Tudo começou por causa de um acidente com o cantor Roberto
Carlos. Aos seis anos de idade, durante uma festa em sua Cachoeiro de
Itapemirim (ES), na correria o menino escorregou e foi atropelado por uma
locomotiva, tendo a metade da perna direita amputada. Com uma prótese desenvolvida
para ele, seu caminhar hoje é quase natural. Apesar de o fato estar registrado
em incontáveis reportagens, livros e até no site público Wikipédia, Roberto não
quer ouvir falar do assunto – mesmo que ele próprio tenha composto uma música,
com o sugestivo título de “O Divã”, sobre o acidente: “Relembro bem a festa / o
apito / e na multidão um grito / o sangue no linho branco”. Também tirou de seu
repertório “Quero que vá tudo pro Inferno”, por causa da última palavra.
Na contramão de Roberto, Mara Gabrilli é um exemplo admirável.
Não apenas abriu sua vida para a biógrafa Milly Lacombe (“Depois daquele dia”,
recém-lançado): ela rasgou em público sua vida inteira, sem medo de se expor, em
sua incansável luta pelos deficientes. E não precisa de biografia não autorizada:
ela conta tudo mesmo. Fala do acidente que a deixou tetraplégica tão
abertamente quanto de sua vida íntima.
Em apoio a Roberto, entra em cena Chico Buarque, na defesa
intransigente do Art. 20 do novo Código Civil – sem compreender ao certo a
diferença entre um Código, diploma menor, e a Constituição Federal, maior, na
qual há dois incisos nada contraditórios (como alguns pensam) do Art. 5º. Diz o
inciso IV: “é livre a manifestação do pensamento...”. A seguir, o V: “ (...) indenização
por dano material, moral ou à imagem”. Mas há uma pedra no caminho: o Art. 20
do Código Civil precisa ser eliminado ou modificado, à luz da Constituição. No
início, nem Chico nem a presidente da Procure Saber, Paula Lavigne, ex de
Caetano, pareciam entender uma coisa ou outra, e nem quando o novo Código havia
entrado em vigor, citando proibições a biografias que aconteceram anteriormente.
Um "carona"
A Roberto e Chico juntou-se, meio timidamente, Caetano. Depois,
solidários, Gilberto Gil e Djavan, assim como alguns artistas menores,
seguramente de carona na fama dos grandes nomes. Ana de Hollanda, ex-ministra
da Cultura, diverge do irmão e é contra a necessidade de autorização prévia do
biografado, e Paulo César de Araújo, biógrafo proibido do Roberto Carlos, cerra
fileira do lado da livre-bibliografia, assim como muitos artistas, intelectuais
e historiadores, que temem que relatos históricos podem vir a ser proibidos pelas
famílias de seus personagens. Hoje a pressão recai sobre o Chico (Roberto se
fecha em copas), que confessa (Folha, 18 de outubro): “Posso ter me enganado.
Julgava estar tendo uma posição sensata”.
Passo a um episódio real, e o conto na primeira pessoa, não
na do Chico. O ano era 1975, e a “Gota d’Água”, de Chico e Paulo Pontes, estava
para ser estreada no Rio, no Teatro Tereza Raquel. Bibi Ferreira fazia o papel
principal e a cenografia foi de Gianni Rato, que havia trabalhado até para Federico
Fellini. Os músicos (entre eles eu) ficaram a cargo do Dori Caymmi.
Aproximava-se a estreia da peça, e nós e as bailarinas sem recebermos o valor
prometido para os ensaios.
Em vista do descumprimento do acordo, partituras já memorizadas,
informamos que não haveria estreia. Com uma fila quilométrica desde muito cedo na
porta do teatro, não haveria como alegarem “possível prejuízo” (a temporada foi
um estrondo). Restou-me apelar para o Chico. Fui ao boteco onde ele tomava seu
uísque, e pedi que intercedesse. Ele respondeu que isso era “problema da
produção”. Insisti, alegando até o compromisso do compositor com a causa da justiça
social, e por aí vai. Nada.
