Nesses
tempos de isolamento, a população se envolve um pouco mais com a arte do que de
costume (literatura, música, cinema). Ela é bom alimento para o espírito das
pessoas sós, sejam isoladas em seus cantos, ou em dois, três, quatro. Esse
afastamento das comunidades com que antes convivíamos - no trabalho, no lazer, amizades
e família - impõe muitos sacrifícios. No aguardo da ultrapassagem da grande zona
de perigo da pandemia, a solidão é parte do único remédio comprovado até agora:
isolar-se.
Por
outro lado, se a solidão leva a um melhor autoconhecimento, surge, talvez raramente,
um lado psicótico ou absurdo, como o do austro-húngaro Franz Kafka, de Praga (hoje
República Checa), autor de “O processo” e “A metamorfose”, em seu mundo interior
extremamente confuso: “Eu não tenho quase nada em comum comigo mesmo, e devo
permanecer quieto em um canto, feliz por poder respirar”.
Zygmunt Kubala |
O
amigo violoncelista Zygmunt Kubala, surpreendido pelo falecimento precoce de
sua esposa Lina, também amiga e pianista, tinha um perfil cativante, introspectivo
e absolutamente peculiar. Fomos parceiros e dividimos quartos em uma turnê por
Minas - tocamos no Palácio das Artes e na Catedral de Mariana com um organista
alemão e outros estrangeiros, entre os “nossos” e os importados.
Vésperas
de um Natal. Eu estava no Rio com meus pais quando veio a notícia do falecimento
da Lina, em São Paulo. Trasladaram-na e o funeral aconteceu no Rio; compareci.
Acho que Ziggy (o apelido dele) ficou bem abalado, mas como bom polonês, com
aquela carga pesada de sofrimentos passados de gerações, suportou bem o fardo.
Em 2003, gravou um lindo CD, Solo, ma non abbandonato, com peças para
violoncelo solo de Bach a Telemann, de Schumann a Max Reger, tudo com seu toque
profundamente inspirado. Em 2007, faleceu de aneurisma na aorta sobre o palco, durante
uma apresentação em uma igreja de Minas. Tocando, como era seu desejo manifesto
para o dia que isso viesse a acontecer, solo, ma non abbandonato.
Em
1965, os irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle compuseram uma obra-prima: “Porque
eu preciso aprender a ser só / poder dormir sem sentir teu amor / saber que foi
só um sonho e passou”, com belas e discretas aliterações no último verso. Recebeu
uma inteligente paródia de Gilberto Gil: “Eu preciso aprender a só ser”. Do
nosso cancioneiro popular saiu “Marinheiro só”, que alterna cada verso com o
refrão, entoado em coro, que dá título à música: Eu não sou daqui / (coro:) marinheiro
só / eu não tenho amor / (coro) /eu sou da Bahia / (coro) / de São Salvador”.
Johnny Alf |
Em
1966, Edu Lobo e Torquato Neto criaram verdadeira
ode à solidão sobre uma sequência de acordes impressionistas com o baixo
descendente, tristeza de dar dó: “Adeus / vou pra não voltar / e onde quer que
eu vá / sei que vou sozinho”, para no final chamar a amada, “nem que seja só /
pra dizer adeus” (veja e ouça abaixo).
Do mesmo ano é “Eu e a brisa”, de Johnny Alf, até hoje repertório garantido nos
shows de todos os românticos do país: “Ah, se a juventude que essa brisa traz /
ficasse aqui comigo mais um pouco / eu poderia esquecer a dor / de ser tão só /
pra ser um sonho”.
Também
em 1966, a dupla norte-americana Simon & Garfunkel fazia a contradita de
“Nenhum homem é uma ilha”, do inglês John Donne (1572-1631), com I am a rock
: “Eu construí muros/ uma fortaleza profunda e cruel / que ninguém poderá
penetrar / Não preciso de amizades / amizades causam dor (...) / eu sou uma
rocha / eu sou uma ilha”. Uma rude visão do bunker em cujo interior submergiu
uma carcaça com que se protegeu o personagem, para devorar-se o próprio corpo, perdendo
de vista as palavras de John Donne.
“Açaí”, de Djavan, veio em 1982. O título, em Tupi-Guarani,
quer dizer “fruto que chora”. “Solidão / de manhã / poeira tomando assento /
rajada de vento / som de assombração”, música rica e lindíssima que foi sucesso
com Gal Costa e encantou na voz do autor. Já “Eu só quero um xodó”, sucesso de
Dominguinhos, Sivuca e Osvaldinho, tornou-se um hit também com Luiz Gonzaga:
“Que falta eu tenho de um bem / que falta me faz um xodó / mas como eu não
tenho ninguém / eu levo a vida assim tão só”.
De
Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, “Cais” (1972), na voz possante do cantor, revela
o poder que o espírito tem de construir usando a argamassa da solidão: “Para quem quer se
soltar / invento o cais / invento mais que a solidão me dá” / (...) invento o
amor / e sei a vez de me lançar”.
Autran Dourado |
Publica-do
em 1972, “Solidão solitude” é um livro de meu pai, Autran Dourado, que reúne textos
escritos durante a década de 1950, à parte do fio de sua obra. Buscando afinidades
diversas entre contos, ele os agrupou em quatro blocos de três. As estórias passeiam
por um idoso que amarga o passado ao vislumbrar o oceano; uma mulher que se afoga
em angústias e chora desesperadamente todos os dias; a pedofilia e o homossexualismo
encobertos pela bruma sacra dos corredores de um internato; e, claro, o medo da
morte, o sofrimento. Esses são alguns dos pontos que unem os quatro grupos de três
contos em torno de elos comuns sobre os quais paira a solidão, como uma nuvem escura.
Segundo ele, a decadência do ser humano e a loucura são alguns padrões que nos
norteiam. Os textos foram escritos e selecionados com critérios literários e outros
absolutamente pessoais para a composição desse conjunto de doze contos, pensada
à exaustão e comungando sentimentos e percepções comuns: solidão, solitude.
Nenhum comentário:
Postar um comentário