Direito
não é o meu ramo, mas procuro entender um pouco para aqui viver (“o Brasil não
é para principiantes”, dizia Tom Jobim). Há o ‘politicamente correto’, no dia a
dia, mas não sei o porquê desse ‘adocicar’ tudo. Vejamos o latrocínio. Código
Penal, Art. 157, § 3º: “Se da violência resulta morte, a reclusão é de 20 a 30 anos,
sem direito da multa”. Ora, se não tenho o douto saber, uso a lógica para questionar
a redação: ‘morte morrida ou morte matada’, como se diz no popular? Se a morte é
‘matada’ tem de haver dolo, intenção de matar a vítima, e aí se configura o
latrocínio. Se ela é um idoso cardíaco que enfarta no ato do roubo, o
assaltante está quase lindo, leve e... logo solto, pois houve ‘apenas’ um assalto.
O Código de 1940 |
Dizem
que latrocínio é ‘roubo seguido de morte’: o criminoso roubou a vítima, e depois
a matou. Daí a dialética impõe a inversão da ordem - e se houve morte seguida
de roubo? Não é latrocínio? Aparentemente não. Mas é. O que parece uma simples omissão
vem explicado mais abaixo no mesmo artigo. A depender do citado § 3º, não, mas,
ora, pois é sim. Uma primeira variável: se o bandido armado, com o produto do roubo
na mão, desiste ou não logra matar, isso configura o quê? Claro, um roubo
simples, na falta do ‘crime de morte’. A segunda variável: o assassino, no afã
de despistar sua autoria, leva objetos de valor da vítima assassinada, cena de um
roubo aparente para esconder uma vendeta - vingança por desavença ou motivo
passional.
Resumindo,
o latrocínio não integra as estatísticas de homicídios porque houve roubo! Simples
assim. Ora, diz o bom português que tirar a vida de alguém é homicídio e ponto.
A estatística serve para uma conclusão ‘politicamente correta’, e está aí a
língua portuguesa que não me deixa mentir. Por que não é robbery with homicide (‘roubo com homicídio’), como nos EUA? Aqui seria
o Art. 157 combinado com o caput do 121 e suas agravantes, ponto.
Em
Goiás (ver imagem ao lado), o aumento do número de latrocínios foi da ordem de
18,5%, enquanto o de homicídios dolosos 3,6%. Em bom português, s.m.j. (salvo
melhor juízo), o aumento no número de homicídios foi de 22,1%. Já no Estadão de
sábado, dia 18/08/17, há estatísticas referentes a São Paulo em matéria do
caderno ‘Metrópole’ – “Latrocínio atinge maior patamar em 14 anos”: São Paulo
teve 237 casos de ‘roubo seguido de morte’ até julho deste ano. Logo ao lado,
lê-se: “Já homicídio tem em julho menor taxa desde 2001”, ou seja, a balança
desequilibra bruscamente para o roubo nos homicídios. Uma autoridade nacional
chegou a afirmar que “o latrocínio é o roubo mal sucedido”!
Heitor dos Prazeres |
‘Politicamente
incorretos’, um negro, Heitor dos Prazeres, compôs e uma negra, Zaíra de
Oliveira, gravou Meu Pretinho (de 1931, disponível no blog do amigo Luís
Antonio de Almeida, em www.mis.rj.gov.br/blog/meupretinho/). Que tal Preta, Pretinha,
dos Novos Baianos, o mesmo jeito dengoso de chamar um amor? Hoje seriam devidamente
‘limados’ pela patrulha? E por que nos EUA, com histórico de escravidão como aqui,
diz-se Black Music, Black Power? O negro lá só tem horror de ser chamado nigger, que o associa à Nigéria dos escravos do passado - “A mulher é o nigger do mundo”, compôs Lennon. Por isso, eles preferem ser blacks (cena em
NY: “Como prefere o seu café, senhor? Black, pedi, para evitar aquele aguado “chafé”.
A garçonete abriu um lindo sorriso e esfregou o indicador no outro braço: “assim
como eu?” Eu disse: “yeeeessss”. Feliz, trouxe-me o café, que simpatia!).
Luís Antônio Marcondes: nome artístico "Neguihno da Beija-Flor" |
Ataulfo
Alves lançou em 1956 um samba corrido, Mulata Assanhada: “Ó mulata assanhada /
que passa com graça fazendo pirraça / (...) tirando o sossego da gente”. Na
esteira, veio “É luxo só”, de Ari Barroso e Luís Peixoto, outra ode à mulata:
“Olha, esta mulata quando dança / é luxo só”. Foi a glória. A palavra também existe
em outras línguas, como inglês (mulatto)
e francês (mûlatre).
Recentemente,
o escritor tatuiano Ivan Camargo lançou o livro Golpe Baixo (SP: Ed. Kazuá,
2017), cuja contracapa resume direto o assunto: “soma uma série de ‘histórias
quase apolíticas e nada corretas’, todas buscando, com bom-humor, questionar e
satirizar o ‘coitadismo’”. No capítulo que dá título ao livro, uma pérola como “pena
que vão cortar só metade de uma perna”, disse o idoso sobre um jovem companheiro
de quarto que dormia,“tava torcendo para que arrancassem o pingolim dele até a
raiz”. “Odilo! – interveio a esposa, acentuando não ser nada produtivo à
educação do menino aquele linguajar de calão chulo”. Odilo garantiu que os
atuais pré-adolescentes sabem mais palavrões do que ele próprio aprendera
durante toda a vida.
Semelhante
é a questão do linguajar do funk brasileiro, hoje alvo de uma proposta no
Senado que tenta proibir o gênero, tendo como um dos muitos motivos o teor pornográfico
das letras. Ora, elas refletem o que os jovens ouvem e falam nas periferias, mas
ferem os ouvidos dos que se acham mais puros. Outra: acaso trocar deficiente por
‘portador de necessidades especiais’ atenuou perdas físicas? Dizer
afrodescendente ajudou a acabar com o racismo? Não, se não for o contrário. Lembrando
o “coitadismo” de que fala Camargo em seu Golpe Baixo, eu acho que certamente aumentou
a segregação. Da mesma forma que suavizar as estatísticas dos homicídios varrendo
a maior parte deles para sob o tapete do latrocínio não salvou uma única vida.