Entrevista exclusiva: Braz Chediak, cineasta de “Navalha
na Carne”
Decameron
vem do grego deca, dez, e meron, dias, como em Hexameron, os seis
dias da criação (“no sétimo, Deus descansou” – Genesis 2:2). É uma obra de
valor inestimável para a literatura, e coloca Giovanni Boccaccio (1313-1375) ao
lado de Dante Alighieri (1265-1321) entres os grandes da literatura italiana e
mundial. Ficção de técnica primorosa, passa por tragédia, traições e erotismo com dez personagens confinados durante a Peste
Negra, que dizimou entre 75 e 200 milhões de pessoas na Eurásia. Segundo o Historical
Estimates of World Population (census.gov), havia no mundo no máximo 475
milhões de habitantes. Podem ter morrido até 200 milhões, ou 42% da população.
Sete
moças e três rapazes confinam-se em uma pequena vila isolada perto de Florença a
fim de se protegerem da praga que já deixava rastros macabros pela cidade. Durante
as noites, eles se revezavam contando estórias; chamavam-se Pampineia, Neífile,
Filóstrato, Fiammetta, Elissa, Dioneu, Leuretta, Emília e Pânfilo. Dez jornadas
em dez dias cujas sessões eram concluídas por Dioneo, que seria o próprio
Boccaccio (GRIFFITH, David. The Origin of the Griselda Story. Seattle:
UWP, 1931). Os temas dos jovens passeavam entre finais felizes, conquistas e
reconquistas, amores desfeitos, espertezas, traições de mulheres e homens, temas
livres e “cupidos” do amor alheio. Assim foi a temporada em confinamento dos
dez jovens.
“A
Peste” (La Plague), de 1947, do francês Albert Camus, tem lugar na vila
de Oron, na Argélia Francesa, e versa sobre a peste bubônica que amontoou cadáveres,
ratos mortos e dejetos nas ruas da cidade. Uma abordagem da condição humana com
traços do Teatro do Absurdo que remete à epidemia de cólera de cem anos antes na
mesma cidade de Oran, após a ocupação da Argélia pela França. Entre “O Processo”,
de Kafka, e o existencialismo - negado pelo autor -, a transposição é uma alegoria
sobre a ocupação da França pelos nazistas. Oron foi bloqueada, viagens e grande
número de atividades proibidas. A cada mês a crise piorava, enquanto um certo
Dr. Castel buscava um soro contra a praga. Após meses de isolamento, a epidemia
estava controlada e os portões da cidade foram reabertos. A novela expõe conflitos
e solidariedade humanos.
No
filme La Chinoise (1967), de Jean-Luc Godard, rodado basicamente em um
apartamento, um grupo de jovens se confinara a fim de travar embates ideológicos
liderados pela socióloga Véronique (Anne Wiazemsky), seduzida pela experiência do
maoísmo na China. Na “célula”, conspirava para derrubar o regime soviético – entre
sérias discussões sobre a opção pelo terrorismo e acusações de revisionismo e colaboracionismo.
No intento de assassinar o ministro da Cultura soviético em Paris, a radical
Véronique, amante do companheiro Guillaume (Jean-Pierre Léaud), confunde o
apartamento do ministro e mata a pessoa errada. Logo, é dissolvida a célula
montada em Paris. A fleuma política da radical Véronique havia sucumbido aos seus
próprios inconfessáveis limites.
Plínio Marcos (Época) |
“Navalha
na Carne” (1967) é uma peça teatral do dramaturgo brasileiro Plínio Marcos
(1935-1999). Confinados no quarto de um prostíbulo, um cafetão de nome Vado,
uma prostituta, Neusa Sueli, e um homossexual, Veludo, falam de suas histórias
marginais, seus feitos, levando ao extremo os óbvios antagonismos e enfrentando
disputas e desafios até sob o fio de uma navalha. A censura não tardou em vetar
a peça de vez até os estertores da ditadura, 13 anos depois, quando foi
reencenada.
