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sábado, 25 de abril de 2020

TEMPOS DE “SOLIDÃO SOLITUDE”


Nesses tempos de isolamento, a população se envolve um pouco mais com a arte do que de costume (literatura, música, cinema). Ela é bom alimento para o espírito das pessoas sós, sejam isoladas em seus cantos, ou em dois, três, quatro. Esse afastamento das comunidades com que antes convivíamos - no trabalho, no lazer, amizades e família - impõe muitos sacrifícios. No aguardo da ultrapassagem da grande zona de perigo da pandemia, a solidão é parte do único remédio comprovado até agora: isolar-se.
Por outro lado, se a solidão leva a um melhor autoconhecimento, surge, talvez raramente, um lado psicótico ou absurdo, como o do austro-húngaro Franz Kafka, de Praga (hoje República Checa), autor de “O processo” e “A metamorfose”, em seu mundo interior extremamente confuso: “Eu não tenho quase nada em comum comigo mesmo, e devo permanecer quieto em um canto, feliz por poder respirar”.
Zygmunt Kubala
O amigo violoncelista Zygmunt Kubala, surpreendido pelo falecimento precoce de sua esposa Lina, também amiga e pianista, tinha um perfil cativante, introspectivo e absolutamente peculiar. Fomos parceiros e dividimos quartos em uma turnê por Minas - tocamos no Palácio das Artes e na Catedral de Mariana com um organista alemão e outros estrangeiros, entre os “nossos” e os importados.
Vésperas de um Natal. Eu estava no Rio com meus pais quando veio a notícia do falecimento da Lina, em São Paulo. Trasladaram-na e o funeral aconteceu no Rio; compareci. Acho que Ziggy (o apelido dele) ficou bem abalado, mas como bom polonês, com aquela carga pesada de sofrimentos passados de gerações, suportou bem o fardo. Em 2003, gravou um lindo CD, Solo, ma non abbandonato, com peças para violoncelo solo de Bach a Telemann, de Schumann a Max Reger, tudo com seu toque profundamente inspirado. Em 2007, faleceu de aneurisma na aorta sobre o palco, durante uma apresentação em uma igreja de Minas. Tocando, como era seu desejo manifesto para o dia que isso viesse a acontecer, solo, ma non abbandonato.

Em 1965, os irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle compuseram uma obra-prima: “Porque eu preciso aprender a ser só / poder dormir sem sentir teu amor / saber que foi só um sonho e passou”, com belas e discretas aliterações no último verso. Recebeu uma inteligente paródia de Gilberto Gil: “Eu preciso aprender a só ser”. Do nosso cancioneiro popular saiu “Marinheiro só”, que alterna cada verso com o refrão, entoado em coro, que dá título à música: Eu não sou daqui / (coro:) marinheiro só / eu não tenho amor / (coro) /eu sou da Bahia / (coro) / de São Salvador”.
Johnny Alf
Em 1966, Edu Lobo e Torquato Neto criaram  verdadeira ode à solidão sobre uma sequência de acordes impressionistas com o baixo descendente, tristeza de dar dó: “Adeus / vou pra não voltar / e onde quer que eu vá / sei que vou sozinho”, para no final chamar a amada, “nem que seja só / pra dizer adeus” (veja e ouça abaixo). Do mesmo ano é “Eu e a brisa”, de Johnny Alf, até hoje repertório garantido nos shows de todos os românticos do país: “Ah, se a juventude que essa brisa traz / ficasse aqui comigo mais um pouco / eu poderia esquecer a dor / de ser tão só / pra ser um sonho”.

Também em 1966, a dupla norte-americana Simon & Garfunkel fazia a contradita de “Nenhum homem é uma ilha”, do inglês John Donne (1572-1631), com I am a rock : “Eu construí muros/ uma fortaleza profunda e cruel / que ninguém poderá penetrar / Não preciso de amizades / amizades causam dor (...) / eu sou uma rocha / eu sou uma ilha”. Uma rude visão do bunker em cujo interior submergiu uma carcaça com que se protegeu o personagem, para devorar-se o próprio corpo, perdendo de vista as palavras de John Donne.
 “Açaí”, de Djavan, veio em 1982. O título, em Tupi-Guarani, quer dizer “fruto que chora”. “Solidão / de manhã / poeira tomando assento / rajada de vento / som de assombração”, música rica e lindíssima que foi sucesso com Gal Costa e encantou na voz do autor. Já “Eu só quero um xodó”, sucesso de Dominguinhos, Sivuca e Osvaldinho, tornou-se um hit também com Luiz Gonzaga: “Que falta eu tenho de um bem / que falta me faz um xodó / mas como eu não tenho ninguém / eu levo a vida assim tão só”.
De Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, “Cais” (1972), na voz possante do cantor, revela o poder que o espírito tem de construir usando  a argamassa da solidão: “Para quem quer se soltar / invento o cais / invento mais que a solidão me dá” / (...) invento o amor / e sei a vez de me lançar”.
Autran Dourado

Publica-do em 1972, “Solidão solitude” é um livro de meu pai, Autran Dourado, que reúne textos escritos durante a década de 1950, à parte do fio de sua obra. Buscando afinidades diversas entre contos, ele os agrupou em quatro blocos de três. As estórias passeiam por um idoso que amarga o passado ao vislumbrar o oceano; uma mulher que se afoga em angústias e chora desesperadamente todos os dias; a pedofilia e o homossexualismo encobertos pela bruma sacra dos corredores de um internato; e, claro, o medo da morte, o sofrimento. Esses são alguns dos pontos que unem os quatro grupos de três contos em torno de elos comuns sobre os quais paira a solidão, como uma nuvem escura. Segundo ele, a decadência do ser humano e a loucura são alguns padrões que nos norteiam. Os textos foram escritos e selecionados com critérios literários e outros absolutamente pessoais para a composição desse conjunto de doze contos, pensada à exaustão e comungando sentimentos e percepções comuns: solidão, solitude.



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