Do latim salus, utis, no sentido de ‘salvação, conservação da vida’ [Houaiss], de onde ‘saudar’. Em várias línguas latinas, como o português, a palavra soa no mesmo tom: salud, em espanhol e salute, italiano, e costuma associar a nossa mente àquele brindar de champanhe, festas, coisas alegres, entretenimento fantasiado de alegria. Desejamos saúde também nos aniversários como o bem mais precioso da nossa existência, e antes do sucesso na carreira ou coisas materiais. Há quase um século, Mário de Andrade, o do Macunaíma, ironizou: “muita saúva e pouca saúde os males do Brasil são” (interprete livremente a “saúva” como qualquer mal que destrói, e saúde nosso bem) maior).
Ser saudável, na concepção pós-moderna, é ser ‘sarado’, malhador, ter o corpo moldado, barriga de tanquinho, o que não impede este falso ideal romano de escamotear algum mal ou doença. Descartes (1596-1650) discorreu sobre o dualismo mente-corpo, abrindo nova visão sobre o monismo dos gregos - a unidade das partes. No passado, o poeta romano Juvenal (55/60 a 127 d.C. - ilustração), em sua Sátira X, tornava unas as duas esferas da vida: orandum est ut sit mens sana in corpore sano (ore por uma mente sã em um corpo são). Visão hoje nada ocidental, faz mais sentido entre os budistas, os taoístas e hinduístas. Nossa cultura foi bastante impregnada de filosofias como o hedonismo, o prazer como bem maior, hoje transbordando na indústria do consumo, do sexo como máquina de vender e de sentimentos materialistas como posse, poder e luxo.
Depois desta breve introdução, um assunto de extrema gravidade: no mundo, o Brasil, em particular, vive o que será o pior desastre sanitário, a pior das pandemias de sua história. Aqui morre-se nas filas dos corredores engarrafados de hospitais, faltam insumos, equipamentos e cilindros de oxigênio. Com o número de contágios e leitos ocupados, doentes internados ou em espera e óbitos em expansão, ainda falta pessoal, em todos os níveis de atendimento. Cenário dramático? Não, teratológico – dos entes monstruosos, do demo mesmo. Salve os profissionais engajados que purgam esse dia a dia, que têm um amor profundo pelo que fazem, arriscam suas vidas pela do próximo. Salve os voluntários ou empresas que, em diversos lugares, sozinhos ou organizadamente, em grupos, arrecadam alimentos como podem em quantidade ainda bastante tímida para enfrentar esta guerra. Dão de comer a vítimas da fome, aos desvalidos, descalços, aos que vivem em situação de rua, desempregados e famílias esfomeadas, por mais modesta que a ajuda seja. Que quadro dantesco ruiu sobre um país que merece tudo, pelo seu povo, sua linda natureza tão maltratada, sua miscigenação, riqueza única que se traduz nas artes como a pintura, a música, a dança, nas manifestações populares e tradições folclóricas!
Em sua longa experiência de luta contra endemias, epidemias e pandemias, o Brasil alcançou um pódio, o mundo inteiro reconhece. Devemos à luta de Oswaldo Cruz, desde 1904, essa tradição nacional da vacina como instituição e bandeira, o que nos faz admirados mundialmente. Recebi as vacinas de praxe, mesmo porque sem elas não poderia ser matriculado em escolas, e assim também foi com meus filhos. Essa cultura da vacina, como tantas outras iniciativas de sucesso, a exemplo do uso obrigatório de cinto de segurança, é parte de nossas vidas, e não está sujeita a ideologias, crenças, manias ou medos infundados, – muitas vezes sob estímulo de uns poucos. Se no início foram medidas coercitivas, hoje o dever tornou-se direito, os resultados estão na história e seus efeitos revertidos em prol da vida.
Há um aparato monumental a gerir a Saúde no país: ministério, secretarias, agências. A máquina pública - e louvemos nosso SUS, muitas vezes negligenciado - é gerida por pessoas, e delas depende: de sua competência, expertise, vontade e independência como agentes técnicos especializados. Para piorar, em nível federal, onde as ações deveriam ser centralizadas, em pouco mais de dois anos já tivemos 4 gestores: Mandetta, médico e político com vida útil de um ano e quatro meses que suportou os conflitos com as ingerências leigas e disparatadas do executivo; Teich, um médico tímido em tudo que ‘durou’ 29 dias; um general de exército, Pazuello, que não vai completar um ano na cadeira e cujo misterioso e longo processo de exoneração e substituição compromete mais ainda a conjuntura das operações. No lugar dele, um outro médico, Queiroga, forjado na ideologia oficial (se é que se pode chamar de ideologia), vem tentando maquiar com dúbias declarações o que realmente veio fazer: mais do mesmo. Mais da mesma negligência, inação, falta de prumo e rumo e nada da logística que se espera enérgica e contundente para combatermos a praga do século. Não será rezando por essa “cartilha”, a mesma do antecessor, como ele mesmo repetiu, que veremos alguma luz. Senhores, deixem as orações conosco e trabalhem.
Ante previsões apocalípticas de cientistas daqui e do exterior de até 4 mil óbitos diários no país em coisa de dois meses, o que nos restará? Encolhermos ante o medo até nos transformarmos em insetos, como na Metamorfose de Kafka, ou, em um ímpeto de loucura, lembrando Caetano, “abrir as janelas para que entrem todos os insetos” e flertar com o vírus? Pior ainda, como no tema do filme M.A.S.H.: “suicídio é indolor, ele traz muitas opções, e eu posso usá-las ou não, se eu quiser”? Nunca! O bem mais precioso do universo é e será a vida. Seguiremos na luta pela saúde, não importam os nomes das saúvas.