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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

COMO UM OBJETO NÃO IDENTIFICADO

 


A
ntes de tudo, partindo do nada: algo que voa e não se sabe o que é. Ou seja, ÓVNI, segundo o Houaiss denominação genérica para esses objetos, ou UFO (Unidentified Flying Object) em inglês. Mais recentemente, oficiais norte-americanos classificaram-nos como UAP (Unidentified Anomalous Phenomenon), Fenômeno Anômalo Não-Identificado, sigla de abrangência mais ampla devido ao largo espectro de significados e possibilidades que encerra. Já ÓVNI é associado diretamente, até mesmo por uso e costume, aos discos-voadores (que nem sempre surgem em forma de discos!) Já o UAP pode ser desde um artefato a um fenômeno atmosférico ou meteorológico.  Em 2022 a NASA anunciou uma equipe de estudos de UAPs, para separar o joio do trigo, ao passo que pequenos grupos de ufólogos enxergam hipóteses pseudocientíficas nada convencionais, apontando nos “objetos” evidências de uma vida extraterrestre que talvez... sequer tenha nascido. Neste segundo caso há uma certa crendice, incensando o assunto com um misticismo que lembra alguma seita, envolta em mistérios e crenças.

Spitfire

L
embro-me de um tio, na minha adolescência, que dedicou parte de sua vida aos estudos desses “objetos”. Colecionava revistas, matérias de jornais, entrevistava cidadãos alegadamente abordados por ETs e conectados com vida inteligente fora da Terra. Uniu essa obsessão a um talento, desenhar, o que fazia com perfeição à ponta de lápis finos, H: os lindos grandes quadros de caças da II Guerra como o alemão Messerschmitt e o inglês Spitfire, de cabine única, que tem seus descendentes até hoje. Sobre uma prateleira, miniaturas de aviões, foguetes e ÓVNIs, preciosidades. Eu e um primo, filho desse tio ufólogo, armamos uma pegadinha: uma miniatura de disco voador feita de chumbo, pendurada em uma finíssima linha de pesca em cuja outra ponta atamos uma pedra; jogada por sobre cabos elétricos de postes da rua (que perigo!) foi içada a uma altura que dava a impressão de o disco estar sobrevoando a Terra. O tio, claro, não se entusiasmou nada com a foto e voltou a tratar do Centro de Investigação Civil sobre ÓVNIs, do qual era presidente. Talvez por isso eu não tenha caído no time dos que acreditam à primeira vista, mas estarei de braços abertos se um dia um ÓVNI ou ET me aparecer pela frente.


C
om a guerra fria, após o final da II Guerra, relatos sobre ÓVNIs, feitos principalmente por pilotos de caças americanos, muitos deles sob a égide de “classified documents”, “top secret”, começaram a encher um departamento inteiro na NASA. Ora, sabe-se lá se esses arquivos fazem referência a artefatos de espionagem soviéticos ou, talvez, a discos ou cilindros voadores com ou sem ETs a pilotá-los a passeio? (As teorias da conspiração sobre o assunto falam até em controle por inteligência artificial, encontros e mesmo abduções de inspiração cinematográfica por extraterrestres ou tendo eles próprios como modelos para filmagens). Há cientistas levando tudo isso a sério e há descrentes, grande maioria, mais engajados em fazer troça, brincadeiras e, em tempos modernos, memes sobre o tema.

(Ilustração: G1)

