Talvez a representação plástica mais impactante sobre o medo seja a
obra-prima O Grito (1893), do norueguês Edvard Munch. Seduzido pelas portas maravilhosas
que o simbolismo lhe abria de maneira bem pessoal, Munch também foi influenciado
pelos expressionistas alemães. Mas que mistério inominado teme a figura retratada
por Munch?
Para mim o quadro remete a figura concreta, uma fotografia: a da menina Kim Phuc, sem roupas e desesperada, tentando fugir do ataque de bombas
Napalm na guerra do Vietnã. Em O Grito, a boca escancarada, as mãos espalmadas
sobre faces e orelhas, um cenário de linhas sinuosas como fossem as ondas
sonoras do berro incontido. Para maior impacto, Munch pintou nuvens como
representação de sangue: dor.
Quem tem Medo de Virginia Woolf? (1962) é o título de uma peça do grande
teatrólogo americano Edward Albee. Aborda os conflitos de um homem e uma mulher
de meia-idade com seus convidados, um casal de jovens. O título é uma blague
com o nome da escritora Virginia Woolf (1882-1941) sobre Quem tem Medo do Lobo
Mau (‘Who’s afraid of the Big Bad Wolf?), de ‘Os três Porquinhos’, desenho
animado infantil de Walt Disney.
Clarice Lispector passeia com Freud e Kierkegaard (“a angústia é a
vertigem de liberdade”). Especialmente no filósofo dinamarquês, trava-se o
embate entre medo e liberdade, duas faces opostas ligadas à raiz de uma mesma origem.
Se Freud separou medo, susto e angústia, cada um com seus signos, Clarice os
uniu, tornando essa trindade coesa e apavorante, praticamente um sentimento uno
em sua obra, na qual passeiam a ‘condenação à liberdade’ de Sartre e Kafka, em
seu livre mas amargo mundo surreal interior.
Milton Nascimento, na brilhante Caçador de Mim (1981, nos estertores da
ditadura), falou sobre ignorar o medo: “Nada a temer senão o correr da luta /
nada a fazer senão esquecer o medo, medo / Abrir o peito à força numa procura /
fugir às armadilhas da mata escura...” É um desafio de peito aberto ao medo, o
enfrentar a luta como inevitável. Mas Jobim, como sempre, prefere seu lado dócil e enamorado:
“...teus olhos morenos / me metem mais medo / que um raio de sol”.
Jackson do Pandeiro curte à moda bem faceira a simplicidade e a pureza de
seu medo, o de perder um amor: “A ema gemeu (...) / será que é o nosso amor, ó
morena / que vai se acabar? / Você bem sabe que a ema quando canta traz no meio
de seu canto um bocado de azar / Eu tenho medo, morena / eu tenho medo / (...) desse
amor se acabar”.
O medo é como venda nos olhos e abismo
na estrada de um povo. Ele não pensa, só teme as consequências, meio caminho da
espiral da alucinação. Já o líder que mostra destemor é um chefe a ser
respeitado. Bom exemplo foi um certo discurso meio xoxo de JK a um público apático.
Meu pai, secretário de imprensa da Presidência e responsável por muitos textos palacianos,
achou por bem arriscar num pedaço de papel colocado no bolso do paletó de JK uma
frase de impacto, de inspiração bíblica e volta e meia lembrada: “Deus
poupou-me o sentimento do medo!” JK bradou-a com tamanha verve e convicção que o
público saiu da letargia e irrompeu em sorrisos e aplausos solidários. Havia medo:
houve ameaça de golpe logo na posse, malograda com a presença do Mal. Lott, as
fracassadas revoltas militares de Aragarças e Jacareanga. Havia razão de sobra
para o medo, que só viria a se impor como todo-poderoso sistema após 1964, alguns
anos depois.
Restos de armênios |
Existe medo maior do que aquele sentido
nos corredores da morte? O que vinha do odor dos campos de Auschwitz, Treblinka e Sobibór? Dos
armênios durante o genocídio pelos otomanos de 1,5 milhão de seus irmãos de
sangue? Ora, no Vietnã oficiais americanos faziam vista grossa para injeções de morfina (e mesmo heroína) nos
soldados, o ‘front’ se transformava em um espetáculo indolor, pleno de cores e
delírios. Já os inimigos foram mortos a seco, a dor perfurando as tripas e o
fundo d’alma.
O Brasil sempre foi pródigo em
períodos de medo: os massacres da colonização, a escravatura, as chibatadas e punições
sem lei, as matanças de índios, as crueldades contra os inconfidentes, o
esmagar com sangue nos olhos diversas revoltas populares. A mais longo termo,
as ditaduras, como as de Floriano, Getúlio e a de 1964. O medo era real até nos sonhos, como
aquele retratado por Chico: “Acorda, amor / eu tive um pesadelo agora / sonhei
que tinha gente lá fora / (...) Era a ‘dura’, numa muito escura viatura...”. O
medo do número crescente de prisões, torturas, medo de sair na rua, a angústia de
estar sem saber próximo do que se chamaria ‘síndrome do pânico’, assídua nos divãs de
psicanalistas e consultórios de psiquiatras de hoje, transtorno cada vez mais comum
entre os cidadãos: o fim da estrada é simplesmente o terrível medo de ter medo
(a literatura sobre a síndrome em todos os idiomas é vasta).
Impor o medo é estratégia tão antiga
quanto o próprio homem. Resume Macchiavelli, em O Príncipe (XIX.12): “O príncipe
que quer conservar seu domínio às vezes é instado a praticar o mal”. Seja pela
força bruta, aliada a outras ferramentas de molestamento físico e mental, seja
pelo cerceamento do cidadão, cada vez mais podado em sua opinião e arbítrio. Imagem
impiedosa é ficcionalmente estampada em Alphaville (1965, filme de Jean-Luc
Godard), um lugar onde sentimento e amor eram vetados. Há também 1984, de George Orwell, texto de 1949 que espelha o doloroso perigo do império
nazista, então já derrocado.
Disse Nelson Mandela: “Aprendi que
coragem não é ausência de medo, mas o triunfo sobre ele. O homem de bravura não
é o que não sente medo, mas o que o conquista”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário