A Argentina é um país amigo que apesar das diferenças culturais tem em comum conosco a bagagem latina. Algumas diferenças: dominada pelos espanhóis, a Argentina proclamou sua independência em 9 de julho de 1816. O Brasil, “descoberto” e colonizado pelos portugueses, tornou-se independente seis anos depois, em 7 de setembro de 1822. A Argentina é um vasto país: 2.800 mil km² (8º maior do mundo), quase 33% de nosso território, 8.510 mil km² (5º).
Demograficamente, não se repete tal proporcionalidade: com quase 212 milhões de habitantes, o Brasil tem 4,86 vezes a população do país vizinho, de 43,6 milhões. Na música, porém, somos bem chegados: o imponente teatro Colón (1908), de Buenos Aires, Meca da ópera na América Latina que passou a receber as grandes companhias, inspirou a ideia de fundação dos teatros Municipal do Rio (1909) e de São Paulo (1911). Aqui é terra de Villa-Lobos e Guarnieri, lá, de Maurício Kagel e Ginastera; esbarrando nas tênues fronteiras entre o clássico e o popular, cá temos Jobim, eles Piazzolla. E se exaltamos o samba e a bossa nova, lá eles desfrutam do maravilhoso tango. Cá se toca violão e sanfona, lá violino e bandoneón. Enquanto falamos e escrevemos em português, entre eles é o espanhol, belo idioma, tão similar!
O futebol é paixão nos dois países! A seleção argentina levou duas copas do mundo (1978 e 1986), aqui colecionamos cinco (58, 62, 70, 94 e 2002), longe de uma equivalência em termos populacionais. Em ídolos somos parceiros: Pelé (80 anos), o mestre perfeccionista, vigoroso e temido pelos adversários, e o mago Diego Maradona, um artista simplesmente venerado, um ícone de sua terra, para tristeza do povo falecido em 2020 aos 60 de idade. Ambos célebres por escreverem a história do futebol recente com gols, dribles e lances homéricos.
Contudo, há um viés belicista que frequentemente extrapola todos os limites do razoável, tanto entre brasileiros e argentinos quanto entre estes e uruguaios, uma rivalidade ferrenha que se pode creditar ao passado histórico, desde as guerras do Prata e da Cisplatina (1825-1828), quando da disputa territorial entre o Brasil e a Argentina envolvendo a província onde hoje fica a República do Uruguai.
Há uns 20 anos, fui participar de um debate na Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos), em São Leopoldo, RS. Logo no princípio da conversa reparei que na plateia um grupo menor sentava-se isolado em uma área à esquerda. No intervalo, indaguei a um colega debatedor, que me explicou: meio à parte, sentavam-se os uruguaios. À direita, a partir do meio para cima, os argentinos, e, na frente, um bom número de brasileiros. Assaltou-me uma sensação desconfortante. Ora, éramos todos músicos, e naquela mesa eu me sentia à vontade com um uruguaio, um argentino e talvez outro brasileiro.
Terminadas nossas exposições, fomos levados a uma bela churrascaria. Lá chegando, sentei-me à mesa onde já estavam alguns uruguaios. O papo começou bem, à nossa frente uma imensa ‘costela no bafo’ - à argentina, aliás -, assando bem ali no chão para nos provocar, até que entra um grupo maior, com certa euforia. Da cadeira do lado, meu vizinho uruguaio perguntou: ¿son los argentinos? Respondi que sim, e no ato, após trocarem poucas palavras entre si, retiraram-se. Até em nosso meio musical essa rixa transparece, especialmente em ‘ringue’ livre, o trabalho, e aqui, mesmo entre os residentes e os naturalizados.
Voltando à Argentina, temos muito em comum: ambos sobrevivemos a violentas ditaduras durante longos períodos (10 anos, eles, e 21, nós) - tortura, mortes, censura e até ‘acordos’ entre as repressões dos dois países, tristes laços que 'desapareceram' de um hotel até com nosso pianista Tenório Jr. No passado, ambos tivemos líderes populistas com um pé no fascismo mussolinista, Perón e Getúlio.
Em 2020, na saúde, o presidente argentino Alberto Fernández anunciou que na terça-feira, dia 5 de janeiro de 2021, daria início à vacinação em massa com a Sputnik-V russa contra a Covid-19. O Brasil ainda claudica, entre o negacionismo e a inércia, deixando o povo mercê de uma nova e imprevisível onda da doença. Enquanto isso, o Senado argentino – sem entrar em discussões ideológicas ou de credo – aprovou, por 38 contra 29 votos e uma abstenção, o aborto espontâneo até a 14ª semana de gravidez.
Racismo e Xenofobia andam de braços dados, preconceitos que têm como mote a ideia de supremacia e superioridade de uma raça ou país sobre outro (entre regiões atende nos dicionários pelo nome de regionalismo). São eles os instigadores do ódio, das guerras, das violações aos direitos dos cidadãos e obstáculos ao diálogo pelas conquistas sociais entre países, regiões e cidades. Surgem como muralhas de preconceitos entre Sul e Nordeste, brancos e pretos, cariocas e paulistas ou mesmo uma cidade e outra - genericamente, todos os que se considera fora do seu time.
Temos o que admirar nos argentinos, pois se em várias coisas os superamos, em outras por eles somos superados - trata-se de nobreza de hermanos vecinos estendermo-nos as mãos. Afinal, há que se reconhecer que em 1936 a Argentina já havia recebido o Nobel da Paz, com Saavedra, enquanto o de 1970 foi desviado de Dom Hélder Câmara por uma guerra de informações tendenciosas e falseadas do presidente Médici com seus diplomatas em Oslo e Paris. A Argentina voltou ao Nobel da paz com Esquivel em 1980. Salve, latinos! Como tal, devemos nos orgulhar também de Jorge Mario Bergoglio – Francisco, o Papa – um líder sábio, pluralista, generoso e à frente de seu tempo.
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