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quinta-feira, 4 de setembro de 2014

ANGELICA DE LA RIVA, O CANTO QUE ENCANTOU TATUÍ


SE HOUVESSE UMA RECEITA para se criar uma grande cantora lírica, em primeiro lugar estaria a beleza do timbre de voz, a projeção, a clareza na pronúncia em diversos idiomas e uma versátil extensão vocal, sem exageros que possam comprometer um conjunto musical admirável. Em segundo, a presença no palco, quase-sinônimo de carisma: cada movimento, cada gesto e movimento que, por menores ou suaves que sejam, emolduram, nos mínimos detalhes, o quadro da cena musical. Isso já bastaria para uma grande cantora.

Frontispício da redução
para canto e piano de Othello, de Verdi
NO CASO DESTE ARTIGO, falo de uma soprano spinto, expressão que em italiano se refere a uma voz lírica de contornos dramáticos como quer o papel de Desdêmona da ópera ‘Otelo’, de Verdi, por exemplo. Contudo, a quem vou me referir neste artigo, há ainda um brilho, uma beleza ímpar, um olhar, um corpo esguio e alto em um vestido de corte perfeito e cabelos cuidadosamente arrumados que ora remetem a uma modelo, ora trazem um quê de gueixa.

Foto (crédito obrigatório): Kazu Watanabe
ANGELICA DE LA RIVA tem tudo isso e um pouco mais. Nascida no Brasil de pai cubano e mãe mineira, é uma verdadeira diva - título empregado apenas para as estrelas do canto com grandes predicados (Diva, na mitologia grega, significava deusa ou divindade). De seu pai, cantor de horas vagas, parece ter recebido a inspiração para sua arte. Ela deve sua formação completa à natação, polo, remo, teatro e dança, além de três anos de curso de direito, até se lançar de vez a uma carreira internacional (que já é bastante sólida) nesses últimos 15 anos, altos voos para uma jovem cantora. Completam a personalidade de ‘la Riva’ a pessoa culta e extremamente bem informada em diversas áreas, inclusive na política brasileira, e o de sua adoção há 15 anos, os Estados Unidos, assim como a política internacional, assuntos entre os quais trafega com igual desenvoltura. 


Elen Ramos
NO JANTAR APÓS O RECITAL, Angelica me pediu, com a simplicidade que lhe é peculiar, que comentasse sobre o que considerei o ponto alto e o ponto mais baixo da apresentação, o que prometi fazer neste espaço. Começo, claro, pelo ponto mais alto da performance. Com pouco espaço, prefiro pegar um ‘cavalo de batalha’ das sopranos como exemplo, pois deve-se sempre executar as peças chamadas ‘de confronto’, que dão margem a comparações – o que não farei aqui entre ela em termos relativos com uma ou outra artista, mas de maneira absoluta, sua única pessoa. Trata-se da Bachianas Brasileiras nº 5, para soprano e orquestra de violoncelos, em arranjo executado magistralmente por nossa pianista Miriam Braga e os competentíssimos Elen Ramos e Tulio Pires nos violoncelos.
Tulio Pires

 

Foto (crédito obrigatório): Kazu Watanabe
UMA PERFORMANCE EXEMPLAR  de uma peça que está no repertório de 10 entre 10 sopranos é um desafio, pois cada uma deve demonstrar qualidades diferenciais. A voz clara, limpa, audível em todo o auditório sem vislumbre de esforço já é um bom começo. Na obra, Angelica não se dobrou ao rigor rítmico imposto pelos compassos ‘quebrados’ ponteados pelos violoncelos à maneira de violões que marcam a escrita de Villa-Lobos na obra – rigidez do canto que é vício de muitas interpretações corriqueiras.

Página autográfica da 'Cantilena', em 1938,
versão para violão e voz
A CANTORA tomou suas liberdades interpretativas mesmo sobre o texto musical da ‘Cantilena’ – o qual pode induzir alguma cantora mais insegura a uma certa rigidez rítmica. Angelica, ao contrário, demonstrou um domínio ímpar da partitura, conjugado a um entrosamento perfeito com o piano maleável e os ouvidos sensíveis de Miriam Braga. (Após apenas três dias de poucos ensaios, talvez alguém pudesse pensar que o duo se apresenta junto há muito tempo). A cantora imprimiu beleza musical à repetição do tema inicial a boca chiusa – literalmente, boca fechada -, sem usar de artifícios para camuflar a dificuldade da técnica exatamente como pedida pelo compositor, usando exclusivamente a face e a projeção do som nasal com habilidade incomum. Por fim, encurto minha opinião, o lá agudo final do movimento, ainda  boca chiusa,  ainda sob o pleno domínio técnico e musical de Angelica.
Foto (crédito obrigatório): Kazu Watanabe
OUVIMOS Massenet, Richard Strauss, Carlos Gomes (uma pérola, veja e ouça vídeo abaixo), Gounod, Torroba e Lehar, impecáveis. Agora, peço licença para um breve intervalo no texto para uma surpresa do evento: convidado, sobe ao palco o comendador Colomo do Couto, presidente da SBACE (Sociedade Brasileira de Artes, Ciência e Educação) para a outorga pública da medalha de mérito e certificado Carlos Gomes, que Angelica agradeceu com sua cativante simplicidade. Premiou-se a alta qualidade artística e a divulgação que ela tem feito da música ibero-latino americana pelos quatro cantos do mundo, em salas como os prestigiosos Carnegie e Avery Fisher Hall, de NY, e em sete países diferentes em que atuará nos meses finais do ano, tal fosse uma embaixadora da música brasileira.

Miriam Braga e Angelica de la Riva
Foto (crédito obrigatório): Kazu Watanabe
PARA CONCLUIR, cumpre-me citar - infelizmente, mas conforme prometi, aqui vai  - o ponto mais baixo da apresentação. Após receber um arranjo de rosas vermelho colômbia na exata tonalidade de seu elegante vestido, uma vez encerrada a apresentação, e como retribuição pelo trabalho conjunto com Miriam Braga, Angelica oferece à colega pianista uma das flores, preciosamente escolhida. Ao sair do palco, ramalhete consigo, deixou uma plateia de pé e alguns dos presentes visivelmente emocionados. Aguardamos agora o ritornello, a repetição, no jargão musical: Angelica prometeu vários retornos a Tatuí, quando sua agenda a permitir. Os 60 anos do Conservatório de Tatuí foram coroados com uma performance de extraordinária magnitude.

Foto (crédito obrigatório): Kazu Watanabe

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