MACHADO
DE ASSIS, O CONSERVATÓRIO E A ÓPERA DE SATANÁS I
Machado de Assis |
Meu pai volta e meia dizia que se
todo mundo lesse Machado de Assis menos mortes aconteceriam nas mesas de
cirurgia, menos viadutos e prédios cairiam e menos burocracia teríamos no país.
Ora, diria o leitor, por quê? Porque a escrita de Machado, a maneira de
arquitetar os mínimos detalhes, de envolver quem lê, ensinando-o a participar
de suas tramas e mistérios, exigem mais do que uma mera leitura de frases.
Mesmo simples e direta, requer raciocínio e organização mental para compreender
a ourivesaria do autor, e mesmo sob essa aparente simplicidade, por mais
contraditório que possa parecer, não é
uma literatura para se engolir sem bem mastigar.
Kindle |
Rever os clássicos é fundamental.
Beber o que é de melhor na fonte, sair da rotina dos jornais, dos novos
lançamentos e dos livros técnicos. Voltar a Machado é mergulhar no que melhor
se escreveu em nossa língua, um seletíssimo grupo de autores. A ideia de
começar uma releitura de Machado veio com um presente que recebi de minha filha
Marta: um Kindle, essa maravilha de livro eletrônico que permite ao cidadão
carregar uma biblioteca em um aparelho do tamanho de uma caixa de DVD - e
baixar livros em poucos minutos a preços muito abaixo dos exemplares impressos.
Logo, agreguei à minha coleção móvel o imortal Dom Casmurro, e pus-me a ler. No
consultório médico, no descanso, na fila de espera do banco.
Romulo, Remo e Capitolina |
O livro, da segunda fase de
Machado, desnuda a influência que o autor recebeu do pessimismo e das reflexões
sobre a loucura de Schoppenhauer (1788-1860). São características que
transparecem nas elucubrações mentais de Bentinho, jovem personagem do livro, e
sua ida a contragosto para o seminário, por promessa e voto de sua mãe –
preparação para o sacerdócio que ia contra sua paixão ciumentíssima e quase
louca pela adolescente Capitu (a bela “dos olhos de cigana, oblíquos e
dissimulados”). Aliás, apelido de Capitolina, que é também o nome da loba que
amamentou os gêmeos Rômulo e Remo, segundo a mitologia, sendo o primeiro o fundador de Roma (anagrama de Amor). Capitolina, a que amamentou dois ao mesmo
tempo, é toda sinal de onde ia a cabeça de Machado em um dos mais belos textos
em que dúvida e traição (pairando no ar) jamais foram escritos. E Machado deixa
a intuição para o leitor.
Pois foi assim que, envolvendo-me na leitura, pude rever um capítulo
curiosíssimo do livro, que Machado inseriu com intenção de provocar o leitor a
entrever no drama de Bentinho (diminutivo de “bento”) e Capitu (seu oposto)
suas reflexões teológicas por meio do capítulo “A Ópera”. Vamos a um trecho, em
que fala um personagem fortuito do livro, o velho tenor italiano: “A vida é uma ópera e uma grande
ópera. O tenor e o barítono lutam pelo soprano, em presença do baixo e das
comprimárias (N. do A.: papeis secundários), quando não são o soprano e o
contralto que lutam pelo tenor, em presença do mesmo baixo e das mesmas
comprimárias”. Já naquele tempo, Machado antecipava a anedota comum entre os
músicos de hoje: a ópera é o tenor tentando cantar a diva (soprano), e o baixo
e o barítono fazendo de tudo para atrapalhar.
A expulsão de Satanás (Leandro Quadros) |
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