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sábado, 21 de outubro de 2017

O PODER DA MÚSICA - PARTE II

Leverkhün
Os misteriosos feitiços da Música, se por um lado pareciam magia e atraíam as mulheres, na outra ponta provocavam a cobiça dos outros homens. Mas tem seu reverso. O virtuosismo musical sempre foi uma grande ambição, mesmo que enrustida, de qualquer artista, desde o mais medíocre. Um romance de Thomas Mann, Doktor Faustus, penetra fundo na enorme ambição do homem de transcender seus próprios conhecimentos mortais e poderes: um músico (Leverkhün), personagem principal, entrega a alma ao diabo, esperando do acerto extrair virtuosidade excepcional, história que vem de lenda do século XV e já foi narrada também por Goethe.
Tartini e seu sonho
O grande violinista do século 18 G. Tartini escreveu uma obra virtuosística para seu instrumento: O Trilo do Diabo. Prolixa em recursos pirotécnicos, a obra extrai um grande arsenal de efeitos possíveis de serem realizados sobre as quatro cordas de um violino. Pois foi durante um sonho, segundo relatou o próprio Tartini, que o diabo em pessoa lhe apareceu, e passou a executar para ele uma estranha peça. Quando acordou, o composi­tor simplesmente pôs-se a registrar em partitura o que ouvira. Talvez impres­sionado com o pesadelo e evitando futuros contatos com o capeta em pessoa (sabe-se lá se o demo exigiu algo em troca), Tartini dedicou-se a requerer de seus alunos escalas muito lentas - ao contrário do que exige seu louco Trilo do Diabo. Talvez, assim, mantivesse seus meninos nos braços dos anjos, com certeza muito melhor companhia do que seu macabro visitante noturno.
O diabo de Torcello, Veneza. No colo, Judas
Que diabo, digo, que tanto o capeta vem se infiltrar nos assuntos da Música? Do grego Diabolo, o latim diabolôs, entre vários significados, é aquele que separa, divide. Portanto não é nada doce o músico dizer "estou com o maestro atravessado por aqui", com gesto de corte na garganta. Em hebraico, mais próximo das religiões ocidentais e algo mais próprio às negociações fortuitas com o baixo além, satan é inimigo - o que significa, aviso aos ambiciosos, que vender a alma ao demo é entregá-la ao adverso – o que exige os devidos cuidados.
Propriedades mágicas a mais universal das artes parece ter: experimentos com galinhas poedeiras, nos EUA, constataram que a produção de ovos aumenta quando o dono da gran­ja irradia algum Mozart nos alto-falantes distribuídos entre as incubadoras das penosas. Cientistas aus­tralianos comprovaram, há alguns anos, que o hábito da escuta musical melhora o raciocínio matemático das crianças com melodias simples e lógicas, ressaltando que são formas com as quais os infantes se relacionam melhor.
Smashing Pumpkinns
À música de Mozart é reputada certa capacidade de desobstrução de alguns condutores mentais ocultos: testes de QI realizados em adolescentes que ouviram as obras do compositor antes de uma bateria de exames psicológicos constataram resultados melhores do que os daqueles que não ouviram nada. Ou que, provavelmente, passaram o dia anterior fazendo omelete de seus neurônios ao som de algum indigesto “pancadão”. Mas essa barulheira não ataca apenas neurônios: um professor de Música da Universidade de Princeton, Peter Jeffrey, processou o grupo de rock Smashing Pumpkins por perdas e danos ocorridos durante um show em 1997, vítima de lesões irreversíveis em seus ouvidos, a Perda Auditiva por Indução de Ruído (PAIR). Abriu também uma outra ação judicial contra a Siebe North, empresa que fabricou os filtros auriculares que comprara na entrada do auditório para se proteger dos excessivos decibéis do grupo.
Os pesquisadores Vincent e Thompson coletaram estatísticas que comprovam a influência da música sobre a pressão arterial. Como exemplo, a revista da American Medical Association publicou há uns anos uma pesquisa que conclui que médicos que ouvem música durante inter­venções cirúrgicas mantêm pressão sanguínea e pul­sação em nível mais baixo do que os que não ouvem nada durante as estafantes horas de trabalho con­centrado e angustiante. Segundo o estudo, 92% dos cirurgiões mais calmos eram ouvintes contumazes dos melhores autores da música clássica. 
Outra experiência, realizada durante uma corrida de bici­cletas em Nova Iorque, revelou que a frequência acelerada dos bati­mentos cardíacos dos ciclistas em geral baixava quando eles passavam por uma orquestra estrategicamente colocada em um local – onde, curiosamente, a velocidade média dos competidores chegava a subir 10%. Uma clínica psiquiátrica de Richmond, EUA, obteve significativo sucesso em experiências musicais com ex-combatentes traumatizados, e o francês Vergnés chegou a afirmar que as ondas sonoras podem alterar a movimentação de substâncias no interior das células, abrindo caminho para uma avenida de novas teorias e especulações.