C
idades como Varginha, em MG, e São Raimundo Nonato, no Piauí, são pródigas em relatos sobre aparições de ÓVNIs e ETs, e é claro que o simples fato de haver registros sobre esses eventos já cria um ambiente propício a futuros acontecimentos correlatos, seja no campo da observação, seja no da mais fértil imaginação. No dia 23/11/20, um clarão assustou populações não apenas de São Raimundo Nonato, pela tradição da cidade – que já foi usada em cena de A Caverna, um espetáculo do músico e inventor suíço Walter Smetak -, mas também Teresina, Floriano e outras. A explicação é simples, segundo o prof. de física e pesquisador do IFPI Ayrton Vasconcelos: a região faz parte da rota de artefatos humanos de exploração “dada a proximidade com a Linha do Equador e pelo movimento de rotação da Terra”.   Tratava-se de um foguete chinês em direção à lua, visto entre os planetas Júpiter e Saturno, cujo lançamento fora até noticiado pelo New York Times. A região é privilegiada, razão pela qual Alcântara, no Maranhão, é onde se encontra o Centro de Lançamento da Agência Espacial Brasileira. Já Varginha, no sul de Minas, ficou famosa por ter sido onde três meninas teriam visto um ET, depois supostamente capturado por militares. Nos tempos seguintes vieram mais aparições, merecedoras de filmes, livros e muita elucubração.

Canadá-Alasca

N
o dia 11 de fevereiro de 2023 caças americanos derrubaram um “ÓVNI” cilíndrico na altura da fronteira do Canadá com o Alasca, e no dia 12 outro objeto, este de forma octogonal, sobre o lago Huron, em Michigan, nos EUA. Só mais um caso de espionagem nas relações nada amigáveis entre russos e norte-americanos nesta guerra fria? Pior ainda, envolvendo a China, que seria a lançadora do objeto, tendo como pano de fundo o conflito russo-ucraniano? Não, não eram ÓVNIs, apesar de inicialmente terem provocado certo frisson entre ufólogos e aficionados. Seriam artefatos chineses acusados de supostamente espionar os EUA, tendo como contrapartida objetos semelhantes que vêm sendo usados pelos americanos para bisbilhotar a China. Qualquer coisa que voa ou está voando pode ser alvo dessas especulações: “Carcará / é um bicho que avoa que nem avião” (João do Vale e José Cândido). Ou, mais suavemente e planando em suave poesia, como cantou Caetano Veloso: “minha paixão / há de brilhar / na noite / no céu de uma cidade do interior / Como um objeto não identificado”.



sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

O DESATINO DA BOSSA

 

Dizzy

C
omo todo movimento musical na história, não se pode precisar o início da bossa-nova, assim como não se pode estabelecer quando começaram os movimentos norte-americanos que mais lhe foram influentes, como o bebop e o cool jazz. Do bop saíram nomes como os trompetistas Miles Davis e Dizzy Gillespie, os contrabaixistas Thelonious Monk e Ray Brown e os saxofonistas Charlie Parker e Sonny Stitt, dos quais apenas dois não assisti ao vivo. E vieram o jazz-rock, o pop-jazz, o jazz-fusion, o cuban-jazz e naquele miolo todo estava a marca que contaminava a nascente bossa; aos poucos, ao contrário, nós influenciávamos os americanos. Interessante lembrar a música “Influência do jazz”, de Carlos Lira. Coisa do CPC da UNE, crítica mas abraçada às novidades. “Estamos aí” (Ferreira/Einhorn), de 1962, é um tema intricado para se cantar, e faz sucesso até hoje, como tem sido desde a versão inesquecível de Leny Andrade. Pega carona no estilo, também, a grande sambista Elza Soares, um prodígio do chamado scat singing, técnica que faz uso de um improviso geralmente em alta velocidade utilizando percussivamente sílabas desconexas. A Elza o Brasil deve o samba-jazz, o sambalanço e suas variantes.

Jackson do Pandeiro

A
propósito das controvérsias naturalmente surgidas sobre essas influências, um bamba paraibano chamado Jackson do Pandeiro saiu com a genial “Chiclete com banana”, tirando uma do mimimi generalizado: “Só ponho / bebop no meu samba / quando o Tio Sam / pegar no tamborim”,  para mais adiante desafiar “...quando ele pegar / no pandeiro e no zabumba / (...) eu vou misturar / Miami com Copacabana / chicletes eu misturo com banana / e o meu samba vai ficar assim”. Certa dissenção que houve nos EUA também chegou aqui: uma prática jazzística de pendores mais brancos, intelectualizada, poucos altos e baixos melódicos, voz meio que falada; era o cool-jazz (disso o Nelson Gonçalves, o vozeirão romântico, criticando o jeito de certa ala bossa-novista de cantar, tirou proveito: gravando com Caetano Veloso, que naqueles tempos navegava nas ondas do cool-bossa, o baiano pediu a Gonçalves que subisse um pouco o tom. Estava difícil, para ele, um tenor, dialogar com aquele vozeirão de barítono no registro mais grave. Gonçalves abusou da ironia e atirou em um terceiro - “vai falando, como faz o João Gilberto” -, matando dois coelhos de uma cajadada só.