Sob pressão, e sem Chico, foi selado um acordo com a
produção, e as carteiras de trabalho foram
assinadas. Fiquei frustrado com o Chico, mal podia ouvir falar nele. Porém, com
o passar dos anos, percebi que um artista famoso é um mito forjado e trabalhado,
mas também é um ser humano. Pois se até Francisco disse que os papas também
pecam, imagine o outro Chico com seus pecadilhos. Não se cobra a perfeição de
um artista como pessoa, embora sua vida seja pública e ele exponha em arte suas
ideias. Mas isso é uma coisa, e censurar previamente é outra. (Abaixo, gravação
de trecho da Gota d’Água com Bibi Ferreira no papel cantando “Basta um Dia”, do
Chico).
Ruy Guerra, cineasta e poeta
A imagem do artista é um retrato cunhado para o público. Em “Canto
Latino”, de Milton Nascimento (que ora perfila com o Procure Saber), o letrista
Ruy Guerra, mesmo que subjacentemente, fez uma apologia oculta à guerrilha -
mas claro, nunca poderia ser cobrada do poeta uma adesão às armas! “Brota em
guerra e maravilha / na hora, dia e futuro / da espera virar...” (e a
estudantada gritava, ao final: “guerrilha”). Passei a admirar ainda mais o
Chico depois dessa: “Agora, se a lei tá errada, se eu tô errado, tudo bem.
Perdi”. Bravo, Chico. (Ouça abaixo o áudio de Milton Nascimento cantando a
célebre “Canto Latino”, dele e do Ruy Guerra)
Chegando ao final da novela, a ministra Marta Suplicy dá o
tom: liberdade total, mas multas pesadas por calúnia, difamação, injúria,
mentiras e danos morais (aliás, os três primeiros já são crimes previstos nos Art.
138/140 do Código Penal). E Joaquim Barbosa expõe de sua forma, e difícil será
não concordar: liberdade completa, mas um rito sumário e rigoroso para os que
cometem comprovadamente não a revelação da verdade, e sim injustiças por meio
de falsidades e ataques pessoais. Henrique Alves, presidente da Câmara, corre
para tirar da gaveta e tenta pautar para um Projeto de Lei que modifica o malfadado artigo em momento efervescente - aliás, bastante oportuno politicamente – antes que o
STF risque o “vintinho” de vez, e salve as biografias!
A economia é uma ciência bastante inexata, e sujeita a
correntes teóricas e filosóficas de diversos matizes. A começar pelo escocês
Adam Smith (1723-1790), economista e filósofo, pai do liberalismo; Keynes
(1883-1946), o homem da macroeconomia da escola de Cambrigde – sim, por divergirem
eles têm escolas instaladas nas grandes universidades -; Kenneth
Galbraith (1908-2006), também da linha de Cambridge, foi assessor do presidente
Kennedy e publicou uma severa crítica à economia norte-americana (A Sociedade
Opulenta, de 1958). Seu livro A Era da Incerteza (The Age of Uncertainty) foi
transformado em um dos mais belos filmes sobre economia: a moeda, o crescimento da
economia mundial e o capitalismo. (Abaixo, o 6º capítulo de A Era da Incerteza –
Dinheiro, com John Kenneth Galbraith, fascinante!).
Karl Marx
Antes dele, o alemão Karl Marx (1818-1883) abraçou mais
ramos do conhecimento, além da economia: filosofia, história, ciências sociais
e literatura. Muito embora tenha sido um dos ideólogos do comunismo, Marx criou
teorias empregadas até mesmo pela chamada direita: mais valia e menor valia,
poder econômico e poder político, entre tantas outras.
MIT, Campus
A teoria econômica tem diversas “escolas”, mas o rigor
científico nelas é o das propostas, e não a conclusão matemática final – seja sobre
assunto passado (história), a análise do presente e, quanto ao futuro, aquilo que
presumivelmente deverá acontecer. O Brasil tem grandes economistas formados no MIT
(Massachusetts Institute of Technology), como André Lara Resende e Pérsio
Arida, um dos pais do Plano Real, além de nosso ex-secretário de cultura e
ex-vice-diretor do BID, João Sayad. A pomposa Harvard University nos deu Gustavo
Franco, ex-BNDES, assim como Henrique Meirelles, ex-Bankboston e ex-Banco
Central. Mas as disputas hoje ficaram entre Chicago e Yale.
Nobel de Economia 2013: os vencedores
O prêmio Nobel de Economia 2013 foi dividido em 14 de
outubro entre dois baluartes da Universidade de Chicago, Eugene Fama, 74, o
festejado Lars Peter Hansen, 60, e um da Yale University: Robert Schiller, 67. Vou
me deter em Schiller, que tem pesquisado o mercado de ações, além de ser um estudioso
do mercado imobiliário brasileiro.
O Index de Schiller, na crise americana: um gráfico tenebroso
The Housing Bubble: a "bolha americana")
Diz ele que os preços do mercado de imóveis no Brasil, muito
especialmente no Rio e em São Paulo, são alarmantes. Pensa que o fenômeno
japonês de 1980 pode se repetir, ou ainda a famosa “bolha imobiliária” que
estourou nos EUA em 2005/6, ameaçando a volátil economia americana e sacudindo o
mundo inteiro. Schiller havia alertado sobre o risco da “bolha” americana, e
foi atacado. Hoje, passado o tsunami da “bolha”, Schiller é merecidamente
contemplado com o maior prêmio que um cidadão do mundo pode receber.
Schiller: o título para Yale
Na semana passada, neste mesmo espaço, escrevi o artigo “A
Pior Qualidade de Vida em Poucas Lições”. Eu não conhecia Schiller, e menos
ainda poderia adivinhar o resultado do prêmio Nobel. Tratou-se de uma
coincidência entre minhas intuições amadoras e a erudição de um gênio em um ramo
que não “toco” nem “de ouvido”. Na
coluna, tratei do excesso de aberturas ao financiamento, por parte do governo,
de uma queda nos juros que foi (e já não é mais tanto) atrativa, da ampliação
do uso do FGTS, da queda do IPI para estimular a indústria da construção -
resumindo, um estopim para o “estouro” de uma possível bolha brasileira (se
Schiller não garante, como disse ele, quem seria eu, pobre mortal?).
O Capital: Crítica da Economia Política
Se o preço dos imóveis no Rio e em São Paulo começar a
desabar, haverá fuga do mercado, inadimplência e o abandono de prestações
altíssimas para imóveis cujo valor pode cair em queda livre, ao estilo do fenômeno
americano, com uma deterioração nos preços finais dos imóveis que poderia por
em risco a economia do país. O velho Marx dizia que a história se repete, e da
segunda vez como farsa. Tomara que não.
São Paulo
No texto, citei os apartamentos de luxo de mais de 20
milhões na Vila Olímpia, em São Paulo, e dos que ficam na orla de Ipanema e
Leblon, no Rio, que chegam a R$ 26 milhões para os “top”, enquanto um castelo
em Toulouse, na França, é anunciado por R$ 3,6 milhões. Passamos pela Rua 25 de
março, no centro de São Paulo, onde uma lojinha de 100m2 pode valer
R$ 1,2 milhões, até o suprassumo do absurdo: um apartamento de R$ 266 mil na
Vila Olímpia com ótimo acabamento (perto de restaurantes finos, vizinhança de
primeira, comércio chique) – só que com míseros 19m2 – barracos dos
menores empilhados em uma favela vertical de luxo. Nos últimos 5 anos, em São
Paulo, o tamanho médio dos apartamentos caiu 28,4%, mas o preço subiu 124%,
uma alta de quase 150% no preço final.
Esse tratamento de altíssimo risco para conter o índice de desemprego,
desovar material de construção, estimular a aquisição de imóveis e ampliar o
uso do FGTS para a compra de moradia própria, tem sido o combustível de boa
parte das cifras de nossa economia. Porém, volto ao Schiller, com sua argúcia e
precaução: essa ciência, economia, é a história do passado, o cálculo e
observação do presente e a filosofia do futuro (e não a ‘futurologia’ de que
falava um grande economista, fiel soldado da ditadura, Delfim Netto). Por isso,
Schiller nos deixa o benefício da dúvida quanto à “bolha” brasileira, dizendo
que “não cravaria isso”. Porém, quem vê esse momento, mesmo que com óculos de
amador, sabe que é impossível os preços subirem mais. Quando muito, cairão a um
patamar aceitável. Resta esperar e torcer para que a suposta “bolha” seja como
aquelas que dão no pé, quando o sapato é apertado: incha, estoura, dói um
pouquinho mas logo passa.
