Nessa
belíssima e melancólica canção, Caetano Veloso descreve sua
partida para a capital, em busca de seus sonhos. Em 7/7/77, eu embarcava em um
voo para NY, conexão para Boston. (Na Cabala o número 7 fala de equilíbrio, e no
somatório volta ao 1, da autoconfiança. Na Kabballah judaica, sete é o número dos
que gostam de viagens). Levava pouca
coisa, além de meu instrumento. Ao pousar, fui para o apartamento de um amigo
brasileiro em Brighton, na região chamada New England, onde fiquei meses. Mas não
foi o melhor dia para ter chegado: ao acordar após uma noite tranquila, andei até a janela
da sala e levei um susto, a neve na sacada alcançava mais de um metro de
altura! Ao olhar para baixo, onde os carros? Tudo branco!
A
neve bloqueara a portaria do prédio. Subi, liguei a velha TV
e ouvi vários alertas, telefones de resgate e de helicópteros para emergências.
Descobri então que eu vivia a maior blizzard dos últimos 150 anos! Enquanto
a TV gritava em tom alarmista, fui procurar algo para comer. Na geladeira, uma
fatia de pão e uma cebola inteira. Comi o pão, para na hora do almoço, ouvindo as
notícias, amargar fatia por fatia da cebola, crua, com sal e um pouco d’água.
Um pacotinho com dois biscoitinhos, brinde do voo, fez boa sobremesa. Dia seguinte,
vizinhos caprichosos tinham cavado um túnel para sairmos. Vi pessoas andando e
as segui até chegarem à fila de um mercadinho. Deu para comprar alguma comida.
Ainda sob neve, seguindo a trilha |
79, Gainsborough St. Revisitando em 2009 |
Mudei-me
para Allston, mas o dinheiro do metrô me pesava tanto quanto a escolha entre fumar ou café da manhã. Por praticidade e economia, fui morar downtown
Boston, centrão, na Gainsborough St., rua da New England Conservatory, onde passei
a estudar (atrás do prédio do Boston Symphony Hall, casa de uma das melhores
orquestras do mundo). O apartamento, um pequeno cômodo, uma cozinha e um
banheiro. O prédio, daqueles antigos de tijolos aparentes à inglesa com simpáticas baywindows, janelas protendidas. O meu era o de nº 79 - ao lado do 77, onde, só
descobri mais tarde, em 1962 havia morado e começou uma trilha de sangue o terrível
“estrangulador de Boston”, autor de 13 assassinatos de senhoras idosas. (FRANK,
Gerold. The Boston Strangler. Boston: NAL, 1966).
O mapa dos estrangulamentos, segundo Gerold Frank. Início no prédio 77, onde morava. |
Um
pequeno aparelho de som, o meu instrumento, uma cama feita de
caixas de leite cobertas por uma espuma. Achei na rua um daqueles rolos de madeira
para cabos telefônicos, levei-o comigo e... hélas, uma mesa! Chegou o outono,
início do ano letivo, e não valendo o preço da mudança os estudantes que deixavam
as várias universidades largavam nas calçadas um sortimento de bugigangas para
quem quisesse. Levei uma TV P&B, uma torradeira, uma máquina de escrever vintage Remington de teclas redondas e outras coisas de que precisava. (Nas horas mais
difíceis, algumas vezes uma amiga brasileira me levava um tupperware com arroz,
feijão e um pedaço de carne).
Meus corais de Bach |
Praticava
das 6h da manhã até sair correndo a pé para o ensaio da
orquestra, às 9h. Depois do almoço, aulas e enfim retornar à casa, estudar ao
menos outras três horas de instrumento e duas ou três para a parte teórica e leitura de um dos 371 corais de Bach para analisar, em um tecladinho mequetrefe - e lá
se ia a jornada. Para o almoço, cena comum nas ruas, às vezes uma grande fatia
de pizza de 90 ¢, suspensa entre os dedos e escorrendo gordura enquanto
eu andava. Às vezes, eu ia a uma steak house (Newbury’s), onde degustava a
opção mais barata, US$ 2.60, uma fatia de carne sobre um pão de forma. Para
desespero do gerente, enchia a barriga no self-service com três ou quatro
tigelas de salada com molho roquefort.
Newbury's Steak House |
"A bailar la salsa, ritmo changüi": Roxbury |
Findo
o dia, voltar e estudar horas a fio, até que minha rotina
passou a ser alterada por convites para tocar salsa em grupos latinos de
Roxbury, uma espécie de enorme gueto que começava do outro lado da New England
- barra pesada, mas pagavam no ato. Minha vizinhança não era das mais finas: restos
de macarrão ou arroz jogados pela janela, enormes ratazanas lá fora e
camundongos e baratas dentro. Com o frio, meses e meses de neve, trancado,
bastava abrir a janela ao lado da mesinha redonda para gelar uma longneck no
name (genérica) em minutos. Vida preferencialmente solitária e com o mínimo
possível - tempo de lutar com um sorriso esperançoso.
O suntuoso Boston Symphony Hall |
O
isolamento necessário ao meu crescimento musical prescindia de maiores
gastos. Festinhas eram raras, tudo conspirava para meu estudo e futuro, o resto era
secundário. Mesmo conquistando um cargo no staff do Symphony Hall e depois de conhecer
as guildas de cachês de orquestras em Boston e cidades vizinhas, o recesso diário
continuou fundamental (são mil na plateia e só um no palco, dizia meu professor,
abrindo-me os olhos para a competição). No inverno, as pessoas isolavam-se mais
ainda: sair? Encoberto até o rosto, uma “escala” em uma loja para aquecer e correr
em frente.
New England Conservatory: Jordan Hall |
Fora
as necessárias saídas e raras badaladas, foram tempos essenciais
à minha formação, escolhera uma escola dificílima de se entrar - e concluir -, mas
caminho para oportunidades profissionais. Tempos de leituras, de introspecção,
de longa distância e escassa comunicação com a família. Mas foi esse estágio de
confinamento que me abriu caminhos intelectuais, musicais e como pessoa. A ele
devo tudo.
Por
isso,
não me estranha muito a atual quarentena. Buscar um lugar ao sol já me é apenas
um retrato na parede, e posso trabalhar particularmente. O recolhimento que vivi e certas dificuldades por que passei servem-me bem nas horas dessas penitências que pagamos pela atual pandemia e suas
ameaças devastadoras.
minha edição dos 371 Corais de Bach é mesma que a sua
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