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sábado, 27 de março de 2021

SAÚDE!

 


Do latim salus, utis, no sentido de ‘salvação, conservação da vida’ [Houaiss], de onde ‘saudar’. Em várias línguas latinas, como o português, a palavra soa no mesmo tom: salud, em espanhol e salute, italiano, e costuma associar a nossa mente àquele brindar de champanhe, festas, coisas alegres, entretenimento fantasiado de alegria. Desejamos saúde também nos aniversários como o bem mais precioso da nossa existência, e antes do sucesso na carreira ou coisas materiais. Há quase um século, Mário de Andrade, o do Macunaíma, ironizou: “muita saúva e pouca saúde os males do Brasil são” (interprete livremente a “saúva” como qualquer mal que destrói, e saúde nosso bem) maior).


Ser saudável, na concepção pós-moderna, é ser ‘sarado’, malhador, ter o corpo moldado, barriga de tanquinho, o que não impede este falso ideal romano de escamotear algum mal ou doença. Descartes (1596-1650) discorreu sobre o dualismo mente-corpo, abrindo nova visão sobre o monismo dos gregos - a unidade das partes. No passado, o poeta romano Juvenal (55/60 a 127 d.C. - ilustração), em sua Sátira X, tornava unas as duas esferas da vida: orandum est ut sit mens sana in corpore sano (ore por uma mente sã em um corpo são). Visão hoje nada ocidental, faz mais sentido entre os budistas, os taoístas e hinduístas. Nossa cultura foi bastante impregnada de filosofias como o hedonismo, o prazer como bem maior, hoje transbordando na indústria do consumo, do sexo como máquina de vender e de sentimentos materialistas como posse, poder e luxo.


Depois desta breve introdução, um assunto de extrema gravidade: no mundo, o Brasil, em particular, vive o que será o pior desastre sanitário, a pior das pandemias de sua história. Aqui morre-se nas filas dos corredores engarrafados de hospitais, faltam insumos, equipamentos e cilindros de oxigênio. Com o número de contágios e leitos ocupados, doentes internados ou em espera e óbitos em expansão, ainda falta pessoal, em todos os níveis de atendimento. Cenário dramático? Não, teratológico – dos entes monstruosos, do demo mesmo. Salve os profissionais engajados que purgam esse dia a dia, que têm um amor profundo pelo que fazem, arriscam suas vidas pela do próximo. Salve os voluntários ou empresas que, em diversos lugares, sozinhos ou organizadamente, em grupos, arrecadam alimentos como podem em quantidade ainda bastante tímida para enfrentar esta guerra. Dão de comer a vítimas da fome, aos desvalidos, descalços, aos que vivem em situação de rua, desempregados e famílias esfomeadas, por mais modesta que a ajuda seja. Que quadro dantesco ruiu sobre um país que merece tudo, pelo seu povo, sua linda natureza tão maltratada, sua miscigenação, riqueza única que se traduz nas artes como a pintura, a música, a dança, nas manifestações populares e tradições folclóricas!


Em sua longa experiência de luta contra endemias, epidemias e pandemias, o Brasil alcançou um pódio, o mundo inteiro reconhece. Devemos à luta de Oswaldo Cruz, desde 1904, essa tradição nacional da vacina como instituição e bandeira, o que nos faz admirados mundialmente. Recebi as vacinas de praxe, mesmo porque sem elas não poderia ser matriculado em escolas, e assim também foi com meus filhos. Essa cultura da vacina, como tantas outras iniciativas de sucesso, a exemplo do uso obrigatório de cinto de segurança, é parte de nossas vidas, e não está sujeita a ideologias, crenças, manias ou medos infundados, – muitas vezes sob estímulo de uns poucos. Se no início foram medidas coercitivas, hoje o dever tornou-se direito, os resultados estão na história e seus efeitos revertidos em prol da vida.


Há um aparato monumental a gerir a Saúde no país: ministério, secretarias, agências. A máquina pública - e louvemos nosso SUS, muitas vezes negligenciado - é gerida por pessoas, e delas depende: de sua competência, expertise, vontade e independência como agentes técnicos especializados. Para piorar, em nível federal, onde as ações deveriam ser centralizadas, em pouco mais de dois anos já tivemos 4 gestores: Mandetta, médico e político com vida útil de um ano e quatro meses que suportou os conflitos com as ingerências leigas e disparatadas do executivo; Teich, um médico tímido em tudo que ‘durou’ 29 dias; um general de exército, Pazuello, que não vai completar um ano na cadeira e cujo misterioso e longo processo de exoneração e substituição compromete mais ainda a conjuntura das operações. No lugar dele, um outro médico, Queiroga, forjado na ideologia oficial (se é que se pode chamar de ideologia), vem tentando maquiar com dúbias declarações o que realmente veio fazer: mais do mesmo. Mais da mesma negligência, inação, falta de prumo e rumo e nada da logística que se espera enérgica e contundente para combatermos a praga do século. Não será rezando por essa “cartilha”, a mesma do antecessor, como ele mesmo repetiu, que veremos alguma luz. Senhores, deixem as orações conosco e trabalhem.


Ante previsões apocalípticas de cientistas daqui e do exterior de até 4 mil óbitos diários no país em coisa de dois meses, o que nos restará? Encolhermos ante o medo até nos transformarmos em insetos, como na Metamorfose de Kafka, ou, em um ímpeto de loucura, lembrando Caetano, “abrir as janelas para que entrem todos os insetos” e flertar com o vírus? Pior ainda, como no tema do filme M.A.S.H.: “suicídio é indolor, ele traz muitas opções, e eu posso usá-las ou não, se eu quiser”? Nunca! O bem mais precioso do universo é e será a vida. Seguiremos na luta pela saúde, não importam os nomes das saúvas.



 

quinta-feira, 18 de março de 2021

RENEGANDO O NEGACIONISMO

 


Muito se fala em negacionismo, fake news e afins. A prática vem de longe, e foi Henry Rousso (foto) o primeiro historiador a chegar a uma conclusão sobre a matéria, a partir do francês négationnisme:  disparates perdidos como birutas de aeroporto ao vento que têm acontecido desde muito tempo. Em 1987, em Le Syndrome de Vichy, ele buscava diferenciar a visão histórica correta das de  negação do Holocausto, por exemplo. O historiador James Mc Pherson disse que os negacionistas queriam rever a história sob ótica “conscientemente falseada ou sob interpretações distorcidas do passado para servir a objetivos ideológicos ou partidários” (McPherson, J.: Revisionist Historians. NY: 2003, AMH). Segundo ele, os negacionistas queriam simplesmente “apontar para um objetivo político, transferir a culpa da II Guerra, demonizar um inimigo, criar ilusão de vitória e preservar sua união”. Paralelamente, buscavam capas e manchetes polêmicas, a fim de vender suas publicações. Os adeptos da prática tentavam forjar, ostentando com seus pseudoestudos de falsa imagem profissional, formação que era apenas pífia. Esses “pesquisadores da verdade” criam diferentes opiniões sobre os registros históricos para encaixá-las em sua própria visão ideológica, social e política, com o objetivo de falsear a verdade a seu favor. Apesar de polêmico, McPherson abriu caminho para destrinchar mentiras em diversos assuntos históricos. Negar a verdade era ferramenta preciosa para os que necessitavam da mentira para governar, e isso valia de Hitler a Stálin.


U
m dos maiores delírios negacionistas que vimos até hoje surgiu após a segunda guerra, contestando o Holocausto. Eu mesmo conheci um adepto, Sergio, senhor de mais idade, colecionador de publicações, fotos e fatos sobre a Guerra - nem ousava desafiá-lo, ele tinha um cabedal imenso sobre a matéria e discursava até sozinho. Aos domingos tínhamos um longo café da manhã na tradicional padaria Amarante, SP, e lá falávamos de ópera e política. Contudo, sempre chegava a hora das guerras e do Holocausto (que, segundo ele, nunca existiu, e tinha livros para comprovar que eu nunca quis ler. Já sabia, tinha conhecido sobreviventes, assistido, vivido e o suficiente pra saber. (Brookline, em Boston, é um bairro judeu onde vivi uns anos). Hora de ir embora.