Marilyn Manson
Contra tudo e contra todos, Dr. Wolf Adler, um louco de pedra da Universidade de Columbia, também nos EUA, tentou a todo custo contradizer o mundo inteiro, argumentando que até a melhor das melodias força o sistema nervoso, sendo prejudicial ao organismo. Razão pela qual pediu a um senador dos EUA que elaborasse projeto de lei proibindo concertos públicos, ao ar livre, requerimento devidamente engavetado. Engrossaram o coro dos que concordam com os alegados malefícios da música aqueles que a ela atribuem o massacre de vinte e cinco estu­dantes de uma escola secundária de Littleton, EUA, em 1999, em show dos bizarros Marilyn Manson e Rammstein. Mas quem levou o crédito pelo desastre não foi a música, e sim a loucura ensandecida do grupo e o volume ensurdecedor. (Continua na próxima semana). 

sábado, 14 de outubro de 2017

O PODER DA MÚSICA - Parte I

Paus de chuva
Desde o início dos tempos, a Música tem assumido papel de destaque em nossa civilização. Desde aquele troglodita que, sobressaindo-se na arte de se comunicar com pessoas, coisas e deuses por meio de gritos, ruídos e batidas no peito, logo foi designado pelo chefe para animar a tribo, declarar guerra, comunicar-se à distância, expulsar demônios e mesmo mudar o tempo - até hoje, entre nossos indígenas, existe um longo chocalho de nome pau de chuva. Fora a tradição que sobrevive em nossos dias: encomendar o corpo dos defuntos.
Serra do Montejunto
O Instituto Português do Patrimônio Histórico e Antropológico (IPPFIA) divulgou resultados de escavações feitas no final de 1994 na Serra do Montejunto, próximo a Lisboa. Entre adereços, objetos e ossadas de mais de cem trogloditas, foi encontrado um fêmur de veado com uma escala de quatro orifícios. É mais do que comprovada a existência de instrumentos musicais rudimentares entre os homens pré-históricos, que como se vê não buscavam apenas a própria sobrevivência. (Divertida é a anedota sobre o ancestral encontrado por supostos arqueólogos lusitanos, em algum sítio pré-histórico. Um esqueleto descoberto dentro de uma espessa parede de construção milenar trazia uma placa no peito: "Guinness Livro dos Recordes - campeão mundial de esconde-esconde").
Entre os sumérios, os músicos tinham atribuições funerárias, talvez razão pela qual nas gravuras aparecem com os semblantes tristes. Dez sécu­los antes de Cristo, David acalmava Saul com sua lira e mantinha um coral de centenas de vozes para seus salmos, além de orquestras que contavam com até dezenas de trombetas, e nomeava sacerdotes milhares de cantores e centenas de mestres. Os assírios, setecentos anos antes de Cristo, já conheciam a kithara, instrumento de cordas com jeito de lira.
Kithara