Braz Chediak (Filmow) |
Levada
ao cinema pelo amigo Braz Chediak, em 1969, “Navalha na Carne” teve como
protagonistas Jece Valadão, no papel do cafetão Vado, Glauce Rocha como Neusa Suely, a prostituta, e Emiliano Queiroz como Veludo, um empregado homossexual. Ao
chegar ao seu quarto no bordel, Neusa
é agredida por Vado, que a acusa de surrupiar a féria do dia. Juntos, chamam Veludo, imputando-lhe a culpa pelo furto. Tensão sobre tensão, o filme consegue fazer o espectador sentir-se “in loco” naquele quarto. É um privilégio contar com o depoimento que o cineasta Braz Chediak me deu com exclusividade, do qual reproduzo alguns trechos, na medida que o espaço me permite.
é agredida por Vado, que a acusa de surrupiar a féria do dia. Juntos, chamam Veludo, imputando-lhe a culpa pelo furto. Tensão sobre tensão, o filme consegue fazer o espectador sentir-se “in loco” naquele quarto. É um privilégio contar com o depoimento que o cineasta Braz Chediak me deu com exclusividade, do qual reproduzo alguns trechos, na medida que o espaço me permite.
Os
três personagens, segundo Braz, “estão ligados entre si por pertencerem ao
mesmo universo particular, a prostituição, e ao mesmo universo universal: a
miséria”. Quanto à sua psique na direção, ele revela “intimidade com este
cenário, já que a iniciação sexual de todo jovem interiorano era na zona”, e
que aos 18 morou “no coração da prostituição da Lapa”. Sobre o isolamento, lembra
“Quem Tem Medo de Virgínia Wolf”(E. Albee) e “Um Bonde Chamado Desejo” (T.
Williams), por exemplo, que mostram que “agressões e revelações só acontecem
quando os personagens se confinam no mesmo ambiente”, e que Alfred Traps, de “A
Pane”(Die Panne ), de Dürrenmatt, “suicida-se após o julgamento na casa
onde buscou abrigo e se confinou”.
Marlon Brando e Vivien Leigh |
Em
Navalha na Carne, diz, “fui influenciado por diretores de filmes que vi na
infância ou na adolescência. A cena em que Jece lava a cara da Glauce e a
mostra no espelho (...) parece muito com aquela em que Marlon Brando lava a
cara de Vivien Leigh em “Um Bonde Chamado Desejo”. “Manter um filme num
ambiente único, em preto e branco, miserável, é muito difícil. Se facilitar, o
público sai do cinema. Mas gritavam, aplaudiam, riam ou xingavam os personagens
como se tudo estivesse acontecendo ali, na sua frente”.
ENTREVISTA COM BRAZ
CHEDIAK
Henrique Autran Dourado: Como você vê um gigolô, uma
prostituta e um homossexual praticamente centrados em um cenário de isolamento
em um quarto de bordel?
Braz Chediak: São 3 personagens que estão ligados entre
si por pertencerem ao mesmo universo particular, a prostituição, e ao mesmo
universo universal: a miséria. Dois ambientes que levam as pessoas a um
constante conflito, ainda que também à solidariedade, desde que sejam
preservados seus interesses particulares. Isto foi o que primeiro pensei,
quando li a peça, e quis passar aos espectadores do filme.
HAD: Como foi filmar a angústia, a loucura do bas-fond,
e seu envolvimento psicológico no trabalho?
BRAZ: Desde criança tive intimidade com este
cenário, já que a iniciação sexual de todo jovem interiorano era na zona. Mais
tarde, com 18 anos, morei no coração da prostituição da Lapa, no lendário
Edifício Souza. Convivi com as prostitutas, os gigolôs e os homossexuais que
ali viviam, fiz amizade, vi e ouvi suas vidas.
Sempre me identifiquei com esses personagens. Também a
leitura de Dostoiévski me ajudou a compreendê-los com mais profundidade.
