Capa do programa de estreia de A Flauta Mágica |
A FLAUTA MÁGICA (die Zauberflöte) é uma das maiores obras
de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), entre as inúmeras que produziu. Por seu
simbolismo, alusões à maçonaria francesa, à vida na corte austríaca e a
política na era da Rainha Maria Theresa (que surgirá na ópera como a Rainha da Noite), tornou-se assunto para estudo não
apenas artístico, mas também literário e histórico, além de farto material sobre a atuação da maçonaria da época. Com libreto (texto) escrito por Schikaneder,
maçom da mesma ‘loja’ de Mozart, as alusões à sociedade discreta (secreta?) a 'estória' passeia por símbolos e signos – um deles, o número três, está presente
em vários momentos -, entre desafios e provas da maçonaria de linha francesa da
época, que eram o caminho rumo à iniciação e posterior conquista dos graus hierárquicos a serem galgados nos
traços bem delineados desde os escritos da sociedade maçônica desde a antiguidade.
Ilustração: um 'Singspiel' típico da época |
COMO NESTE TEXTO ESTAMOS TRATANDO DE UMA ALEGORIA, é melhor
irmos desde já aproximando a 'estória real' da ópera à fantasia de nossa livre
interpretação, para improvisarmos à nossa maneira e à luz dos tempos
atuais sobre o texto original da obra. O que se segue não é uma parábola e,
menos ainda, uma fábula: é o retrato de uma visão política atual do simbolismo
concebido musicalmente por Mozart para a riquíssima cena a se desenrolar no palco. A Flauta
Mágica é um Singspiel (ópera de espírito cômico entremeada com diálogos
falados), o que a torna atraente ao público, fora algumas árias bastante conhecidas
do leigo – uma delas, até pela voz de um recente falso contratenor
(via falsete, pois contratenor é voz em extinção) brasileiro surgido da música popular, Edson Cordeiro, que ficou famoso cantando obviamente
em tonalidade bem mais baixa do que a original, chegando a seus ‘quinze minutos
de fama’ sem qualquer associação à obra-prima mozartiana em si.
Cortinas do Royal Opera House, Londres |
NOSSA ALEGORIA SOBRE A FLAUTA MÁGICA versa sobre esta ópera
em due turni (dois atos). Nossos personagens principais, são, com seus
respectivos intérpretes, e respeitando a simples classificação vocal do próprio Mozart
na partitura: a Rainha da Noite (soprano), papel interpretado por Vilma Joseph),
Sarastro (baixo, papel de Luigi Nacci Lully), o grande líder dos sacerdotes de
Ísis (deusa da saúde e do amor) e Osíris (deus da morte e ressurreição). O
sumo sacerdote, contudo, não detém o poder diretamente em suas mãos. Tamino, o príncipe (tenor, papel de Édouard Duchamp),
Pamina (papel da soprano Marín Silvia), filha da temível Rainha da Noite, e
Papageno, o caçador de pássaros (papel do barítono Eccio Neige) que acompanha a
certa distância Tamino (Édouard) e Pamina (Marín) em sua 'peregrinação' de longo
percurso rumo à iniciação. Por uma questão de espaço e conveniência ao texto, nosso libreto alegórico deverá se
concentrar nesses personagens, e, por licença poética, permitir-se a algumas
liberdades quanto ao texto original. Que se abram as cortinas!
Encenação da "Flauta" no Metropolitan Opera House, em NY |
EM CENÁRIO INSPIRADO NO EGITO ANTIGO, pleno de esfinges e símbolos, uma
virtuosística abertura musical de arcos saltitantes nos instrumentos de cordas, antevê uma famosa ária - que é uma parte cantada por solista ou solistas de uma ópera. A Abertura instrumental seduz o público à primeira vista. Dando início
ao ‘primo turno’, os arautos de Sarastro (Luigi Naccio), o grande rei do sol,
articulam para que Pamina (Marín) seja arrastada para longe do poder da poderosa Rainha da Noite (Vilma), cujo canto chega a ser mais agudo do que o
mais agudo dos pássaros, com volteios virtuosísticos, além de ser dona de um visual
agressivo condizente com seu papel. A Rainha (Vilma) dá ordens para que deixem
Pamina (Marín) embaixo de seus braços para reinar absoluta. Um dos pontos altos da
ópera é a absolutamente incrível ária da Rainha: ‘A vingança do Inferno ferve
em meu coração’ (Der Hölle Rache kocht in meinem Herzen: veja e ouça abaixo
com a fabulosa soprano Diana Damrau no papel da Rainha da Noite, talvez sua melhor performance gravada da área, tanto pelo canto eletrizante quanto pelo seu dramático desempenho cênico).
Tamino e Pamina: "A divindade é a meta pela qual homem e mulher lutam" |
O DESTINO FAZ TAMINO (Édouard) APAIXONAR-SE POR PAMINA (Marín), e, buscando
serem iniciados nos caminhos ocultos do poder da sociedade, conforme os ritos
maçônicos de então, o par passa por provas e privações, que são vencidas uma a uma por
Tamino e sua flauta mágica e Pamina, com seus sininhos –
sempre seguidos à meia distância pelo caçador de pássaros Papageno (Eccio).
Figurino de Papageno, com a gaiola nas costas, conforme usado pelo próprio libretista Schikaneder na estreia |
PAPAGENO FALHA ao caçar um pássaro gigante, não consegue
dominá-lo e Tamino (Édouard) é arrastado e levado pela enorme ave para o desconhecido,
deixando vivo a Pamina (Marín) apenas seu espírito e a magia de sua flauta.
Pamina e Tamino (com a flauta): Kate Royal e Joseph Kaiser, em encenação no Royal Opera House, de Londres |
SOZINHA, PAMINA
(Marín) PROSSEGUE EM SEU DESAFIO, levando o espírito do amado Tamino (Édouard) e as
ideias gestadas durante o breve enlace do casal. Após inúmeras aventuras,
Papageno (Eccio), sem Tamino (Édouard) à sua frente, acaba tendo de deixar Pamina
(Marín) à sua própria sorte.
OFUSCADA POR UMA PODEROSÍSSIMA LUZ, a Rainha da Noite
esvai-se ao nada, juntamente com seu séquito. Pamina (Marín) chega então ao
final da longa trilha, sendo admitida na ‘Ordem’. O coro, em júbilo, entoa em
êxtase “Vocês atravessaram a noite”, concluindo a magnífica cena.
O cenário desta alegoria sobre A Flauta Mágica |
COMO EM TODA OBRA DE ARTE, desde alguns conceitos
mais antigos, e outros mais recentes como em Machado de Assis (“Capitu”) ou
Pirandello (“Assim é se lhe parece”), nossa alegoria política sobre esta obra-prima
de Mozart, que aqui se encerra, deixa à conclusão do leitor a interpretação do final da grande obra.
Trata-se apenas de um retrato do previsível, e variações sobre esse retrato são possíveis, mas já são muito poucas, já que os desfechos
antes previsíveis são agora razoavelmente prováveis. Nossos anseios reais, sejam quais forem, estarão
sempre submetidos aos fatos, e não às fantasias do inconsciente coletivo, aos discursos inflamados ou à sedução das palavras, paixões e bandeiras. Por isso o gran finale desta alegoria, como
defendia Umberto Eco (in Opera Aperta, de 1962), ainda será, por ora, uma 'obra aberta'. Quem viver verá.
Nenhum comentário:
Postar um comentário