilustre presidente do BC, nascido em berço de ouro, que R$ 1 mil é muito dinheiro tanto para a vítima pobre quanto para o bandido pé de chinelo! Portanto, às favas com limitações de horários. E esqueçam os sensores biométricos, que reagirão sob os dedos das vítimas conforme a dança e à medida que lhes é apontado um cano de arma ou o brilho de um punhal.
Particularmente, torço o nariz para bancos e nuvens virtuais, prefiro o convencional, sem pequenas operações via PIX ou investimentos milagrosos em Bitcoins. Sem lenço nem documento, lembro Caetano, eu vou. Ouço sobre muitos outros problemas relacionados ao novo sistema de transferência do BC, como aquele digitozinho a mais que escorrega na operação e não tem volta; o pagador depende da boa-fé de quem recebeu por engano ou lá se vai seu pouco mas rico dinheirinho. Pior de tudo, o PIX é um atrativo também para engambelar sob coação as presas mais fáceis, já que qualquer um pode usá-lo: adolescentes, moças e idosos, deixando-os vulneráveis a ainda outros malfeitos.
Com a economia em frangalhos, os preços nos píncaros, o desemprego chegando a 15%, o comércio estagnando, a Selic prometendo chegar a 8% na virada do ano e a comida escassa em incontáveis residências, seriam esses novos gadgets eletrônicos uma espécie moderna de ‘ópio do povo’, mais um factoide a dourar a pílula, já tão amarga, da sobrevivência neste país?
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