T
ambém já vi negarem o genocídio dos armênios (foto) e os crimes de guerra japoneses. Negam, insistem até que o trouxa acaba acedendo. Lá atrás, durante a Inquisição, Galileo Galileu foi forçado pela Igreja a admitir que o sol girava em torno da terra (geocentrismo), e não o contrário, versão oficial. Condenado por heresia, retratou-se publicamente – mas não sem contradizer, sussurrando, a mentira que teve de assumir: epur se muove: no entanto, ela (a terra) se move. Episódio sobre o mesmo tema já havia acontecido com Copérnico.

O julgamento de Galileo

A
Igreja Católica da época, forjada na mais dura linha jesuíta, pressionava o mundo contra teorias científicas que já se demonstravam irrefutáveis, uma vez que as descobertas passaram a vir a passos galopantes, com novos aparelhos e instrumentos de observação e medição. Em muitas das antigas visões equivocadas, grandes mentiras travestiam-se de verdade oficial - até os estertores do possível, quando a sustentação daquelas teses caía como dominó. Por aqui, uma empresa chamada Brasil Paralelo, criada há 10 anos em Porto Alegre, fala de uma “realidade paralela” e tolices  afins. Possui canal no Youtube e usa redes como o Telegram para propagar suas ideias, como despejar  intelectuais, jornalistas e artistas no fogo da vala comum da esquerda – quem não está comigo é de esquerda, que é o mal: axioma da espécie de seita conservadora dita cristã, porém nada santa, que aqui surgiu. O autodeclarado “filósofo” Olavo de Carvalho, que mora em Richmond, EUA, não tem educação formal, mas engendra esse tipo de antagonismo, manipula a história do Brasil segundo sua conveniência. Na Isto É de 19/dez passado, o filósofo e professor Paulo Ghiraldelli Jr. fala sobre campanhas antivacina, medicamentos que não funcionam e delírios como o insano terraplanismo. E que tal um texto em que o ex-secretário de cultura Roberto Alvim plagiava Goebbels?  Pergunta irônica: será que Zumbi dos Palmares dava chibatadas em ‘seus escravos’, esperando o dia em que abolissem a lei da gravidade?


Máscaras fora”, alguém grita como na Independência. Indivíduos narcotizados a serviço de interesses ignoram a ciência tentando convencer que a proteção facial é inútil, assim como o distanciamento social e os protocolos sanitários. Entre eles, ministros, secretários, assessores do grupo, familiares e o próprio presidente repetem e tentam enfiar na cachola de um povo em parte dopado aquilo que Rousso e McPherson, há quase duas décadas, já haviam deixado claro: são mentiras forjadas ou obsoletas que agora ressuscitam como fantasmagorias; trabalham com a falsidade e tudo distorcem da forma que lhes convém politicamente. Um modismo, via fake news nas redes.


Se você contar uma grande mentira e continuar a repeti-la, o povo terminará por crê-la verdadeira. A mentira deve ser mantida apenas o tempo suficiente para que o Estado possa proteger as pessoas das consequências políticas, econômicas e militares da verdade. Assim, é importante, vital para o Estado, usar todo o seu poder para reprimir dissidentes, porque a verdade é inimiga mortal da mentira; por extensão, a verdade é o grande inimigo do Estado”.

[Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda de Hitler].



sábado, 13 de março de 2021

TODOS OS DIAS SANTOS DE TODAS MULHERES

Sta. Efigênia da Etiópia. Séc XVIII

T
inha eu uns treze ou catorze anos. Família das artes, eu gostava de música, pintura, poesia, boa prosa de texto ou prosa fiada. E tinha especial apreço pela cozinheira dos meus quitutes, a dona Efigênia, nome de um bairro de Conselheiro Lafaiete, cidade interiorana de Minas. Ah, aqueles quitutes... Pois foi em um belo dia, não sei como foi (acho que o vi usando), que ganhei de um marceneiro um bloco de parafina pura,  que ele usava para lubrificar seus serrotes, e toquei a esculpi-la com um pequeno formão em “V” (‘seo’ Joaquim dizia que era para escochinar, algo como estripar ). Logo tomou forma uma santa tingida preta, e a fiz com todos os detalhes encorpando sua longa veste, as dobras e as faixas coloridas. Chamei-a Santa Efigênia. Anos depois, a própria, já muito idosa, voltou para Lafaiete, meu pai dirigindo a Kombi, mas a santa ficou bem ali na estante da entrada de casa no Rio. 
Minha mãe, Ana Arruda e Lia Luft com Verissimo, Callado
e meu pai em Berlim, após a Feira Internacional de Frankfurt.

