Tiradentes |
Enfim, lambendo nossas feridas, como se diz, termina neste domingo uma longa e belicosa disputa. Face a face com uma obrigação a ser cumprida com orgulho, participaremos da escolha mais importante da última década. É muito menos a opção por um nome, um rosto, é o que ele traz na bagagem: precisamos do mapa do caminho que, espera-se, deverá mudar a régua do país. Muito deverá acontecer, embora no horizonte haja poucas chances de avanços reais - difíceis de serem colecionados – e muito mais riscos. Uma falha será um tiro n’água, bala perdida com sua errante trilha de espuma perfurando o oceano. Ecoa a frase do inconfidente, repetida na peça Arena Conta Tiradentes (1967), de Augusto Boal: “Hei de armar uma meada tal que não se há de desembaraçar em dez, vinte ou cem anos”.
Constituinte de 1988: o final |
Sofremos até hoje com erros do Império, da inevitável abolição, assim como os dos tempos da proclamação da República, do golpe de Deodoro à ditadura de Floriano Peixoto, o “marechal de ferro”. Depois, os desmandos de Getúlio e os males do longevo golpe de 1964; a censura e o recrudescimento via AI-5 até a conquista da “Constituição cidadã” de 1988, que nos libertou dos entulhos do passado, consolidou o Estado Democrático e os direitos e garantias individuais em todos os 79 incisos do Artigo 5°. Amargarmos a Carta do Império, de 1824, passamos pela de 1891 e depois as de 1934, 1937, 1946 e 1967 - esta última já na ditadura pós-64, sob a qual padecemos silentes e trôpegos por um ano, quando um ato institucional nos tirou o pouco oxigênio que restava. Duas dessas Constituições foram imposições autocráticas: a imperial, de 1824, e a de Getúlio, em 1937. A de 1934 tornou obrigatório o voto aos maiores de 18 anos e concedeu “generosamente” o direito às mulheres – enquanto vedava o sufrágio aos “mendigos e analfabetos” - cidadãos como nós, mas devidamente excluídos da sociedade.
Constituição de 1937: o golpe de Getúlio |
Com a Constituição do Estado Novo, em 1937, Getúlio rasgou, manu militari, a de 1934, promulgada a duras penas por uma Constituinte. O ditador suprimiu os partidos políticos, direitos e garantias, a liberdade de imprensa e partidária, e concentrou nas suas mãos todos os poderes. Mesmo se ora votamos e ora não, permaneceu riscado a ferro e fogo o amargor dos grilhões físicos ou da censura à opinião. O Brasil sempre esteve fadado a engolir arroubos autocráticos, varrendo para o lixo da sadia liberdade dos indígenas em suas origens à dos negros então livres da África - sequestrados para o trabalho desumano e cruel em nossos engenhos, fazendas e cidades. Tirando fora uma existência anterior desconhecida, que se esvanece na fumaça dos tempos pré-descobrimento, o país ainda vive a plena liberdade e os direitos garantidos após 1988, ano a que devemos boa parte do que usufruímos como cidadãos - malgrado a fome, a injustiça social, a devastação de florestas, a rapinagem das riquezas e uma das piores distribuições de renda do mundo.
Caronte |
Tudo isso serve à reflexão sobre o direito que exerceremos no dia 30 de outubro: o de escolher os mandatários da nação e do estado para os próximos quatro anos. Voto, do latim votum, é promessa, desejo, palavra que surge em nossa língua de tantas formas, com sentidos os mais diversos, rumando à mesma direção: voto de castidade e de pobreza, de boas festas ou de felicidade; voto por acórdão, unânime, de Minerva, de qualidade ou por maioria simples; o ex-voto, que é oferenda pela cura de uma doença por um santo milagreiro que é cura ou jura, coisa entranhada em nossa cultura. Escolheremos os dirigentes que nos guiarão nos anos vindouros – lembrando a mitologia grega: Teseu nos conduzindo pelo labirinto ou Caronte em seu barco sabe-se lá para onde? Soa, ao fundo, o Va, pensiero, sull’ali dorate, belíssimo coro da ópera Nabucco, de Verdi, sobre a libertação do povo hebreu escravizado na Babilônia, hoje um segundo hino italiano (“Vá, pensamento, sobre as asas douradas”). Há que serem líderes que olhem de verdade para os mais pobres, os descalços, os que têm fome, os que não possuem onde morar, pois são esses que precisam mais que nós da opção escolhida.
Ex-votos |
É de se lamentar o uso e abuso das notícias falsas, as fake news, ofensas, o acobertamento “nada canônico” – diria meu pai - de fatos e dados; a artilharia de bits e bytes no anonimato de uma tecnologia que cada vez mais foge ao controle da sociedade - pior, cujo futuro sequer imaginamos. Vimos avançarem novas palavras e expressões: bots, deep fakes e cyberwar, fora as já velhas hackers, likes e zap (esta última, redução mais fácil do que o original, What’sApp, trocadilho com a expressão what’s up? - “o que é que há?” Sai o up, entra o app, de application).
Falsos padres |
Alguém se arrisca a prever um cenário midiático para 2026? Com tudo isso e os gabinetes do bem ou do ódio, com o concurso de apologias ou execrações a Igrejas que nem deveriam ter entrado no tabuleiro, candidatos exóticos, ataques violentos aos tribunais superiores - e recursos a essas instâncias quando conveio -, faltou ética e acima de tudo civilidade a personagens dessa cruzada surreal. Basta relembrar como têm sido esses dias.
É chegado o momento de, com o simples pressionar de um dedo, escolhermos os melhores. Na cabine, lá com nossos botões, sem mentiras, mídia e pressões a nos atormentarem, finalmente cravaremos a decisão final para presidente e governador. Mas atenção, seremos cúmplices dos que escolhermos! Não é um jogo, mas se acertarmos, a sorte estará lançada. Porém, se errarmos...