Antiga Flauta de Pã
Os gregos - fora as contribuições do matemático Pitágoras, que organizou boa parte do sistema em que baseia a música ocidental - já sabiam que o deus Apoio, além de ideal de beleza, era protetor da Música. E que Pã tocava uma flauta de sons misteriosos com a qual iria conquistar o amor da ninfa Syrinx. No início do século 20, o compositor Claude Debussy criou belíssima obra que leva o nome da ninfa, talvez a peça mais famosa das escritas para a flauta transversal solo.
Caronte em seu barco: a fuga do Inferno
Com sua lira, Orfeu narcotizou Caronte, para que o conduzisse em seu barco ao inferno, de onde resgataria sua amada Eurídice. A Odisséia e a Ilíada de Homero eram can­tadas, sendo que na primeira delas Ulisses foi seduzido pelo canto das sereias, vozes sedutores que quase o levaram ao naufrágio. Entre os romanos, a Música também tinha papel de destaque. Exércitos usavam fanfarras para animar seus desfiles. E Nero, que era o vencedor hors-­concours de suas maratonas de canto, dedilhava uma Lira enquanto via Roma pegar fogo.
Barbarella (Jane Fonda) e a tortura de Duran
Mais recente, Jules Verne já fazia seu Capitão Nemo, como fosse um Nero moderno, inebriar-se entre prelúdios e fugas no órgão de tubos de seu submarino, preparando-se para a grande explosão. O vilão intergaláctico Duran delirava com o som hipnotizante de seu órgão de tubos em cujo interior havia um mecanismo erótico, no qual prendera a estonteante heroína espacial Barbarella, utilizando o instrumento como máquina de prazer e tortura - iniciando com afagos prazerosos em ritmos suaves, para afinal punir sua prisioneira com um fortíssimo, para conduzi-la à morte. Por prazer.
Curioso é que em 1475, em Florença, governantes já faziam uso político da arte musical. Músicos municipais eram obrigados a tocar para o povo de uma sacada da Prefeitura todos os sábados à noite em loas ao governo, louvando-o por ter ministra­do justiça. Pois um quarto de século antes de Pedro Álvares Cabral aportar, bem antes de Getúlio Vargas e do rádio, aqui já havia sido inventada uma versão florentina da Voz do Brasil ou da Semana do Presidente!
Encantador de serpente
Nas ruas de Nova Delhi, na Índia, cobras venenosas  domesticadas dançam sinuosas ao som de flautistas de turbante. E quem não se lembra de ter lido, na infância, a fábula do século XV O Flautista de Hamelin, que conduziu os ratos da cidade para longe, atraídos pelo seu sopro mágico, até se afogarem em um rio? Sapos são exímios cantores. O canto do acasalamento desse anuros é feito com a boca fechada, boca chiusa, como pediu Villa-­Lobos na Bachianas 5, para soprano e violoncelos. Os machos cantam para atrair as fêmeas, e emitem um som grave de sua barriga para evitar outros machos que por engano possam abraçá-los por trás. Já a canção do medo é executada com a boca bem aberta, e o som que usam para demarcar seu espaço é percussivo, usado para bem delimitar seu território.

Il Libro del Cartegiano
No século 15 Jean Tinctoris afirmava que a Música servia para louvar a Deus, pôr o diabo a cor­rer, salvar os doentes e provocar paixões. Em 1528 Baldessar Castiglione, em II Libro del Cortegiano, assegurou: "não existe pronta cura e remédio para mentes fracas mais completo e valioso do que a Música, também útil para agradar as mulheres, cujos corações ternos e doces logo são penetrados pela melodia e alimentados com suavidade”. Não admira que antigamente, como hoje, elas tenham certa ‘queda’ por músicos, e tenham a arte deles como “o mais aprazível alimento do espírito". Eurípedes dizia que cantos mágicos podem fazer os doentes de amor voltarem a si. No século 18, Robert Burton afirmou que a Música é remédio para as mentes tristes e antídoto contra a melancolia. E há muito mais para contar, como veremos no próximo capítulo. 

sábado, 7 de outubro de 2017

AUTRAN DOURADO, ROMANCISTA . Pai, amigo e herói - Parte II

Com alguns favoritos à mão
(Termino o texto a partir de onde havia parado na Parte I) 