E
ssa admiração pela mulher, claro, remete à minha mãe, que dizíamos brincando ter sido a primeira feminista do país: bem instruída, presente com meu pai em conversas com mulheres como Clarice Lispector. Matriarca enérgica mas extremamente amorosa, também professora de francês e ligada à literatura. Se chegava a beauvoirtiana, não sei, mas leu a francesa, comme il faut (como deveria). Assim criou filhos e filhas, zelosa ao extremo com a educação que nos dava. “Um abraço terno em você, viu, mãe”, cantou Gonzaguinha, e faço coro em eco agora, que vazio que ela nos faz! 
A virgem de Dali

G
osto muito do jogo de sombras do ‘Caravaggio holandês’ Hendrick Terbrugghen (séc. 17) em seu óleo sobre “Anunciação”; da expressão materna de Maria com o menino Jesus no colo de Giovanni Batista Salvi (1609-1685), sem falar nas obras-primas de Leonardo da Vinci, Rafael, Rubens, Bellini e mesmo os recentes como Salvador Dali e sua misteriosa Virgem de Guadalupe. Todos, católicos, agnósticos ou ateus, tinham na imagem da Virgem Maria o modelo da mulher virtuosa, devotada à contemplação absoluta que aprendeu com o Filho ser a parte mais importante – e nunca a “melhor”, mais prazerosa! – Grandioso o cadáver ainda insepulto do Salvador esparramado como que escorrendo sobre o frágil colo da Pietá de Michelangelo (abaixo). 
Michelangelo: La Pietà 



Virginia Slims, anos 1970

M
uitos anos depois, nos EUA, via propagandas de mulheres finas e arrojadas – fumando, claro, símbolo de independência na época – tendo ao fundo uma imagem meio sépia de seu passado de semiescravidão, cavando neve ou lixo com pá - contraste com aquela linda modelo do Virginia Slims, cigarro feito para o público feminino em primeiro plano, o desejo libertário (você vem de um longo caminho, dizia o texto). O mundo passou por aqueles tempos, desde a luta pelo direito a voto nos EUA, até as mais recentes líderes Betty Friedan e a bela Gloria Steinem, que chegou a aceitar um emprego de “coelhinha”’ em um Playboy Club do fanfarrão milionário Hugh Heffner apenas para denunciar a condição da mulher-objeto para babação (e abate?), “lebres” de um cafajeste explorador e carrasco da condição feminina admirado pela mídia. 
Marilena

N
o Brasil, aventureiras como Anita Garibaldi, Chica da Silva, a mais recente, Chiquinha Gonzaga e logo Rose Marie Muraro. Vi Norma Benguell, Leila Diniz, Ruth Escobar, Odete Lara perfiladas com Chico, Vinicius, Caetano, Gil e padres entoando palavras de ordem contra o cruel AI-5, em 1968, na chamada “passeata dos 100 mil” - naqueles tempos raro ver a multidão encarar os longos cassetetes de madeira dos cavalariços ou os de borracha e coturnos com golpes curtos enevoados pelo gás spray (Sidney Miller, ícone de festivais, lançou “duas doses de ácido lisérgico / ou uma bomba de gás lacrimogênio / qual das duas que você prefere / na sua linda tenda de oxigênio”?). A mulher brasileira já não era mais aquela, servil, opinião só quando lhe permitiam, moldada à do macho: queria vida própria e poder traçar o seu destino, ganhar régua e compasso, como disse Gil. 
Trabalhei com a Paraibana Luiza Erundina e mais próximo ainda da colega titular de filosofia da USP Marilena Chaui – incompreendida até por alas da esquerda por ser uma líder inconteste na condição de ideóloga genial. (Em uma reunião com artistas do Municipal um cretino disse que ela não sabia nada de música. Marilena: que tal se começarmos com uma digressão sobre o papel da mulher nas óperas de Mozart? Cai o pano) 

