A respeitabilíssima revista americana
Scientific American publicou há semanas a conclusão de uma abrangente pesquisa sobre
as eleições do dia 6 de novembro para o Congresso americano. Nela, a metralhadora
giratória da raiva também esteve presente: o estúpido massacre de judeus na
Sinagoga de Pittsburgh, onze mortos e seis feridos. Houve, pontua a revista,
influência indireta dos recorrentes estímulos ao ódio e às armas, o clima beligerante.
Como entender esse ódio? A sinagoga seria
um detestável massacre a mais. Por outro ângulo, o Irã, em 1980, por ordem
direta do então presidente Jimmy Carter, foi palco de uma tentativa mal-ajambrada
de resgatar 52 reféns na embaixada americana, a chamada Operação Garra da Águia,
cujo eventual sucesso serviria a Carter de bandeira em eleições semelhantes às
do dia 6/11. O helicóptero da USAF espatifou-se contra um avião com técnicos e
combustível, deixando oito mortos. Iranianos creditaram o malogro da operação
aos ‘Anjos de Alá’. Hoje, a pressão sobre o Irã segue cada vez mais forte, há
ameaças alucinadas de ataques de 5 mil soldados contra 5 mil civis, um para
cada homem.
[Pano de fundo: Vale lembrar o colega
Osvaldo Coggiola, historiador da USP com quem tive o prazer de dividir um
lançamento de livros, que faz sua ‘radiografia do conflito nas Bálcãs’, em
Imperialismo e Guerra na Iugoslávia (SP: Xamã, 1999). Ele deixa claro que todos
os grandes eventos bélicos, do início do século 20 aos dias recentes, têm como objetivo
encoberto o ouro negro, petróleo].
Corria o ano de 1980. Eu vivia em
Boston e morava perto da Northeastern University, que atraía estudantes do
Oriente Médio, e senti de perto os efeitos colaterais da grande trapalhada de
Jimmy Carter. Meus vizinhos iranianos eram falantes e corteses, um deles até consertou
uma peça no meu carro. À noite, ouvia os libaneses vizinhos entoando seus
cânticos religiosos plenos de melismas, comuns tanto entre muçulmanos quanto judeus.
Eu relaxava, embalado por aqueles vocalises em sinuosas orações.
Ruholah Khomeini |
Aquela paz foi quebrada pela estúpida
Garra da Águia. O ódio contra o país do louco radical Aiatolá Khomeini
espalhou-se como fogo no mato. À noite, como se os estudantes iranianos fossem
os culpados pelo erro de Carter, uma horda passou aos urros pelas ruas, fazendo
os vizinhos do Oriente Médio apagarem as luzes. Fuck you, iranians!, era o grito de ordem que visava a apavorar genericamente
os estudantes do Oriente Médio, já que os americanos não sabiam distinguir quem
era de um país de quem era de outro.
Retomemos, e que sobre o atual
presidente americano não caiba a sombra de qualquer ônus direto sobre o recente
ataque à sinagoga, maior assassinato coletivo de judeus da história dos EUA. Ladino,
ele aproveitou o tema ao avesso: enrubescido, as jugulares e o topete saltando,
esbraveja e ameaça, com o ódio que lhe é característico, contra quem quer que deseje
inimigo. E o Irã, de novo, está na alça de mira presidencial. O mandatário dos
EUA capitalizou um justo sentimento pátrio e do povo judeu de forma canhestra, olho
na campanha: ódio ao Irã. Seria crucial para ele a vitória no legislativo no dia
6 de novembro, pavimentando a disputa para a reeleição. Sem maioria no
Congresso, diz a tradição, é bem mais difícil um novo mandato. Eram 35% das
vagas dos 100 senadores e 100% das cadeiras dos 435 deputados. Essa contabilidade
pode parecer truncada, mas é natural para os americanos, e tem como objetivo evitar
mudanças abruptas na balança do poder e instabilidade para o país. Depois de
anos nos EUA, eu pessoalmente confesso, como aquele comediante da TV: ‘entendi,
mas não compreendi’.
[Sloan compôs um verdadeiro brado,
uma bandeira contra o ódio disseminado, uma canção de protesto para a juventude
na voz meio áspera e desafinada de Barry McGuire: “O mundo ocidental / está
explodindo / a violência irrompe / e a munição é carregada / Você tem idade
para matar / mas não para votar / você não acredita em guerra / ...mas o que é
esta pistola que você carrega? / Ah, você não vai acreditar, estamos todos na
véspera da destruição” (Trad. Livre do A.). Também falava do ódio na China
vermelha e em Selma, Alabama, epicentro da luta pelo direito dos negros ao voto,
conquistado e tornado emenda constitucional em 1965. A canção foi um alerta contra
o ódio, arma sem lei.
No dia 6/11, da chamada eleição midterm,
o presidente obteve esperada vitória de cadeiras no Senado, mas perdeu a maioria
da Câmara, que detém enormes poderes. Enquanto alardeia vitória que não houve, dizendo-a
acachapante, desde já pressente o futuro que lhe está reservado. O cenário vai mudar
e o tresloucado deixará de ser um déspota já desde o primeiro ou segundo embate
legislativo.
Niccolò Macchiavelli (1469-1527), em um
de seus ensinamentos ao príncipe, mostrou-lhe que ‘novos soberanos, em novos
domínios, devem armar seus súditos’. Isso, no sentido estrito. E há outro,
figurado: o ódio como arma. Cidadãos americanos, acha o presidente, devem ser bem
armados, como queria Macchiavelli. A disseminação do ódio cresce no ritmo do
arsenal de fuzis, em mistura incompatível com a paz. O objetivo é vencer - sejam
pessoas, uma guerra ou a reeleição.
Domínio, poder – seja em casa ou no
Oriente Médio! Só o tempo dirá o que o resultado do dia 6 de novembro
significará para a história americana e para o mundo. Mas o estímulo às armas, somado
ao ódio estimulado a raças que não a branca, povos e minorias, já terá deixado mais
tantas de suas dolorosas marcas.
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