Carnegie Hall, 1962

O
cool pegou também em Carlos Lira, Dick Farney, Lúcio Alves e outros, sem deixar de fora vozes femininas suaves e meigas como a de Nara Leão. Seria o tempo dos bossa-crooners? Já estávamos no final dos anos 1950, quando o movimento formava corpo para “tomar de assalto” os EUA, no famoso show de estrelas no Carnegie Hall, em 1962, quando mostraram o que é que o brasileiro tem. Encantaram Stan Getz, Frank Sinatra e muitos outros, para depois adotarem o brazilian jazz – que àquela altura já existia aqui – e que contaminou a América do Norte.

Com a escova

U
m compositor, cantor e pianista brasileiro de nome artístico americanizado, Jhonny Alf, de “Eu e a brisa”, havia sido deixado um pouco à margem da turma, pois alguns o achavam “made in USA” demais. Ajudou-o Tom Jobim, que de cima de sua autoridade afirmou que Alf teria, sim, sido o pai da bossa-nova. Estava batizado o novo bossa-novista. Mas foi em 1955, num trabalho conjunto de Jobim e Billy Blanco, “Hino ao Sol”, para muitos o início da Bossa, o despertar de um movimento que persiste e influencia até hoje - mesmo que Billy Blanco, músico e também arquiteto, fosse um pouco obscuro para o grande público, uma timidez que o levava ao intimismo da bossa (nascida nos apartamentos de Copacabana, onde bateristas como Edison Machado, Dom Um Romão e Milton Banana tinham de tocar “como em uma caixa de fósforos”, para o ruído não gerar brigas com a vizinhança). Toc-toc da baqueta esquerda no aro da caixa, às vezes apenas a do tipo escova, que com seu xique-xique fez reduzir o volume dos grupos. De vilã, a bateria passou a heroína da bossa de Copacabana.

O Lundu

H
ouve movimentos de puristas, claro, contra a “invasão ianque” do nosso samba, nosso puro e casto samba. Alguns críticos se alvoroçaram contra a bossa-nova, esquecendo-se de que o auriverde samba nascera do maxixe, danças angolanas e congolesas. O maxixe veio da habanera, tango brasileiro e polca, e já era mal visto pelas classes abastadas, tido como semelhante ao Lundu, dança do final do século 19 dos cabarés dos bas-fond cariocas. Aquela pureza tão decantada pelos nacionalistas carrancudos nunca existiu, isso aliás não existe na música - fosse assim a única música genuinamente brasileira seria a dos povos indígenas, que chegaram aqui muitos séculos antes de nós. E o que veio depois, com a bossa-nova, também tinha traços de Debussy e Ravel, principalmente pelas mãos de Jobim. Tudo o que sucedeu a bossa teve o DNA dela, como a jovem-guarda, a tropicália, ritmos em que a batida de violão do adorado João Gilberto volta e meia reaparece, tocado com as pontas dos dedos em sequência rítmica que marcou a história.

Espinoza

E
sses dissensos e casamentos na música são fontes de rica diversidade, mais precisamente o alimento da chamada linha evolutiva da MPB. Quando se digladiam ou quando se casam, forças aparentemente antagônicas fazem a música viva, enriquecendo-a e alimentando seu caminho com novos elementos. Os mais conservadores se enclausuram. Lembrando a filósofa Marilena Chaui, caminhemos com o pensador de seus estudos, o espanhol Espinoza. Uma frase resume tudo, da arte à política: "dos conflitos emergem as soluções".