D
as que conheci na adolescência, dos amores platônicos aos beijos roubados mutuamente, a beleza sempre acima de tudo. Mas tinha de ser uma beleza angelical, feminina, mariana, que brotava em nossos sonhos: a expressão, as palavras, o charme e a loquacidade com que seduziam a rapaziada nas quedas de braços verbais e disputas. Pouca ou nenhuma maquiagem, porque para elas o show apenas era, nunca terminou: apenas o “doce balanço, a caminho do mar”, obra-prima de Vinicius e Tom composta no antigo Bar Veloso de Ipanema, point dos bardos, quando a poesia era o caminhar, as pinceladas das marcas brancas no desenho caprichoso do sol escapando  tímidas das alças do maiô, sereias penteadas pelo coiffeur das belas mechas, o vento. Eram desprendidas, independentemente de serem loiras, negras ou cafuzas! (Ao menos uma vez tropecei na antipsiquiatria, em Althusser, Reich, Marcuse - ponto: ou iria atrás de livros e filmes ou elas com sua cultura me devorariam como esfinges). Não eram ainda dessas brasileiras que depois nasceriam em parte da futilidade do analfabetismo funcional promovido pela TV. Enquanto isso, muitas buscam hoje o poder, a igualdade de condições domésticas, profissionais e acadêmicas ao par com os homens, deles ouvindo ‘salve Maria, salve a mulher’!


sexta-feira, 5 de março de 2021

"NÃO, TITIA, EU NÃO TÔ COM LEUCEMIA!"

 

Foto: (crushemhifi.com)

Sucesso de Rita Lee e Roberto de Carvalho em 1985, este era o refrão da nona e última faixa do álbum “Vírus do Amor” da dupla. O vírus HIV, responsável pela Aids, surgiu por aqui em 1982, e naquele ano transformou-se em grande ameaça para a juventude, principalmente. A doença, que parecia imbatível e hoje permanece controlada após décadas, foi tornada bandeira de luta do novo regime democrático de 1985 contra o passado da ditadura. O avanço inicial sem controle do HIV ainda causou muitos estragos, ocasionando mortes de grandes artistas, mas tornou-se uma ameaça sob controle.

Rita Lee, uma linda moça da Pompeia – bairro de classe média de São Paulo – que havia estourado com o Tropicalismo junto aos irmãos Sérgio e Arnaldo Baptista, tinha rosto de boneca e corpo de princesa, e seduzia plateias com sua voz soprano de belo timbre a liderar sucessos como “Ando meio Desligado”, os outros dois membros do trio frequentemente a encorpá-la em falsete. Porém, o sucesso é sempre cruel, e as fofocas da “Candinha” – quem se lembra? – dos fãs ou rivais aliados da falta do que fazer são palco de batalhas de armas venenosas. Se Rita havia engordado ou emagrecido tantos anos depois, pouco me importava, mas a língua alheia se incomodava, e muito. Como toda jovem mulher da sua idade, cuidava-se e atraiu especulações várias, maldade que ela ironizou no rock que dá título a este artigo, dando personagem a outra doença implacável e ainda sem cura, a leucemia, o popular “câncer no sangue”.

(Esquina Musical)

Como Rita, muitos outros artistas também foram vítimas – senão de alguma doença, da língua ferina do povo. Não se podia emagrecer, menos ainda rapidamente, o que é comum nos dias de hoje por conta de lipos, plásticas e malhação. O certo é que o estigma do doente de Aids do passado passou a avançar sobre pessoas notórias, a exemplo do Cazuza, que só faltou se autoimolar cantando, no final já sendo carcomido pela doença – triste desfecho para a carreira de um rapaz da elite carioca, ex-aluno de colégio jesuíta e dono de uma cabeça privilegiada.


Ei, menina, dê uma olhada naquele velho lá na frente, diria hoje alguém para sua vizinha de ônibus Rio-SP. Reparou que ele é idoso, e que por baixo da máscara cirúrgica parece às vezes conter uma tosse reprimida, perguntaria o sujeito já afirmando, sem esperar resposta. Viu que ninguém sentou-se ainda ao lado dele, que ele mesmo procurou isolar-se, insistiu outra vez quem acompanhava uma interlocutora incrédula. Só pode ser Covid, aposto, despejou finalmente de vez o interlocutor atuante, fazendo sua companheira de viagem deslocar-se para um setor mais distante do ônibus.