O crescimento desordenado das cidades, sem um planejamento
habitacional e populacional para o futuro, pode levar a uma hecatombe. Na antiguidade
morava-se em tendas simples ou coisa assim, e a moeda era o gado (... ou coisa
assim), tudo ao redor da natureza. Hoje, vemos solapado o direito sagrado de
viver bem, com um mínimo de dignidade e conforto.
Engarrafamento em São Paulo
Há poucas décadas, um bom apartamento de três dormitórios em
São Paulo ou Rio tinha 150 m2 (ou mais). Hoje, vemos anunciadas
obras de 57 m2 para o mesmo tipode moradia. O que
acontece, então? Claro, as cidades cada vez mais comprometem seu espaço com a
verticalização, além de despejarem dezenas ou centenas de automóveis em um espaço onde
antes havia apenas um ou dois por casa. Sem a expansão horizontal, derrotada
pela industrialização, as cidades crescem desordenadas e sufocadas. E ainda assim a vida encarece.
Casas simples em Fairfax, Virginia, EUA
Se em países como os EUA a tendência são os subúrbios,
cidades ou estados das vizinhanças – a exemplo de Washington, D.C., e os
estados limítrofes da Virginia e New Jersey (em sua maioria casas aprazíveis e sem
muros), aqui, talvez por causa da natureza gregária tribal do brasileiro, em nossas cidades gostamos de nos amontoar, uns sobre os outros, em acampamentos verticais cada
vez menores e engarrafando as estreitas vias de antigamente com nossos automóveis
do futuro.
Soluções de impacto na economia são tomadas pelos governos para
gerar de supetão o esperado aumento no índice de empregos nas obras, facilitando o crédito e encolhendo os impostos sobre os materiais de
construção – sem falar no aumento de R$ 500 mil para R$ 750 mil no teto do FGTS
para utilização na aquisição da casa própria. Tudo para “aquecer a economia” e
o emprego. Com esse impacto, sob maior demanda e oferta ainda não suficiente, caminhamos
para um cenário nada confortável. E tome incentivo para multiplicar o número de automóveis nas ruas, opção histórica do brasileiro em detrimento dos trens, metrô e ônibus.
Cingapura
Em Cingapura, um amontoado de ilhas cuja área (712 mil m2)
é de apenas dez vezes a do terreno do alojamento de alunos do Conservatório de
Tatuí, espremem-se 5 milhões de habitantes em ínfimos espaços. E quais são as
soluções ou panaceias adotadas por aquele país insular asiático? Limitar ao
máximo o crescimento demográfico, até mesmo - pasme – erguendo a espada de Dâmocles,
a demissão do emprego da mulher que engravida. E mesmo assim, para conter esse
pânico populacional, pensa-se em expandir a área do país – só que para baixo, na forma
de imensos subterrâneos.
"Dormitório" em Tóquio
Em Tóquio, no Japão, é comum pessoas pagarem mais de US$ 100
por uma noite em uma caixa de acrílico, como gaveta de cemitério, com o
conforto de uma pequena luz e, quando necessário, um miniventilador. Tanto
Japão e Cingapura, entre outros, têm obstáculos geográficos que tornam
imperativo estancar o crescimento populacional. Ao contrário, em alguns outros
países há até mesmo estímulo ao nascimento de novos cidadãos, como o enorme e
pouquíssimo populado Canadá, além da Inglaterra e Alemanha.