 

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

DISSECANDO A MENTIRA

 


E
u nunca diria “nunca antes neste país”, porque, mesmo certo mas sem segurança, pareceria estar mentindo, a despeito de não fazê-lo. Poderia, talvez, dizer “nunca antes em minha vida” (se mentisse, não seria comprovável). Pois nunca vi tanta mentira, tanto embuste, enganação e lorota como hoje. Veja o fake, cuja consagração nas mídias equivale a um Grammy, enquadrando com ouro os embustes: a falsidade se torna tão real que pode usurpar o espaço da verdade. O resto, ah, fica por conta da boca do povo, “telefone sem fio” que transforma tudo em verdade, até esquecermos onde a dita cuja foi parar.


S
egundo o caderno de filosofia Neurohacks, da BBC (26/10/16), uma equipe de cientistas liderada pela Drª Lisa Fazio saiu em campo para investigar como a ilusão do “efeito da verdade” interage com a nossa mente, se ela alteraria o conhecimento. Foram contrapostas afirmações verdadeiras e não-verdadeiras, como “O Oceano Pacífico é o maior oceano da Terra”, a outro exemplo conhecido, “O Oceano Atlântico é o maior oceano da Terra”, item não-verídico que as pessoas podem terminar reconhecendo como “verdade verdadeira”. O pesquisador Tom Stafford assegura que um fato pode tornar-se verdadeiro, mesmo sem o ser, e a compreensão desses efeitos pode ajudar o indivíduo a evitar as ciladas da propaganda.


U
m princípio no qual teria se baseado Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Hitler, ao supostamente proferir o corolário “Uma mentira repetida dez vezes se torna verdade”, é: quanto mais o indivíduo ouve algo, mais nele crê como verossímel, e quanto mais ele o repete mais acelera seu efeito multiplicador. Mc Luhan, nos anos 1960, em “O meio é a mensagem” (com o trocadilho em inglês mensagem/mass-age, “era das massas”) estudou os efeitos dessa multiplicação. (Ainda nas décadas pós-Goebbels/McLuhan, pesquisadores interpolaram um quadro entre os demais 23 na película com que se fazia cada segundo de filme naquela época, criando um efeito subliminar – ou seja, este quadro, entre os demais 23 em um segundo, não seria percebido e compreendido de forma liminar. Para confirmar, em experiências feitas em salas de cinema, naquele quadro “invisível” estava o logo da Coca-Cola com fundo vermelho, imagem que ficaria gravada no subconsciente de cada um e, terminada a sessão, teria multiplicado a sede do público pelo refrigerante, nos quiosques do saguões de entrada.


F
azer confusão, mesmo que seja no vaivém, no mente-desmente e mente novamente, faz ressurgir o efeito Pacífico-Atlântico, às vezes com grande impacto. Certa medicação inócua para combate à Covid, propagandeada insistentemente, foi usada apesar de desmentida sua eficácia. “Fulano é ladrão” (ou não é), o eu disse mas não disse, e até o famoso “a imprensa distorce tudo, coloca tudo fora de contexto”, generalizando a afirmação para desacreditar a fonte, personificando-a na “imprensa” como una. Ao final, prevalece o que for mais forte, mais verossímel, em geral o que foi mais repetido. Um exemplo desse efeito verso-reverso: recentemente, um certo senador declarou, por espontânea vontade, que teria tido uma reunião para que o atual presidente fosse impedido de tomar posse e um ministro de corte superior intempestivamente preso. Depois, renunciou ao mandato, modificou a narrativa e retirou sua renúncia, tendo terceiros a causar ainda mais confusão ao imbroglio, para que ficasse o dito e o redito por não dito. Ex-político e ex-instrutor da conhecida SWAT norte-americana, ele estaria na crista da onda da suposta armação, mas, duro na queda, treinado no esquadrão de elite americano, desfez e fez mais confusão. Experiência como ator ele tem: no filme Tropa de Elite, de José Padilha e Marcos Prado, treinou atores na simulação de investidas da Polícia em favelas. Restam aos que deverão questioná-lo judicialmente os velhos documentos dos autos, acareações e instrumentos forenses de praxe, uma vez que na habilidade de prestidigitador ele é mestre (não à toa, ele teria sido o “eleito” para engambelar e grampear um ministro de tribunal superior).