Fiz o filme sentindo ternura por todos os personagens,
que considero a maneira certa de filmar, de um diretor que não é brechtiano.
HAD: Você veria semelhanças com outras situações de confinamento,
no que tange à relação entre seres humanos, suas neuroses e seus defeitos?
BRAZ: Sim. No cinema mesmo: se analisarmos “Quem
tem medo de Virgínia Wolf”¹ e “Um bonde chamado desejo”², por exemplo, veremos
que as agressões e revelações só acontecem quando os personagens se confinam no
mesmo ambiente.
Na literatura também isto acontece. Veja, por exemplo,
o personagem de “A pane”, de Dürrenmatt: ele se suicida após o julgamento feito
na casa onde buscou abrigo e se confinou com os outros personagens.
E Raskólnikov³, quando está sozinho, confinado em seu
quartinho miserável, tem um comportamento diferente de quando está em outro
ambiente, dialogando, etc., etc.
HAD : Você, obviamente, teve contato com o Plínio
para fazer o filme. Ele te passava esses sentimentos?
BRAZ: Ele era um amigo e saíamos juntos quando eu ia
a São Paulo ou quando ele vinha ao Rio. Raramente conversamos sobre os filmes mas,
em entrevista à imprensa, ele diz que gostou. Queria, a todo custo, que eu
filmasse “Abajur Lilás”. Na época ele já não conseguia trabalhar, por
perseguição política, e eu estava sendo visado, meus filmes sofrendo censura,
etc. Ponderei a ele que seria perigoso fazermos o filme do jeito que eu
imaginara. Ele compreendeu, concordou, e ficamos de fazê-lo mais tarde, mas
isto não aconteceu.
HAD: Queria espremer os personagens para ver o
caldo daquilo, e como diretor deu para sentir isso?
BRAZ: O Plínio, como o Nelson Rodrigues, não dava
palpite nos filmes (pelo menos comigo). Raramente ele aparecia, via um copião e
sempre dizia com aquele jeito dele: “Caralho, Chediak. Tá du caralho!” e
desviava o assunto para contar as histórias que ele conhecia do submundo
paulistano ou do meio teatral.
HAD: Você sentia com ele a angústia desse convívio
entre pessoas cujos papeis na vida são tão diversos, dividindo um mesmo espaço?
BRAZ: Não. O trabalho do autor é um trabalho solitário.
O diretor trabalha com um roteiro já escrito e estudado várias e várias vezes.
Suas angústias são anotadas como uma rubrica para conversar com os atores. Em
geral o diretor tem um roteiro que não mostra a ninguém porque só ele entende. No
Navalha na Carne tive a colaboração importante do Emiliano Queiroz, que
conhecia bem a peça.
E, instintivamente, fui influenciado por diretores de
filmes que vi na infância ou na adolescência. A cena em que Jece lava a cara da
Glauce e a mostra no espelho, por exemplo, parece muito com a cena em que
Marlon Brando lava a cara de Vivien Leigh em “Um bonde chamado desejo”. É o
subconsciente trabalhando.
Quando o diretor Italiano Giorgio Moser, palma de ouro
em Cannes com “O Continente Perdido”, viu o filme, me disse que eu tinha
obsessão por escadas. Só depois, pensando a respeito, vi que era verdade.
Sempre fui fascinado por escadas de pedra, não sei o motivo.
Mas voltando à sua pergunta: é bom o diretor ter o
filme pronto na cabeça, senão se confunde e pode perder o ritmo. E manter um
filme num ambiente único, em preto e branco, miserável, é muito difícil. Se
facilitar, o público sai do cinema.
Com Navalha o foi o contrário: o público gritava,
aplaudia, ria ou xingava os personagens como se tudo estivesse acontecendo ali,
na sua frente. Foi bom fazer o filme.
HAD: Muito obrigado, Braz
Chediak.
Notas:
1. 1. Edward Albee
2. 2. Tennessee Williams
3. 3. Personagem de Dostoiévski em “Crime e Castigo”
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