Castelo de 3,6 milhões em Toulouse
E no Brasil? Aqui, com o avanço das empreendedoras,
crédito fácil e demanda estimulada, chega-se a ocupar o antes inocupável, oferecendo moradias a preço baixo via projetos governamentais de alcance frequentemente mais
político do que habitacional. Neste 2013 que já quase termina, gastou-se zero
com a reforma agrária. Mas a classe alta já “emergida” estimula um mercado que
não tem mais limites nos recantos da alta sociedade: um apartamento de luxo em
Moema ou Vila Olímpia, na capital paulista, chega a custar absurdos 20 milhões,
valor que paga alguns castelos na França, segundo matéria recente da
Folha. (Só que lá tem que pagar motoristas, para manobrar as quase 30 vagas da garagem
palaciana, além governantas e mordomos. Coisa de palácio, “noblesse oblige”).
Estarrecedor, não? E veja isto: na Rua 25 de março, centro
de São Paulo, o metro quadrado chega a custar 12 mil – sim, onde tem aquelas portinhas
que empilham produtos dentro e fora das lojas. Uma lojinha meia-boca de 100 m2
pode valer 1,2 milhões. E vamos ao Rio: especialmente com a proximidade
da copa, os preços enlouqueceram de vez. Nos entornos da orla e nas praias de
Ipanema e Leblon, por exemplo, o metro quadrado construído chega a 65 mil. Isso
mesmo. O que quer dizer que um típico apartamento de alto luxo ali, com uma
área útil de 400 m2, chega a custar a bagatela de 26 milhões. E apartamentos
nos subúrbios também pululam na capital fluminense, alçando preços nunca antes
imagináveis.
Planta do apartamento de 19m2
A supercampeã é uma construtora que está para entregar um
prédio de fino acabamento na Vila Olímpia, em São Paulo, oferecendo, a módicos
R$ 266 mil reais, apartamentos para executivos ou estudantes. Ótimo bairro,
comércio fino, bons restaurantes, lugar de grife mesmo. O problema é a metragem do
apartamento: 19 m2,uma palafita vertical de luxo. Um
cubículo para entrar e dormir. O conceito do bom padrão de vida e moradia tem
sido devastado pelo casamento poligâmico entre especulação, trânsito, medidas
de impacto político e descontrole administrativo, caminho certo para vivermos uma
vida cada vez pior, salvando-se apenas os que podem pagar muito alto pela
praticidade e conforto. A Empresa Brasileira de Estudos de Patrimônio detectou
que, em cinco anos, o tamanho médio dos lançamentos em São Paulo caiu 28,4%, enquanto
o preço subiu 124%. “Eu quero uma casa no campo”, cantou Rodrix, lembra? E Você? Não?
Em linguagem plena de simbolismo, várias passagens do Novo
Testamento repetem, de uma forma ou de outra, a mesma frase dita pelo Salvador:
“traziam-lhe até mesmo criancinhas para que as tocasse; vendo aquilo, os
discípulos as repreendiam. Jesus, no entanto, chamou-as (N. do A.: as crianças)
dizendo a todos: ‘deixai virem a mim as criancinhas e não as impeçais, pois é
delas o Reino de Deus. Em verdade vos digo, aquele que não conhecer o Reino de
Deus como uma criancinha, não entrará nele (Lucas 18, 15-17). Textos
semelhantes de outros evangelistas, Marcos 10, 13-16 e Mateus 19, 13-15 também
relatam o episódio.
A passagem estampa as palavras de Cristo e sua intenção de
receber as crianças livremente, e os versículos citados podem ser interpretados
como o desejo de Jesus de que as crianças viessem, com ele, a se encontrar o
Pai, Deus, que lhes era desconhecido. Os Evangelhos demonstram a imagem da
pureza inocente das crianças, e diz mais: que para merecer o reino de Deus cada
um deve sentir-se como um dos pequenos.
Sodoma
Já o Antigo Testamento traz uma visão diferente, em muitas
passagens, como em Gênesis, 19: nenhuma criança salvou-se de Sodoma e Gomorra,
provavelmente significando que os pequenos foram contaminados pelo mal que
soçobrava naquelas cidades sobre as quais a Bíblia judaica diz ter Deus
despejado sua ira, destruindo a tudo e todos com fogo e enxofre. No Salmo 58.3,
lemos que “os ímpios (impuros, incrédulos) se desviam desde o nascimento”.
Entre os judeus de antes de Cristo, a visão sobre as crianças não é tão sublime
quanto a de Cristo contada pelos evangelistas: “Alienam-se os ímpios desde o
nascimento; andam errados desde que nasceram falando mentiras”, diz o mesmo
Salmo.