Eventuais falhas em meus livros seriam corrigidas se fosse possível, mas tudo foi escrito com cinzel sobre pedra. Voltando ao pai, aquele estado pós-livro não fazia bem ao velho Autran. Fases deprimidas, brechas na intensa volúpia literária, a doença de escriba que o fazia escrever cartas e artigos aos borbotões, produção impressionante para quem usava uma máquina. Pouco simpático ao computador, cada vez que começava a digitar tinha de ter rápidas aulas para reaprender - menos pela modernidade do que por certo ‘tremor essencial’ nas mãos, doença de quem escreve, explicava repetindo o médico. 
Lev Tolstoi
Perguntei-lhe se o tempo consumido por Lev Tolstoi para escrever Guerra e Paz não poderia ter-lhe rendido muito mais livros se na época houvesse computadores. Ele foi categórico, nunca! Guerra e Paz é o que é porque foi escrito a bico de pena! Entendi que era, em tempos modernos, o que ele fazia na velha máquina, e só não escrevia com caneta porque tinha uma péssima caligrafia, que herdei dele. Tinha de pensar antes de cada tecla, cada sílaba, cada palavra. Aqueles corretivos maravilhosos não existiam ou não se dera bem com eles, acho que preferia pensar a conta-gotas enquanto escrevia. Tolstoi fora meticuloso como um relojoeiro, o bico de pena molhado com parcimônia na tinta, letras desenhadas para o texto planejado a cada palavra.
Servidor público da Justiça, meu pai viu abater-lhe a maldita aposentadoria compulsória, que viria aos poucos arrefecer sua febre criativa. Com o passar dos anos foi ficando ainda mais introvertido. O caipira do sul de Minas ainda conservava aquele humor característico e frases lhe brotavam da cabeça, forma de se comunicar com o mundo exterior, a família e os já menos frequentes amigos. Sair da vida de trabalho cotidiano foi-lhe fechando o casulo, e ele parecia se conformar com aquele fado.
Cabana de Henry Thoreau  em Walden Pond: reconstituição
Continuou escrevendo, mas já havia bons anos que evitava noites de autógrafos, seja por necessidade de isolamento, timidez ou pela dificuldade de tornar seus garranchos dedicatórias legíveis.  Virou, assim, uma espécie de Henry Thoreau de Botafogo, fechado em sua cabana imaginária, um escritório cercado de livros por todos os lados, na falta da água de um lago como o do norte-americano. De seu refúgio, saía quase que apenas para comer ou dormir, o que só conseguia à custa de medicamentos. 
Cervantes entre seus livros, sonhos e insônia
Os médicos pareciam seus reféns, as consultas eram economicamente narradas por minha mãe, companheira de vida, braço direito e às vezes também esquerdo dele. Era ela quem o acompanhava aos consultórios e escondia trancados os comprimidos, dosando-os conforme a prescrição e não segundo a cabeça já tanto quanto confusa de meu pai. Nessa fase, passou a ser usual cochilar na cadeira de balanço com um livro na mão, cena que fazia par com a gravura pendurada na parede ao seu lado, em que se via Don Quixote entre muitos livros e Cervantes, esparramado sob o dístico “embebeu-se tanto na leitura que passava as noites em claro”. Era o retrato daquela fase paterna.
Vem-me agora à cabeça um episódio de passado bem distante, lembro-me com detalhes e conto para concluir esse breve depoimento. Entreguei ao meu pai um dia, na hora do almoço, alguns títulos de livros pedidos pelo colégio. Ao ver um deles, arregalou os olhos, limpou a boca com o guardanapo, e, sem dizer nada, abriu a porta e desceu. Soube depois que tinha ido ao meu colégio, e exigiu que retirassem aquela publicação, seu filho não iria ler aquilo e ponto final.
A Monte Santo de antigamente
Se eu o vi furioso raras vezes, uma delas foi nesse dia, e ensinou-me a evitar esses novos best-sellers de ocasião. Dizia que escrever porcaria para vender ele também sabia, bastava juntar suspense, traição, escrita de gibi e uma pitada de sacanagem. Mas recusava-se a fazer isso abrindo mão da sua literatura. Best-sellers no Brasil são reles 20 mil exemplares vendidos, se passar muito além comece a desconfiar, alertou-me. Literatura em nosso país é útil para poucos, infelizmente. Para mim, que fui criado em Monte Santo, está muito bom, falava.
Na vida, na escrita, na música, aprendi que temos de fazer o que muito bem definiu meu pai na sua carpintaria literária o crítico Humberto Werneck: um trabalho de formiguinha. Werneck publicou em jornal artigo sobre um saudável bate-boca de amigos entre o Autran Dourado e o Fernando Sabino. Meu pai sempre instigou Sabino a escrever algo de maior fôlego, completo, deveria esquecer um pouco as breves crônicas e partir para o que, em música, chamamos ‘grande forma’ - no caso da literatura, o romance. Sabino já havia feito sucesso com seu O Encontro Marcado (1956), mas, passaram-se mais de 20 anos e ele continuou amarrado às suas divertidas crônicas. Provocado, Sabino vaticinou que o romance havia morrido. O velho Autran saiu-se com essa, dando aquela risada de sempre: engraçado, o Fernando, desaprendeu a nadar e quer esvaziar a piscina!
Tanto já foi escrito sobre a obra de meu pai que eu não poderia entrar nessa seara já tão desbravada sem ser um especialista estudado no ramo. Por isso, preferi mostrar o escritor como o homem e pai Autran Dourado, com suas imperfeições e manias, seu jeito tão mineiro e caipira de ser e viver, sem desfrutar da fama que a soberba, a vaidade e a busca por exposição poderiam tê-lo proporcionado, se dado fosse à exposição pública e às colunas sociais. Autran Dourado foi apenas uma coisa a vida inteira: um escritor, e isso bastou para justifica-la como ideal. O resto foi amor, família e ganha-pão.