“Então lhe trouxeram algumas crianças para que lhes impusesse as mãos, e orasse; mas os discípulos os repreenderam. Jesus, porém, disse: deixai as crianças e não as impeçais de virem a mim, porque dos tais é o reino dos céus”. (Matheus, 19:13-15; trad. J. F. D'Almeida, 1681: foto).
Diversas organizações ao redor do mundo dedicam-se a crianças desnutridas e doentes cujas figuras esquálidas se assemelham nos mais diversos países, como Etiópia, Haiti, ou entre nossos Yanomamis. Difícil é não se emocionar e até não sentir-se fraco quando, na TV, uma ONG chamada Médicos sem Fronteiras ou a WFP (World Food Program) expõem crianças que não têm pátria, sua nacionalidade é o mundo. Distribuem sachês de complemento alimentar fazendo de refeição, medem-lhes os perímetros dos braços como escalas de desnutrição, pesam-nas em espécies de gangorras – já não suportam o próprio peso de pé, nem de suas protendidas barrigas. É o preço da desigualdade, da guerra, da violência, do racismo, do desinteresse dos poderosos. A nacionalidade deles é a miséria, não conhecem outra.
Contribuir para essas instituições e inúmeros voluntários é como ajudar seus próprios filhos ou netos (sinta-os como seus). Uma colaboradora francesa do Médicos sem Fronteiras foi quem acompanhou o triste final do haitiano Jean Gerald, oboísta que havia chegado ao Brasil para estudar no Conservatório de Tatuí. Depois de desaparecer da cidade e terminar em Port-au-Prince, capital do Haiti, foi ela quem, em meio a seus afazeres humanitários, deu a terrível notícia: Jean havia sido morto em um incêndio suspeito no quarto do casebre em que dormia. Os colaboradores dessas organizações estão nos locais que lhes foram designados para o que der e vier - acima dos serviços médicos ou de enfermagem, tornam-se bons samaritanos pela natureza de sua missão.
O dramaturgo alemão Bertold Brecht (1898-1956) fez uma breve e histórica incursão na alienação social: “O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia política. Não sabe o imbecil que de sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado...” Sim, Brecht chama a atenção para o fato de a alienação ser cúmplice, portanto também culpada, pelo que há de ruim no mundo, e parece não ter fim. O alienado finge não ver miséria e desigualdade; se não, pior, fecha os olhos, tornando-se cada vez mais insensível e cruel. Transforma-se, sem se dar conta, de passivo a ativo na miséria de tantas crianças, neste mundo tão desigual em que vivemos.
Mais ativo ainda é o mundo da corrupção pública. Este é o campo em que são semeadas ilusões para colheita de votos, dos votos o poder, e dele o dinheiro, e mais poder, assim por diante. A distribuição de emendas de relator, na roleta dos mais altos escalões, são especialmente pródigas em ralos de dinheiros públicos para a obtenção de favores. A fim de tornar essa “distribuição amigável” de riqueza invisível aos olhos de todos – contra a moralidade e a publicidade que são impostos pela Constituição no trato com a coisa pública -, tentaram o malfadado ‘Orçamento Secreto’, que recebeu uma definição surpreendentemente bastante clara do vice-presidente Hamilton Mourão: “é manobra que beneficia apoiadores do governo” (O Globo, 17/11). Contribui-se, assim, para as pautas mais escusas e obscuras no Congresso, confabuladas nos celulares e na intimidade dos gabinetes. No dia 5/11, a ministra do STF Rosa Weber decidiu pela suspensão “integral e imediata da prática”. No dia 10, a malfadada conduta recebeu 8 votos a zero no plenário do STF, com duas divergências: o neófito Nunes Marques e Gilmar Mendes. Mais uma vez, Mourão saiu em campo, declarando que a interferência do STF foi oportuna.
Um volume enorme de recursos (20,1 bi em 2020) vai como ‘agrado’ para votos dos parlamentares em questões de interesse palaciano, como o chamado "tratoraço": distribuição de tratores como fossem gorjetas. Além da transição atabalhoada do Bolsa Família para Auxílio Brasil – e houve problemas desde o app do celular ao montante sacado pelos contemplados mesmo após longas filas nas agências da Caixa. Ah, a culpa de tudo é a falta do ‘orçamento secreto’, que impediu os nebulosos repasses aos interessados nos valores prometidos! Enquanto a farra, antes, continuava na distribuição de ‘favores’ a altíssimo custo, agora os culpados passam a ser a moralidade e a publicidade escamoteadas da vista de todos, longe do mesmo povo que sofre e precisa do auxílio financeiro.
Não menos deprimentes do que as cenas referidas no princípio deste texto, crianças desnutridas e morrendo no Haiti, Madagascar ou Etiópia, são os depoimentos na TV sobre a ‘nossa’ fome infantil: a mãe que não se alimenta todos os dias para que os filhos tenham um mínimo para comer, ou a que faz de uma carcaça de geladeira carrinho de mão para trabalhar como catadora – reprovada pela cooperativa -, tudo isso é culpa direta não apenas de muitos agentes públicos, mas indiretamente também de nossos ‘analfabetos’, os que ignoram o bom exercício político – que exige honestidade, raciocínio e espírito humanitário (do outro lado, os que o atacam negativamente com palavras e atos cegos, fanatizados).
É preciso estancar a corrupção de qualquer que seja a forma que ela surgir travestida; quem sofre primeiro são os pequenos, que mais dependem de ajuda. Que logrem sobreviver a esta dura jornada com suas famílias: deixai irem a elas as suas criancinhas, e dai-lhes um Natal sem fome.