Autran Dourado |
Lincoln, em Gettysburg |
Certo início de semestre levei à mesa de almoço a lista de leituras para o período. Vi meu pai enrubescer, dilatar as narinas, limpar a boca com o guardanapo, levantar-se, bater a porta da rua e sair. Foi ao colégio, e de lá voltou. Tinha dito que filho dele não leria uma determinada obra, “aquilo”, e ponto final. Coisa muito mal escrita, para fazer dinheiro.
Num apartamento em que do escritório à sala e até as partes de cima dos armários embutidos e paredes dos corredores eram cheias de livros, de tanto convívio aquele tornou-se o meu ambiente, e eu gostava, tinha orgulho. Lembro-me de uma gravura de Cervantes, livro na mão, desenhos oníricos ao redor, em cujo frontispício se lia: “Embebedou-se tanto na leitura que passava as noites em claro”. Lembrava-me a figura paterna, que não raro cochilava, cabeça e livro tombados para baixo, o corpo esparramado sobre a cadeira de balanço de palhinha. Naqueles devaneios, figuras imaginárias, pelas mãos de Machado, Shakespeare, Flaubert e Joyce faziam-lhe diatribes e diabruras na imaginação, fermentando suas criações literárias. Mas o trabalho do pai era todo elaborado com método, método rigoroso, a construção de livros e personagens era uma elaboração de engenharia, história e cirurgia precisas – tudo a ver com a frase que reproduzi para abrir este artigo. Um trabalho de formiguinha, referiu-se a ele o crítico Humberto Werneck, autor de O Desatino da Rapaziada.
Hoje, o desatino é que a escrita no dia a dia escorrega pelos degraus da miserabilidade, especialmente porque a prática está basicamente restrita à Internet e às redes sociais. O errar nem humano mais é, parece que o querem santo; tem seu charme, e o próprio conceito de erro vai sendo abolido. Verbos conjugados sem o “r”, concordância, acentos, pontuação - e o gênero assexuado, ou hermafrodita, que permite expor menos conhecimento para errar menos, achando que é, como se dizia, pour épater la bourgeoisie, para chocar a burguesia. Porém, a burguesia não mais se abala, ela mesma aderiu em massa à péssima escrita e linguajar que chegam aos mais altos escalões da Nação – em boa parte, por causa de uma educação deficiente, e me refiro aos estudos colegiais, à cultura familiar com frequência sem exemplos a servirem de paradigma, e às redes sociais e seus dialetos.
É claro que tudo isso resulta em prováveis maus governantes e eleitores cada vez mais vulneráveis a essa chaga conhecida por ignorância, salvo quando há uma luz sobre um ou outro graças a alguma inteligência pessoal. Faltam boas escolas, bibliotecas, preparação de professores; salvam-se apenas os que buscam preparar-se “motu proprio”, espontaneamente. Já abordei aqui a experiência de Sobral, Ceará, onde um projeto-modelo levou 95% dos alunos à competência na leitura e interpretação de textos, 38% acima da média nacional! A preparação de professores tem quatro escopos principais: formação, avaliação, meritocracia e seleção. Sobral mostrou-se um exemplo a ser seguido, o estudo orbitando ao redor dos livros, sem proibir os alunos de usar recursos midiáticos e de informática.
Comparativamente à experiência de Sobral, com 212 mil habitantes, seguem-na a boa distância outros treze municípios também do Ceará, dez de Minas e apenas sete dos 645 de São Paulo, população total de mais de 40 milhões. Não é à toa que de Sobral saem tantos primeiros lugares em competições e concursos de português e matemática no Brasil.
Groucho e Arthur, seu filho |
A leitura está no centro do ensino sobralense, junto com a compreensão e interpretação de textos; há cuidado especial com as exatas, como matemática, área em que a cidade também é modelar. Leitura e redação são primordiais não apenas para formar bons cidadãos: é por intermédio do raciocínio e da compreensão de textos que lógica e percepção encontram campo fértil para o desenvolvimento do indivíduo. Talvez fosse o caso de refletirmos sobre o que disse o comediante, ator e escritor norte-americano Groucho Marx: “Eu acho televisão muito educativa: toda vez que alguém liga o aparelho vou para o quarto ler um livro”.