Coronel Juquinha, à direita |
Minha mãe não escondia sua
aversão ao assunto. Nas vezes em que puxei conversa, ficou brava e mal
continha a emoção. Há uns anos, já bem doente, mas ainda lúcida, reagiu a uma
foto de meu avô, seu pai, que encontrei dentro de um livro. Todo garboso em sua
farda, perfilado a alguns companheiros.
Maria Lúcia, minha mãe, um ano de idade |
Minha mãe fez para si mesma
uma pergunta, sem esperar resposta, “por que será que ele foi se meter nisso,
perder anos de sua vida? Por causa de um ideal?” Quando Vovô Juquinha foi preso
e exilado, minha mãe tinha algo como três anos de idade - e vieram outros em sua
vida, duros tempos de criança em que se viu afastada do pai, vendo sua mãe,
Lilia, a cuidar dos cinco filhos sozinha, com escasso dinheiro.
Getúlio Vargas |
O ódio a Getúlio,
eufemisticamente chamado “o pai dos pobres”, talvez a ajudasse a destilar o que
chamava 'obsessão' de meu avô, pensando como viria a dizer o Geraldo Vandré,
“morrer pela Pátria e viver sem razão”. Juquinha, aliás, José Carlos Campos
Cristo, era um legalista, defensor das instituições, moldado no caldeirão de
ideais que ferviam em seu sangue desde cedo (filho que era do Cel. Vieira
Christo, meu bisavô, também perseguido pela ditadura Vargas e legalista desde
sempre). Minha mãe, Maria Lucia, contava que Getúlio, com seu ranço populista,
mandava preparar crianças e adolescentes de escolas públicas para que fossem saudá-lo
em desfile. Imagine seu ódio ao ver aquilo, a meninada bajulando o homem que lhe
tirara o pai, um golpista com máscara de líder popular que bebera do veneno de Mussolini.
De meu avô, lembro-me
de suas estórias (friso: com “e”) de aventuras, fugas, prisões, exílio. Em uma
cadeira de balanço, ao lado de um rádio de ondas curtas, desfilava tramas com
jeito de contador de histórias, aquela voz suave e monocórdica que, hoje, as crianças
imaginariam ser memórias de um Indiana Jones.
O jovem Mark Twain |
Era como filmes que se desenrolavam à minha frente,
cabia como luva uma frase de Mark Twain: “Quando pequeno, lembrava-me de tudo: do que realmente aconteceu e do
que nunca acontecera. Porém, minha capacidade está decaindo, e logo vou
lembrar-me apenas do que nunca acontecera”. Assim era com minhas “viagens” pelo
mundo das aventuras de vovô Juquinha, naquela época já um coronel reformado. Em
tempo: o título deste artigo tomei emprestado do escritor Manuel Antonio de
Almeida (1831-1861), autor de “Memórias de um sargento de milícias”. Nada com o
texto, pura licença de escrita, vício recorrente meu.
(Acervo pessoal do autor: Lloyd brasileiro) |
Meu tio José Carlos Campos Christo, cirurgião
renomado e filho de Juquinha, nascera após o retorno de meu avô do exílio, e foi
quem teve o esmero de recentemente compilar documentos, fotos, publicação que
me enviou há uns poucos dias, a colocar meus devaneios infantis e meu Indiana
Jones particular mais com os pés no chão. Com precisão cirúrgica, meticuloso,
estabeleceu ordem cronológica aos fatos e documentos, datou-os e nos fez um
depoimento tão encantador quanto assustador, brasileiros vítimas de tantas
ditaduras que somos. É sempre fiel às fontes, sem deixar de ser uma leitura
fácil e sedutora. Publicou-o em forma de livro em edição reservada, que levou o
título “Reminiscências de um exilado de 1932”, sobre o qual passo a refletir, em
entreato da minha emoção e a de minha mãe.
Documento de exilado da Polícia de Portugal |
O envolvimento de meu avô com a política
começou cedo, jovem militar deslocado para o Rio, capital da República, para
trabalhar no gabinete do Setembrino de Carvalho, Ministro da Guerra. (Na defesa
da legalidade, após a revolução de 32 terminou deportado e exilado em Portugal
aos 31 anos, ainda bem jovem, sofrendo a humilhação de se ver expulso de seu
país). Em 1924, quando da “revolta paulista”, lá estava Juquinha no Rio, aos 22
anos de idade, a trocar informações sobre os deslocamentos das tropas
legalistas fieis ao presidente Arthur Bernardes e ao presidente do estado de
São Paulo, Dr. Carlos de Campos, que sofrera um ataque dos revoltosos no
Palácio dos Campos Elísios, na capital paulista, e ergueu seu gabinete de crise
na estação (então da EFCB) de Vila Matilde, cercado pelas tropas legalistas
federais, que o defendiam.
Carlos de Campos |
Carlos de Campos, homem de fibra, era também
um exímio músico. Compôs até algumas óperas, e foi o responsável pelo projeto,
em 1925, de uma estação da Sorocabana, que depois se chamaria Júlio Prestes, no
bairro da Luz, centro – hoje a suntuosa Sala São Paulo, templo da música no
país. Quis o destino que eu, neto do Juquinha que ajudara a defender Campos,
fosse, décadas depois, empossado como diretor do Conservatório de Tatuí, aliás
CDMCC, oficializado em 1954: Conservatório Dramático e Musical Dr. Carlos de
Campos. Coisas que o destino faz e ninguém explica.
Claro que entendia o trauma de minha mãe pela
lembrança dos tempos difíceis por que passou, mas o lado heroico do meu avô é emoção
pura. Em sua dedicatória, personalista, meu tio José Carlos, organizador das
“Reminiscências”, o chama carinhosamente "meu herói". Talvez porque o
lado mito de Juquinha lhe tenha sobrevivido com o tempo, cicatrizado o sofrimento
dos idos passados. Sobressai-lhe a figura do pai-herói (e meu avô-herói).
Antes tivéssemos muitos como ele, os tempos seriam outros. Ficamos entre a
emoção e a razão, eu e minha mãe com a primeira, em pontas opostas, e tio José
Carlos, mais empenhado na verdade documental. Tudo se unindo como em Dante, na
Divina Comédia: m’apparecchiava para
sostener la guerra, sì del camino, sì dela pietate (camino simbolizando o chão, a razão, e pietate, o coração).