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quinta-feira, 24 de outubro de 2013
DE MÚSICOS E BIOGRAFIAS
Locomotiva em Cachoeiro de Itapemirim
Tudo começou por causa de um acidente com o cantor Roberto
Carlos. Aos seis anos de idade, durante uma festa em sua Cachoeiro de
Itapemirim (ES), na correria o menino escorregou e foi atropelado por uma
locomotiva, tendo a metade da perna direita amputada. Com uma prótese desenvolvida
para ele, seu caminhar hoje é quase natural. Apesar de o fato estar registrado
em incontáveis reportagens, livros e até no site público Wikipédia, Roberto não
quer ouvir falar do assunto – mesmo que ele próprio tenha composto uma música,
com o sugestivo título de “O Divã”, sobre o acidente: “Relembro bem a festa / o
apito / e na multidão um grito / o sangue no linho branco”. Também tirou de seu
repertório “Quero que vá tudo pro Inferno”, por causa da última palavra.
Na contramão de Roberto, Mara Gabrilli é um exemplo admirável.
Não apenas abriu sua vida para a biógrafa Milly Lacombe (“Depois daquele dia”,
recém-lançado): ela rasgou em público sua vida inteira, sem medo de se expor, em
sua incansável luta pelos deficientes. E não precisa de biografia não autorizada:
ela conta tudo mesmo. Fala do acidente que a deixou tetraplégica tão
abertamente quanto de sua vida íntima.
Em apoio a Roberto, entra em cena Chico Buarque, na defesa
intransigente do Art. 20 do novo Código Civil – sem compreender ao certo a
diferença entre um Código, diploma menor, e a Constituição Federal, maior, na
qual há dois incisos nada contraditórios (como alguns pensam) do Art. 5º. Diz o
inciso IV: “é livre a manifestação do pensamento...”. A seguir, o V: “ (...) indenização
por dano material, moral ou à imagem”. Mas há uma pedra no caminho: o Art. 20
do Código Civil precisa ser eliminado ou modificado, à luz da Constituição. No
início, nem Chico nem a presidente da Procure Saber, Paula Lavigne, ex de
Caetano, pareciam entender uma coisa ou outra, e nem quando o novo Código havia
entrado em vigor, citando proibições a biografias que aconteceram anteriormente.
Um "carona"
A Roberto e Chico juntou-se, meio timidamente, Caetano. Depois,
solidários, Gilberto Gil e Djavan, assim como alguns artistas menores,
seguramente de carona na fama dos grandes nomes. Ana de Hollanda, ex-ministra
da Cultura, diverge do irmão e é contra a necessidade de autorização prévia do
biografado, e Paulo César de Araújo, biógrafo proibido do Roberto Carlos, cerra
fileira do lado da livre-bibliografia, assim como muitos artistas, intelectuais
e historiadores, que temem que relatos históricos podem vir a ser proibidos pelas
famílias de seus personagens. Hoje a pressão recai sobre o Chico (Roberto se
fecha em copas), que confessa (Folha, 18 de outubro): “Posso ter me enganado.
Julgava estar tendo uma posição sensata”.
Passo a um episódio real, e o conto na primeira pessoa, não
na do Chico. O ano era 1975, e a “Gota d’Água”, de Chico e Paulo Pontes, estava
para ser estreada no Rio, no Teatro Tereza Raquel. Bibi Ferreira fazia o papel
principal e a cenografia foi de Gianni Rato, que havia trabalhado até para Federico
Fellini. Os músicos (entre eles eu) ficaram a cargo do Dori Caymmi.
Aproximava-se a estreia da peça, e nós e as bailarinas sem recebermos o valor
prometido para os ensaios.
Em vista do descumprimento do acordo, partituras já memorizadas,
informamos que não haveria estreia. Com uma fila quilométrica desde muito cedo na
porta do teatro, não haveria como alegarem “possível prejuízo” (a temporada foi
um estrondo). Restou-me apelar para o Chico. Fui ao boteco onde ele tomava seu
uísque, e pedi que intercedesse. Ele respondeu que isso era “problema da
produção”. Insisti, alegando até o compromisso do compositor com a causa da justiça
social, e por aí vai. Nada.
Sob pressão, e sem Chico, foi selado um acordo com a
produção, e as carteiras de trabalho foram
assinadas. Fiquei frustrado com o Chico, mal podia ouvir falar nele. Porém, com
o passar dos anos, percebi que um artista famoso é um mito forjado e trabalhado,
mas também é um ser humano. Pois se até Francisco disse que os papas também
pecam, imagine o outro Chico com seus pecadilhos. Não se cobra a perfeição de
um artista como pessoa, embora sua vida seja pública e ele exponha em arte suas
ideias. Mas isso é uma coisa, e censurar previamente é outra. (Abaixo, gravação
de trecho da Gota d’Água com Bibi Ferreira no papel cantando “Basta um Dia”, do
Chico).
Ruy Guerra, cineasta e poeta
A imagem do artista é um retrato cunhado para o público. Em “Canto
Latino”, de Milton Nascimento (que ora perfila com o Procure Saber), o letrista
Ruy Guerra, mesmo que subjacentemente, fez uma apologia oculta à guerrilha -
mas claro, nunca poderia ser cobrada do poeta uma adesão às armas! “Brota em
guerra e maravilha / na hora, dia e futuro / da espera virar...” (e a
estudantada gritava, ao final: “guerrilha”). Passei a admirar ainda mais o
Chico depois dessa: “Agora, se a lei tá errada, se eu tô errado, tudo bem.
Perdi”. Bravo, Chico. (Ouça abaixo o áudio de Milton Nascimento cantando a
célebre “Canto Latino”, dele e do Ruy Guerra)
Chegando ao final da novela, a ministra Marta Suplicy dá o
tom: liberdade total, mas multas pesadas por calúnia, difamação, injúria,
mentiras e danos morais (aliás, os três primeiros já são crimes previstos nos Art.
138/140 do Código Penal). E Joaquim Barbosa expõe de sua forma, e difícil será
não concordar: liberdade completa, mas um rito sumário e rigoroso para os que
cometem comprovadamente não a revelação da verdade, e sim injustiças por meio
de falsidades e ataques pessoais. Henrique Alves, presidente da Câmara, corre
para tirar da gaveta e tenta pautar para um Projeto de Lei que modifica o malfadado artigo em momento efervescente - aliás, bastante oportuno politicamente – antes que o
STF risque o “vintinho” de vez, e salve as biografias!
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