Carl Jung

O
suíço Carl Gustav Jung (1875-1961), psiquiatra e psicanalista, tinha certa obsessão pelos subterrâneos da mentira, como em “O Indivíduo Moderno em Busca de uma Alma”: “...mas nós não podemos viver o entardecer da vida conforme o programa de vida da manhã – porque o que era grande de manhã será pequeno à noite, e o que de manhã era verdade terá se tornado mentira à noite”. E como, em grau diminuto, a mentira está presente em nosso dia a dia: “A observância de leis e costumes pode facilmente ser um manto para encobrir mentira tão sutil que nossos companheiros, seres humanos, são incapazes de detectá-la”.

(Helena Xausa - BBC)

H
á aquela mentirinha social: “não posso ir, não passei bem”, ou “belo quadro”, “justamente o que eu esperava” (para agradar), e a comercial: “está novinha”, mesmo usada, “custa o dobro por aí”. Mas a pior, a pior de todas, é a mentira política, pois ela sangra os cofres públicos e faz uma volta para ir dar na conta de um parente ou em uma mansão no exterior. O real mentiroso age tão bem que chega a pensar que a falsidade que prega é verdadeira, e quando a desmente, sente estar mentindo, e o faz com a convicção ao avesso.


Acima de tudo, não minta para você mesmo. O homem desleal a si próprio que ouve sua própria mentira chega a um ponto em que não pode discernir a verdade, e perde o respeito para consigo mesmo e os outros. Não havendo respeito, ele para de amar” (Fyodor Dostoievsky: Os Irmãos Karamazov).

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

ÍNDIO QUER APITO, ÍNDIO QUER DIREITO

 


Era o ano de 1961, da posse e da velada tentativa de autogolpe de Jânio Quadros, em agosto. Havia tensão, e o clima um tanto conturbado, para variar, frequentemente escorregava para a anedota (não havia redes sociais!). Como aquela que se referia ao presidente estrábico e de pés tortos, na piada um índio querendo apito - claro, o poder. Haroldo Lobo e Milton de Oliveira lançaram um tremendo sucesso, inspirado na anedota: “ê ê ê ê ê / índio quer apito / se não der pau vai comer” - assíduo nos carnavais de décadas, mesmo que após aqueles tempos não se soubesse de que político se falava. Mas que era certo político, todo mundo sabia. Já uma índia suavizava o clima: a versão para o português de uma guarânia dos paraguaios Assunción Flores e Manuel Guerrero feita por José Fortuna em 1952: “Índia / seus cabelos nos ombros caídos / negros como a noite que não tem luar / seus lábios de rosa / para mim sorrindo...” Tem ainda a divertida “A índia vai ter neném / mais um, mais um, mais um que vem / Depois que vem o ‘baby’ / chefe pinta o ‘baby’ de urucum” (Dircinha Batista, 1964).


Em 2011, escrevi para o jornal O Progresso o artigo Geografia do Brasil, passando por cidades, morros, baías, praias e rios de nomes indígenas: Guanabara, Arariboia, Carioca, Anhanguera, Piracicaba, Chuí, Tietê, Paranapiacaba,  enfim, um pequeno glossário. A cada lugar por que meu texto passava, a tradução para o português e menção a algum personagem histórico local. Em Pindamonhangaba (lugar onde os anzóis são feitos, em tupi-guarani), fiz menção, sem citar o nome, a “um menino predestinado, já três vezes governador”. Passado um tempo, recebi uma dedicatória em papel timbrado do Gabinete do Governador, que reproduzo sem falsa modéstia: “Henrique Autran Dourado, com o seu talento a Geografia do Brasil ficou melhor. Seu artigo enaltece lugares, fatos e personagens importantes da nossa história, ao lado dos quais muito me honrou a sua referência. Parabéns! Abraço do Geraldo Alckmin” (por ironia, hoje vice-presidente da República). Alguém lhe teria entrege um exemplar do jornal em uma passagem por Pindamonhangaba.