"Jesus, rei dos judeus"
A pureza da criança está presente já mesmo no nascimento do
Filho de Deus, o Menino Jesus, aquela criança que traria medo ao Império como o
Rei dos Judeus, o que na visão do governo da Judéia representaria uma liderança
ameaçadora ao poder. E o Menino era criança, de criar, de cria mesmo - como
entre os animais, tudo da mesma raiz, essa a imagem que todos nós gostamos de
ver e cultivar, tão ameaçadora para os poderosos, os tiranos e os inimigos do
povo. O Pai é quem cria, é o Criador, dizem as escrituras.
Verdade é que no fundo, no fundinho mesmo, ficamos
apreensivos quando nossos filhos entram na puberdade rumo ao mundo adulto. Todo
aquele frescor, aquela beleza, do sorriso de poucos dentes, as gracinhas, as
birras, as pirraças, a baguncinha que nos fazem fingir de irritados. Só fingir.
Tudo isso torna-se assunto para piadas sobre os nossos próprios filhos, que
contamos com prazer para nossos amigos e amigas, anedotas reais narradas com
orgulho e um sorriso nos lábios – nos dias de hoje, são gracinhas divididas e
multiplicadas até mesmo nas redes sociais. E não é que também fomos todos
crianças, um dia, assim como o foram nossos pais, e o serão nossos netos?
O ciclo da natureza diz que nascemos, crescemos, nos
reproduzimos e... morremos. Porém, não é o caso de se evocar aqui nada triste,
pois o mais triste mesmo acontece em vida, esse curto espaço de tempo entre o
início e o fim do ciclo de cada um, vida cujo lado mais belo é vê-la
reproduzir-se no nascimento e esplendor de mais uma criança, um a mais a
colaborar em nossa missão de povoar este imenso mundo.
Criado, criatura, tudo surgido do latim, de onde também veio
crisma - de “chrisma”-, que significa unção, a confirmação do batismo (no rito
católico). Chico Buarque, com a fina veia poética de sempre, cantou em Minha
História (versão da música e letra de ‘Gesù Bambino’ dos italianos Lucio Dalla
e Palotino): “quando enfim eu nasci minha mãe / enrolou-me num manto / me
vestiu como se eu fosse assim / uma espécie de santo / (...) e não sei bem se
por ironia ou se por amor / resolveu me chamar com o nome do Nosso Senhor”.
O poeta mostra um menino mais mundano, atual, marginal até,
mas que guarda em si a pureza infantil do Menino Jesus, pleno das qualidades
que desde cedo lhe valeram o santo apelido. Se o mundo que o personagem
buarqueano encontrou é cheio de vícios, “ladrões e amantes, colegas de copo e
de cruz”, por outro lado ele se sente ainda criança em meio à podridão das
nações contaminadas pela injustiça social e desigualdades – como as que o Jesus
real, pobre e vítima, o condenaram desde que nasceu, rebento do ventre de
Maria. Em contraponto, finaliza o personagem da canção, todos de seu mundo
hostil e sujo “me conhecem só pelo meu nome de Menino Jesus”: uma boa criança,
um bom garoto. (Abaixo, gravação histórica para a TV italiana, com Chico, Lucio
Dalla e Toquinho)
Maestro Camargo Guarnieri
Mas o que é mesmo uma criança? Seria a fase entre o
bebê e a puberdade, como querem alguns especialistas, ou seria algo mais
flexível, um estado de espírito? Quem nunca ouviu falar de Baby Pignatari, Baby
do Brasil, Baby Doc? Quem não chama seus filhos, às vezes já pais de seus
netos, de crianças? Não consigo deixar de dizer “vou buscar as crianças” (o
menor de meus quatro tem 16 anos). E quando meu filho Lucas - aliás, Baby
Lucas, hoje morando em Seattle, EUA -, se juntava com Baby Fernando, filho do
flautista da Osesp José Ananias, e Baby Alexandre, filho do violoncelista Bob
Suetholtz, e iam brincar no parquinho do Clube Paulistano enquanto o avô de
Baby Alexandre, o ilustríssimo maestro Camargo Guarnieri, nos permitia absorver
suas palavras inteligentíssimas sobre música, história e vida? Pois serão todos
“babies” para sempre!
