Nunca fui fã daquele tipo de enlatados americanos como SWAT (Armas Táticas e Especiais) e Miami Vice, mas confesso que, na falta de sono, qualquer thriller serve: o suspense, ironicamente, me embala até o ponto de desligar a TV e cair como criança nos braços de Orfeu. Filmes épicos, sim, Sansão e Dalila e El Cid, sempre me prenderam a atenção de forma especial, em parte porque versados sobre fatos históricos, outro tanto porque costumavam ser muito bem feitos.
A história da humanidade já é emocionante por si, apesar de sempre sangrenta e carregada de violências de todos os tipos. Desde 1240, em tempos de barbárie da invasão contra o Tibet, foram dezenas de ataques da Mongólia a outros países e territórios, tendo como bandeira a fome insaciável por conquistas. Em 1296, o ataque da Escócia sobre a Inglaterra, e já em 1480 o avanço sobre Rhodes pelo Império Otomano, que também atacou a Áustria em 1596. Em 1693, a Mongólia é tomada pela China, e em 1792 a Polônia toma a Rússia. A lista é imensa, até chegarmos à barbárie moderna: duas grandes guerras, o genocídio dos nazistas sobre o povo judeu e de armênios pelos otomanos. A conquista e o domínio de um povo sobre outro pela força bruta parece remontar ao tempo de Neandertal.
Um corte e uma pergunta: o que aconteceu naquele dia 6 de janeiro de 2021 entre as avenidas Constituição e Independência – nomes tão simbólicos! – em Washington DC? O Capitólio, símbolo americano e casa do Legislativo, iria ratificar o nome dos recém-eleitos Joe Biden e Kamala Harris como presidente e vice. No dia 8, a editora-chefe do famoso jornal USA Today organizou nomes, fatos e personagens, muito além de simples provocação de jovens baderneiros.
Rudolph Giuliani (foto), ex-prefeito de NY e homem forte de Donald Trump, naquele dia 6 subiu em um palanque no National Mall exigindo mais dez dias para investigar a eleição americana – como se investigar não fosse um processo sobre dados concretos e reais, e sim passar uma peneira até em água para ver se surge uma fraude. Aos gritos de “acabou a conversa!”, buscava radicalizar de vez a já formada balbúrdia. A seguir, o presidente Trump ergue-se para a multidão, já estimulada por mentiras e gritos de guerra como os de Giuliani - “julgar pelo combate!” E o próprio presidente, suposto guardião da República e dos ideais americanos, conclama a massa a seguir para o Capitólio para levar à cerimônia “alguma ousadia e audácia”.
Trump no comando: “Vamos descer a avenida Pennsylvania rumo ao Capitólio (...) falar com nossos republicanos – os fracos, porque os fortes não precisam de nossa ajuda – nós vamos tentar dá-los o tipo de orgulho e ousadia de que eles precisam para que nos devolvam o país” (registrado pelo USA Today). Havia até manifestantes pendurados em árvores, e o trajeto delineado por Trump foi seguido à risca. O show estava feito. O jornalista Chris Quintana revela ter ficado chocado com a festividade da cena, comparando-a a um festival de música ou algo parecido. Muitos faziam selfies em frente ao Capitólio antes de invadirem o prédio.
Um louco com uma capa que trazia o lema Keep America Great posava ao lado de uma rústica forca engrossando o coro “parem o roubo”. Outro, de chifres como um viking, aboletou-se em um gabinete. Jornalistas descrevem a imagem de fanatismo e insanidade, tão avessos à democracia simbolizada pelo enorme monumento a George Washington, ali à frente do prédio do Capitólio. Manifestantes ensandecidos foram recebidos por forças do Congresso de forma descrita por repórteres como “suave” e “complacente”, até convidando a guarda a juntar-se a eles. Não, nem The Capitol é Das Kapital e nem esse mob a revolução russa - unindo proletários, líderes políticos e soldados em prol de um ideal. Mesmo porque não havia um ideal, apenas um presidente debatendo-se em causa própria e seus fanáticos seguidores. Um invasor, perguntado pela jornalista do Congresso Chrystal Hayes se a Polícia havia tentado contê-los, simplesmente deu uma gargalhada: “eles foram derrotados”; “os agentes foram muito corteses conosco, nós passamos direto por eles”. A descrição do USA Today foi de que a repressão teria sido “suave”.
Cinco pessoas morreram, sendo que uma pela Polícia e outras quatro vítimas de ferimentos. Um desses, oficial do Capitólio, veio a falecer na sexta, dia 8. Porém, mesmo com a certificação da chapa Biden-Harris na Presidência, após a evacuação de autoridades e seu posterior retorno, ficaram perigosamente feridas a República e a democracia americanas. Tudo isso provocado por um fanático orador e aliciador da extrema direita dos EUA, o próprio presidente, que deveria defender os valores mais caros à nação. Surpreende-me especialmente – lembrando a espetaculosa SWAT, que citei no começo deste texto - a quase inação das forças policiais no episódio – por ter vivido naquele país, sei que é um lugar onde com Polícia não se brinca. À parte a costumeira truculência dos agentes nesse tipo de manifestação, um carro que desobedeça à ordem de parar é uma sinalização para agentes atirarem.
Bloqueado pelo Twitter e Facebook por incitação à violência, contra as normas das redes, um presidente já mudo e imobilizado aguarda o dia 20 para amargar, com frustração, a diplomação de Biden-Harris à Casa Branca. Esperamos agora ver uma América grande de verdade, digna de seu patrimônio: (...) “a terra dos livres e o lar dos bravos” (do hino Star Spangled Banner) – e sob o império da lei.
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