A cena e monólogo acima – não há um diálogo, e sim uma reafirmação insistente e unilateral – são fictícios, mas poderiam estar acontecendo agora em muitos lugares no país. Há, na carona do embate trazido pela pandemia, o estímulo a uma outra prática, tão perniciosa quanto o discurso imaginário do ônibus: eu vou à praia e à balada, e sem máscara protetora, porque sou macho (ou seu equivalente feminino), porquanto eu não estou doente e me porto assim. Ou ainda diz que defesa e isolamento, distanciamento, vacina, são coisas de fresco. É um tipo de ataque de que os iludidos servos dos arautos de uma falsa liberdade sanitária se servem para se exibir, ao contrário do que parece, em sua autodefesa. Mas no fundo há o medo.



A falsa ilusão dos antivacinas, negativistas e alguns neologismos agregados leva a um outro lado, tão arriscado quanto: estou vacinado, o bicho não me pega (esquecendo-se de que pode infectar os outros, e que sua imunidade tenha se perdido entre os 25% a 61% dos que tiveram sua expectativa de proteção dada por contágio ou vacina contra a cepa anterior, conforme os melhores centros internacionais em recentes notícias sobre o novo e poderoso “vírus brasileiro”).


Vive-se ao som do canto das sereias de cá e de lá. Se no Reino Unido um rigoroso lockdown e guerra de vacinação conjuntos decretados por Boris Johnson trouxeram fôlego suficiente para abrir escolas infantis em breve, seguindo seus cientistas, há um aplauso mesmo que disfarçado dos que são politicamente contra o populista de direita Boris, mas sabem reconhecer seu acerto na condução da luta contra a pandemia. São números públicos, que a imprensa e fiscalização controlam, não há manipulação. O primeiro-ministro sabe que de suas atitudes e seu discurso dependem a aprovação ao seu governo – mesmo que não haja posto mais alto a cobiçar do que manter-se no cargo de premiê britânico.


Usei inicialmente, no caso da Covid-19, a comparação com o início da Aids no país e o preconceito que atacou uma artista da MPB, sob uma ótica diferenciada, e apenas do ponto de vista social e de massas, nunca entre dois vírus absolutamente diversos. São máscaras atribuídas a grupos sociais por outros grupos ou microgrupos, prática que em nada contribui para a derrocada da doença.

(ANESP)

Em suma, só há dois lados, no caso da Covid-19: o enorme grupo responsável e equilibrado que pondera sobre seu comportamento social, vacinas e precauções sob a orientação de experts do mundo inteiro, ou a infantil rebeldia, seja que nome for, que não fará o vírus vencer, mas retardará a cura para a maioria e para si mesmo e os seus. Cuide-se, cuide dos outros, vacine-se quando chegar a hora, mantenha os cuidados protocolares mesmo depois de imunizado até que os números indiquem que estamos realmente seguros e seja dado salvo-conduto para voltarmos à vida de antes.


terça-feira, 2 de março de 2021

SONHANDO A SAÚDE E AS ESCOLAS, A FRÁGIL ECONOMIA

 


Domingo passado tive de dar um pulo no PA hospitalar, nada demais, coisa trivial. Na indefectível espera, economizando bateria de celular, observava. A porta que abre, a porta que fecha e o gentil recepcionista que oferece a cadeira de rodas para os que têm problemas e as recolhe dos que já lhe fizeram uso. Da cadeira à recepção, o papelzinho do protocolo (que alguém abasteceu na máquina), mais a espera até a triagem necessária, a mocinha atendendo com perguntas, tomada de pressão, oxigenação, temperatura, que venha o próximo. Finalmente, a espera da consulta, um casal de idosos se amparando, outro mais novo se deleitando na rede social, e outros que se pudessem estariam embalados por Morfeu em outras redes, dos bons devaneios. Veio meu atendimento, depois de outro e antes de mais outro (e de outro que se lhe seguiu). Processo reverso, a baixa na recepção, o adeus ao homem das cadeiras de rodas, home sweet home.

Por trás daquele pessoal na vanguarda do atendimento há funcionários da limpeza e da assepsia, de arrumação, e nos quartos lá em cima trabalho dobrado, nos casos de internação, sem falar nos aposentos das UTIs e na roda-viva do setor que cuida da pandemia, com pessoal e cuidados triplicados. A cada canto arredondado do piso do chão junto à parede, o que não se vê e talvez nem se imagine.