Baby Alexandre Camargo Guarnieri Suetholtz
Baby Lucas Dourado
Platão
Platão nos ensinou uma pérola: “podemos perdoar uma criança
que tem medo da escuridão, pois a tragédia reside nos homens que temem a luz”.
A elas (crianças) nos é facultado perdoar, pois que é da natureza delas ver o
mundo de forma sincrética (de visão global, generalizada, mista) e não como
nós, que o vemos sob a impiedosa ótica analítica, armados diante do medo ao
desconhecido, cegos à luz. Segundo o psicólogo e pensador suíço Jean Piaget,
talvez por volta dos sete anos essa metamorfose tem início, com essa idade a
criança igualmente inicia suas descobertas do mundo adulto, mundo que em breve
irá adentrar e desbravar, livre como um pássaro em seu primeiro voo, dono de si
mas abandonando no ninho a casta pureza infantil.
Esse “pé nas nuvens” da infância seduzia o gênio Albert
Einstein (curiosamente, um judeu meio distante de sua crença, e também distante
da criança que David vê em seu Salmo 58). Einstein achava que a verdade e a
beleza são os fatores que nos permitiriam permanecer crianças, mesmo adultos,
até o resto de nossas vidas. (Pois não foi ele mesmo um dos grandes exemplos de
criança? A língua de fora, as excentricidades, os cabelos desgrenhados, as
brincadeiras, as piadas e caretas...).
Jean-Paul Sartre
O existencialista Jean-Paul Sartre, aquele que foi “para não
deixar de ser”, dizia que foi uma criança, “daquelas que os adultos moldam de
acordo com suas mágoas e frustrações”. Porém, esse azedume em forma de
pensamento se explica pelas leituras que fazia com frequência dos textos da
linha do pessimismo (Schoppenhauer), e da negação (niilismo, do latim “nihil”:
nada), que contaminara até Nietzsche,
filósofo alemão do séc. 19).
Hemingway e os peixes
Com outro espírito, Ernst Heminguay, sempre romântico e
amante da liberdade, autor da obra prima “O Velho e o Mar”, belíssima ficção
sobre uma longa, inglória e solitária luta entre um pescador e seu peixe,
jornada que era sua labuta, o alimento salvador. Heminguay achava que as crianças são o
presente mais doce que a natureza dá para a humanidade (talvez tal qual os
peixes, deve ter pensado ele, vivenciando em si seu pescador). Sobre crianças e
peixes também canta Milton Nascimento: “eu vejo esses peixes e vou de coração /
eu vejo essas matas e vou de coração à natureza”. E segue, em seu Milagre dos
Peixes: “telas falam colorindo de crianças coloridas...” Mas há o mal que
espreita e ameaça essa meninada, há o mundo repressor que as envolve (a canção
é dos tempos da ditadura): “eles não falam do mar e dos peixes / nem deixam ver
a moça, a pura canção / nem ver nascer o sol... / eu apenas sou um a mais, um a
mais / a falar dessa dor, a nossa dor”. Tornando-se criança, Milton se agacha
entre os pequenos, protegendo-os, e se mostra apenas um a mais a falar dessa
dor, o sofrimento de todos nós, mulheres e homens! (Abaixo, Milton se supera em
“Milagre dos Peixes”, no Festival de Montreaux, em 1999).
Todos os dias são das crianças. Ao levantar, ao ir para a
creche ou para a escola, na hora da pizza ou do sorvete, do game ou da bola de
meia. Mas para que serviria então um dia dedicado a eles? Para lhes demonstrar
toda a nossa atenção e pensamentos, nossos desejos e paixões, de vê-los crescer
felizes e crianças por toda, toda a vida.
Isabela e Pedro, filhos, alguns anos atrás
Blog dedicado aos meus filhos e ao neto que vai nascer inglêsem
2014. Filho de Marta, que como Maria também "escolheu a parte certa". E a todas as crianças de todas as idades do mundo.