Uma trilogia de lutas solitárias
Gabriel García Márquez nasceu em Aracataca,
Colômbia, em 1927, e radicou-se em Ciudad de Mexico, lá ficando até morrer, em
2014. Nobel de Literatura (1982) por sua obra - principalmente “Cem anos de solidão”,
ícone do “realismo mágico” -, influenciou gerações. Fortemente apegado à sua
Colômbia natal, carregava o trauma do período chamado La violencia, uma
década que lembra outros países da América Latina: censura, estado de exceção,
perseguições e um saldo de mortos estimado em até 200 mil.
La violencia: um rescaldo de 1948 |
Durante os anos em Paris, no Hotel Trois
Colleges, Márquez escreveu uma novela, sem o mesmo sucesso de “Cem anos”(escrito onze
anos depois), mas de grande importância: “Ninguém escreve ao coronel” (El
coronel no tiene quien lo escriba, de 1961). Ele conta a história de um militar
reformado que aguardava, passados quinze anos, a carta oficial que lhe daria a sonhada
pensão militar. O coronel vivia com a esposa asmática (“também no amor alguma
coisa teria envelhecido”, constatou) uma vida difícil, de fome, isolado pelo toque
de recolher de sua pequena cidade. Morria-se apenas de “morte matada”, como se
diz aqui, até que um músico da cidade faleceu de causa natural, um
acontecimento! (Senão por causa do músico, pela efeméride do óbito). O coronel
se aprumava, então, para ir ao enterro, a primeira “morte morrida” da vila em
anos, e assim dá o tom à novela.
Esperando Godot, de Samuel Becket |
Como em “Cem anos de solidão”, as palavras soledad
e solitud parecem ser o pano de fundo para Márquez desenvolver seu texto,
envolto em angústias e mistérios (importante: “Coronel” não se encaixa no
rótulo “realismo mágico”). Os nomes de eventuais personagens não aparecem, o foco
é centrado no coronel, isolando-o. No afã de ganhar dinheiro, passaram até fome
para engordar um galo de rinha do filho morto recentemente. Em vão também a
herança do filho, a que tinha direito – e que, ao par de sua pensão, nunca
chegava, como o Godot de Becket. Em suas memórias, Márquez confessa que pensara
em seu avô Nicolás, que nunca recebera um peso sequer depois de reformado.
Hemingway, seu hobby e tema |
De Cuba (1951), país que adotara para viver entre
o rum, a pesca e a literatura, o norte-americano Ernest Hemingway (1899-1961)
escreveu “O velho e o mar” (The old man and the sea), uma de suas mais
importantes novelas. Prêmio Nobel (1954)
como Márquez, neste livro Hemingway consegue penetrar a mente solitária de
Santiago, velho pescador, narrando uma luta de vida ou morte, centímetro
por centímetro de linha, gota por gota de suor, uma vara de pesca contra um
imenso marlin, o maior peixe-espada de sua vida. Dias se passaram e Santiago já
delirava, disputando um “cabo de guerra” com o indomável peixe, às vezes vendo-o
até como amigo, que de tão especial talvez nunca poderia ser servido à mesa. O que
lhe importava era aquela luta, duelo de Titãs.
Usando um arpão, Salvador fisgou a presa, que afinal
seguiu rebocada pelo barco. Com suas últimas forças, levava o peixe rumo à praia,
depois de ter-se arriscado, para a conquista, na perigosa corrente do Golfo,
não longe da Flórida. Enquanto retornava, inevitável que o sangue do peixe, tingindo de rubro o mar, se tornasse um chamariz infalível para tubarões. Já
sem o arpão, Salvador mata um deles com uma lança improvisada, um olho naquele peixe
amarrado no barco, quase seu cúmplice. Com um facão, conseguiu afastar outros
tubarões, mas chegando ao seu destino o que restara do peixe era uma carcaça e um
esqueleto de incríveis 5,5m, para espanto da comunidade e pavor dos turistas. Uma
luta solitária, que deixou marcas e cicatrizes profundas nas mãos e no corpo de
Salvador, além de gravada na mente a disputa, um animal contra outro.
Completa esta trilogia sobre a luta solitária o
pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999), predileto de muitos.
Versos bordados com maestria ímpar, riqueza de palavras, o frasear, o ritmo e a
sofisticação transbordam em versos que soam simples, mas são contraditoriamente
bastante complexos e plenos de rico conteúdo após uma leitura atenta. Assim é “Morte e vida Severina” (1955),
de contornos regionalistas, amarga descrição da odisseia de um retirante nordestino. (Sua crítica social lhe valeu a pecha de comunista).
Retirantes, por Portinari |
O drama de Severino era aquele do migrante do sertão,
e tem início com ele, sertanejo, a se apresentar: “O meu nome é Severino / (...)
/ Como há muitos Severinos / (...) deram então de me chamar / Severino da Maria.
/ Como há muitos Severinos / (...) fiquei sendo o da Maria / do finado Zacarias
/ (...) Como então dizer quem falo / (...) é o Severino / da Maria do Zacarias
/ lá da serra da Costela / limites da Paraíba”.
É dura a caminhada, os diálogos secos e curtos,
sem dourar a sina (“fazendo dos dedos iscas / para pescar camarão”), tudo lembrando
um cordel, em lamento: “nos intervalos de pedras / plantava palha”. Musicados
por Chico Buarque, versos inteiros sobre uma tosca sepultura revelam-se pungentes
- “Esta cova em que estás / com palmos medida”-, sempre com forte apelo social:
“é a parte que te cabe neste latifúndio”.
O sertanejo vai trincando os solados dos pés descalços
no caminho árido, em sua luta solitária contra a fome (e a morte que um dia virá,
inexorável). Assim como os personagens desta trilogia, é preciso que empreendamos, nesses tempos, uma luta,
mesmo que solitária. Por um ideal, por dias melhores.
mesmo que solitária. Por um ideal, por dias melhores.
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