Há o pessoal de cirurgia, clínicos, os de laboratório e farmácia, os motoristas e seus assistentes de viagens; há um grande número de enfermeiras e enfermeiros que fizeram da luta profissão, servindo aos pacientes com abnegação e carinho, suportando o pior quase sempre com um sorriso (ou não, lembrando Chico: “se uma nunca tem sorriso / é pra melhor se reservar / e diz que espera o paraíso / e a hora de desabafar”. É a imensa malha da saúde a trabalhar pelos cidadãos - melhor chamá-la de rede mesmo, pela extensão e organicidade. Não se pode esquecer do galo de Tecendo a Manhã, do João Cabral: “ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe o grito que um galo antes / e o lance a outro / e de outros galos / que com muitos outros galos se cruzem / (...) / para que a manhã / desde uma teia tênue /se vá tecendo (...) / E se encorpando em tela / entre todos / se erguendo em tela, onde entrem todos / se entretendendo para todos / no toldo (a manhã) / que plana livre de armação”.

Outro universo, agora estamos em uma escola. As recepcionistas atendem as crianças, medem-lhes a temperatura, dão instruções sobre como se portarem, distanciamento, álcool em gel, máscaras, prestando máxima atenção no uso desses protetores. Internamente, as carteiras da salas já promovem as distâncias protocolares, inspetores observam e controlam. Para os que estão em casa, em revezamento, técnicos preparam as câmeras que filmarão as aulas. Amanhã troca de turma. Tudo funciona como um relógio para que as crianças e jovens não se decepcionem e retomem seus estudos escolares com vigor e saúde, rumo ao futuro.

Ambos os universos descritos acima, o da saúde, em pleno funcionamento em alguns lugares, e o da educação, especialmente, são quase miragens. O mundo da saúde que citei é uma exceção, há incontáveis cidades que sequer possuem uma UBS, pessoas infectadas pela Covid-19 são colocadas em filas de espera por uma vaga ou... Já o belo esquema escolar mal atingiria seu início, pois há municípios e lugarejos onde sequer há luz, esgoto encanado, e a informática é um sonho de uma dessas noites de verão. Talvez seja a realidade de vários países europeus, mas não do nosso. Não sonhemos com os pés lá fora.

Mas como promover as tão desejadas melhoras na economia sem libertar o povo da sombra do jugo do carrasco pandêmico? Sangrando os cofres públicos para rápido consumo sem explicar claramente de onde virão os recursos, em irresponsabilidade fiscal? Distribuir ao Zé Povino o suficiente para que uma família deguste sua ração direto de uma panela com as mãos por alguns dias?

Quem sabe deixar de comprar satélites absolutamente fora de prioridade e sem licitação, manter estrito rigor nas luxuosas compras da Forças Armadas, evitar maiores gastos públicos além dos rigorosamente necessários? Por que entronizar, em postos de comando como ministérios, oficiais de 4 estrelas absolutamente sem conhecimento na área, como acontece na Saúde, atravancando negociações externas e arrastando as internas seguindo birras políticas e preferências ideológicas, com claro prejuízo à nação? Derruba-se as bolsas com interferência direta na Petrobras, que, ao contrário do que parte da mídia propala, não é uma estatal direta, como uma autarquia, e sim uma empresa de capital aberto, da qual o governo é principal acionista – uma sociedade anônima. O mundo inteiro investe – ou investia - ali, e a despeito de falhas graves em todos os governos recentes, conseguia-se equilibrar as contas. Com as ações do mundo inteiro em frequente alta – EUA (Nasdaq), Reino Unido (FTSE), e Japão (Nikkei), o Brasil joga sozinho no vermelho, quase sempre. Certo, paliativos encobrem a incompetência brasileira na questão pandêmica, mas são passageiros quanto um auxílio chinfrim de duração como o amor de Vinicius: “que não seja imortal, posto que chama / mas que seja infinito, enquanto dure”. E depois?

Jogos claramente de campanha, buscando favorecer eleitores caminhoneiros. Aos outros, beneficiários de uma pequena mesada que mal lhes sacia a fome por três meses, e a fundamental exibição de poder: “eu tenho a força”. Como sairemos dessa?