Boa parte do nosso vocabulário, as influências musicais, nossa culinária, turismo - parece tão fácil ir a Ipanema ou Ubatuba sem saber onde estamos -, são tantas as raízes que talvez seja preferível fingir que não vemos ou sabemos, ou que nos é realmente desconhecido. Do Jobim de “...braços abertos sobre a Guanabara”, da “Garota de Ipanema”, do “Urubu” ou do “quero me casar com Janaína” (do Edu Lobo, Yemanjá na cultura mesclada afro-indígena), lá estão nossos povos originários, os que nos antecederam; da nossa mandioca, tapioca, ambas do tupi, o aipim, o açaí, o abacaxi, moqueca, pipoca, jaboticaba, quindim... O que seria do canto do sabiá, do jogo no Maracanã? Pois são sete grupos de línguas tais como Arikém, Juruna, Mondé, Mundurukú, Ramaráma, Tuparí, e só no Tupi-Guarani são 21, mais três isoladas: Aweti, Puruborá e Sateré-Mawé (fonte: EBC).


Existe um povo especial, o Yanomami, cujas origens na região datam mais de um milênio. Teriam tomado posse das cabeceiras dos rios Parima e  Orinoco, e lá desenvolveram suas próprias línguas (até o final do séc. 19, os Yanomami não conheciam senão poucas tribos indígenas, e o homem branco lhes era desconhecido). A partir de 1970/80, em Roraima, eles tiveram contato com colonização, fazendas, obras, serrarias e garimpos, invasão que provocou “um choque epidemiológico de grande magnitude, causando altas perdas demográficas, uma degradação sanitária” (fonte: PIB/SA).

O líder Davi Kopenava Yanomami

A visão do líder Davi Kopenava Yanomami pode até ter alguma poesia, de tão rica, mas é apocalíptica: “
A terra-floresta só pode morrer se for destruída pelos brancos. Então, os riachos sumirão, a terra ficará friável, as árvores secarão e as pedras das montanhas racharão com o calor. Os espíritos xapiripë, que moram nas serras e ficam brincando na floresta, acabarão fugindo. Seus pais, os xamãs, não poderão mais chamá-los para nos proteger. A terra-floresta se tornará seca e vazia. Os xamãs não poderão mais deter as fumaças-epidemias e os seres maléficos que nos adoecem. Assim, todos morrerão." Em 2011, os Yanomami eram, entre o Brasil e a Venezuela, 35 mil, e hoje se estima em 30 mil. No Brasil, seus 95.650 km² de floresta tropical são reconhecidos “por sua alta relevância em termos de proteção da biodiversidade amazônica e foram homologados por um decreto presidencial de 25/05/1992” (Bruce Albert, IRD).


A
penas em 2022 o desmatamento pelo garimpo ilegal na terra Yanomami aumentou 25%, ou seja, um quarto (Inpe). Malária, diarreia, desnutrição e, principalmente, doenças causadas pelo venenoso mercúrio usado no garimpo, são os principais vilões do massacre indígena. Somente no dia 26/01 foram seis mortos. O Hospital da Criança, em Boa Vista, tinha, naquela data, 64 pacientes internados, sendo sete em UTIs, e a Casai (Casa de Saúde Indígena) 700 Yanomamis aguardando atendimento. Quase cem crianças indígenas morreram no ano passado pelas mesmas causas - 570 crianças em poucos anos!

Há conscientização e até mobilização internacional sobre o assunto, que pensa em vidas e no meio ambiente como um todo: os olhos do planeta se voltam para as reservas, onde o quadro é doloroso como no triste poema Rosa de Hiroshima, de Vinicius de Moraes: “Pensem nas crianças / mudas telepáticas / pensem nas meninas / cegas inexatas / (...) pensem nas feridas /como rosas cálidas”. Pensem e reflitam.