Nelson, por João Bosco |
Meu
último artigo terminou com algumas palavras sobre o Nelson Cavaquinho, mas
depois lembrei-me de outras histórias dele que não resisto a concluir antes
de ir adiante com outros sambistas. Nelson era um cidadão livre, amante da
vida, e como tal se preocupava muito com a morte. Certa vez, sonhou que
morreria às três da manhã. Preocupado, acordou de súbito, nervoso, suado, e
atrasou seu relógio em algumas horas.
Tereza Rachel à frente do seu Teatro |
Conheci
o Nelson na entrada do enorme prédio em Copacabana que abrigava os teatros
Teresa Raquel e o histórico Opinião. Enquanto eu me apresentava no primeiro, em
uma peça musical, Nelson fazia um show no segundo. Certa noite, enquanto os
músicos bebericavam em um bar interno, após os espetáculos, dei de cara com o
Nelson, já inteiramente bêbado, que me fitou e disse bem alto: “vozê deve zer
Zesus Gristo. É bra vozê gui eu rezo dodas as noites”, o que me fez rir muito.
Naquela época eu usava cabelos longos e barba, daí essa loucura do compositor.
Respondi-lhe não era Cristo, e que nós sim, seus admiradores, é que rezávamos
para ele (e tínhamos tantas razões...).
A
violeira mato-grossense Helena Meirelles, falecida em 2005, cerra junto às
fileiras da mais fuleira boemia. Autodidata, desbocada como ela só, foi
considerada em 1993 a revelação do ano pela revista americana Guitar Player,
uma espécie de “quem é quem” do violão e da guitarra no mundo. Nascida em uma
sexta-feira 13 de agosto, Helena cedo entregou-se à gandaia levada por um tio,
para desespero de seus pais. Passou a atuar em bordéis e bares Pantanal afora.
Com seus dois ex-maridos e vários companheiros teve nada menos do que onze
filhos, que se orgulhava de ter parido sozinha. Na farra, quando acabava a bebida
mais forte – aguardente ou qualquer coisa “sem espuma”, como dizia – Helena
tomava muita cerveja, mas como ‘bebida com espuma’ não a deixava alta, chegava
a misturá-la com qualquer coisa, até perfume. Helena dedicou-se exclusivamente
ao violão e à viola caipira, e depois de um salto mais ambicioso foi “empresária
do amor”, gerenciando bordéis e o baixo meretrício, atividade que no
Pantanal era privilégio da exploração masculina.
Moreira, malandro elegante |
Já um
consagrado malandro carioca, o ex-motorista de ambulância Moreira da Silva,
apelidado Kid Morengueira, falecido em 2.000 aos 98 anos, costumava andar aprumado,
elegante e de preferência com seu “liforme branco”, como diria Caimmy , chapéu
de palha e, complementando, sapatos brancos quando podia. Mas Kid era malandro
esperto: só tomava leite e não dormia tarde! E como era criativo: inventou um
breque (do inglês, break”, quebra,
freio) nas suas músicas para desfilar comentários ritmados cheios de humor e
gírias de malandros.
Moreira da Silva, em seu "liforme" |
Assim
fez naquele samba Olha o Padilha [ouça logo abaixo], em que ele conta que o temido delegado, para
pegar playboy vagabundo, enfiava um limão pela cintura da calça do suspeito, e
se a fruta não descesse pela barra, calça justa! Entra no camburão, playboy! Conta
o breque: “tu é salafra e acharcador / essa macaca a teu lado / é uma mina mais
forte / que o Banco do Brasil “/ (...) “e jogou uma melancia pela minha calça
(...)/ que engasgou no funil”. Continuando, disse o Padilha “raspe o cabelo
desta fera!” / (...) “Eu, hein? Se eu não me desguio a tempo / ele me raspa até
as axilas / o hômi é de morte!” Tudo declamado à maneira de um rap – deixando
claro, há bons raps, que não se pretende música, e sim o que diz sua origem, na
tradição hip-hop (graffiti, b-boying, MCing e DJing). RAP é Rythym And Poetry,
ritmo e poesia, e ponto. Foram tantos ’cantos falados’, na história, antes do rap,
dos trovadores medievais aos recitativos das Paixões de Bach, ao Sprechstimme (do alemão, lit., ‘voz
falada’), como no Pierrot Lunaire de
Schönberg.
Cemitério do Catumbi. Ao fundo, prédios e favela |
O
Escadinha (morto em 2004), que foi um grande traficante brasileiro, depois de preso surgiu
na voz de Jorge Bem, na letra de W Brasil, e bem às claras: “tira essa escada
daí / essa escada é pra ficar aqui fora”. O bandido, como não sabia cantar,
lançou uma gravação de espécie de rap. Mas Fernanda Abreu apenas não conseguiu
cantar o hino de seu time, o Vasco, vendeu como água suas músicas “da lata”, mas
não fazia rap. A declamação ritmada de Moreira da Silva era espontânea, e
aconteceu décadas antes disso. O sambista morava em um apartamento perto do
Cemitério do Catumbi, na Zona Norte do Rio, vizinho da dona Maria de Lourdes,
velha companheira de uma vida, cujo jazigo Silva visitava frequentemente.
Piratininga, barzinho da moda na Vila |
Pra não dizer que só falei de cariocas, a noite paulistana foi berço de incontáveis
acontecimentos e momentos inesquecíveis, alguns glamourosos. Basta lembrar que
na boate Telecoteco, no Bixiga, surgiram artistas como Simone, Benito di Paula,
Célia e muitos outros. Hoje, os barzinhos da Vila Madalena – o Greenwich
Village paulistano - já abrem espaço para outras linguagens da classe média
mais sofisticada. Não há como não curtir esse ‘charme discreto da burguesia’ –
parafraseando o título de um filme (1972) do genial cineasta Luís Buñuel.
A divina Dalva e Herivelto |
Finalizando,
existe coisa mais romântica do que a apaixonada declaração
de amor que Herivelto Martins, autor da célebre Praça Onze, fez para sua musa
Dalva de Oliveira, em uma boate do Bixiga, ao beber de joelhos champanhe no
sapatinho salto 6 dela? Esse contraste, esse quadro que alternei entre o Bixiga
de ontem e a Vila Madalena de hoje e agora acabo de retomar do passado, traduz
a riqueza de nossa MPB através dos tempos. Que, além, de rica, é multifacetada
e cheia de histórias e estórias.