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sexta-feira, 28 de outubro de 2022

REFLEXÕES SOBRE O VOTO

 

Tiradentes

E
nfim, lambendo nossas feridas, como se diz, termina neste domingo uma longa e belicosa disputa. Face a face com uma obrigação a ser cumprida com orgulho, participaremos da escolha mais importante da última década. É muito menos a opção por um nome, um rosto, é o que ele traz na bagagem: precisamos do mapa do caminho que, espera-se, deverá mudar a régua do país. Muito deverá acontecer, embora no horizonte haja poucas chances de avanços reais - difíceis de serem colecionados – e muito mais riscos. Uma falha será um tiro n’água, bala perdida com sua errante trilha de espuma perfurando o oceano. Ecoa a frase do inconfidente, repetida na peça Arena Conta Tiradentes (1967), de Augusto Boal: “Hei de armar uma meada tal que não se há de desembaraçar em dez, vinte ou cem anos”.

Constituinte de 1988: o final 

S
ofremos até hoje com erros do Império, da inevitável abolição, assim como os dos tempos da proclamação da República, do golpe de Deodoro à ditadura de Floriano Peixoto, o “marechal de ferro”. Depois, os desmandos de Getúlio e os males do longevo golpe de 1964; a censura e o recrudescimento via AI-5 até a conquista da “Constituição cidadã” de 1988, que nos libertou dos entulhos do passado, consolidou o Estado Democrático e os direitos e garantias individuais em todos os 79 incisos do Artigo 5°. Amargarmos a Carta do Império, de 1824, passamos pela de 1891 e depois as de 1934, 1937, 1946 e 1967 - esta última já na ditadura pós-64, sob a qual padecemos silentes e trôpegos por um ano, quando um ato institucional nos tirou o pouco oxigênio que restava. Duas dessas Constituições foram imposições autocráticas: a imperial, de 1824, e a de Getúlio, em 1937. A de 1934 tornou obrigatório o voto aos maiores de 18 anos e concedeu “generosamente” o direito às mulheres – enquanto vedava o sufrágio aos “mendigos e analfabetos” - cidadãos como nós, mas devidamente excluídos da sociedade.

Constituição de 1937: o golpe de Getúlio

C
om a Constituição do Estado Novo, em 1937, Getúlio rasgou, manu militari, a de 1934, promulgada a duras penas por uma Constituinte. O ditador suprimiu os partidos políticos, direitos e garantias, a liberdade de imprensa e partidária, e concentrou nas suas mãos todos os poderes. Mesmo se ora votamos e ora não, permaneceu riscado a ferro e fogo o amargor dos grilhões físicos ou da censura à opinião. O Brasil sempre esteve fadado a engolir arroubos autocráticos, varrendo para o lixo da sadia liberdade dos indígenas em suas origens à dos negros então livres da África - sequestrados para o trabalho desumano e cruel em nossos engenhos, fazendas e cidades. Tirando fora uma existência anterior desconhecida, que se esvanece na fumaça dos tempos pré-descobrimento, o país ainda vive a plena liberdade e os direitos garantidos após 1988, ano a que devemos boa parte do que usufruímos como cidadãos - malgrado a fome, a injustiça social, a devastação de florestas, a rapinagem das riquezas e uma das piores distribuições de renda do mundo.

Caronte

T
udo isso serve à reflexão sobre o direito que exerceremos no dia 30 de outubro: o de escolher os mandatários da nação e do estado para os próximos quatro anos. Voto, do latim votum, é promessa, desejo, palavra que surge em nossa língua de tantas formas, com sentidos os mais diversos, rumando à mesma direção: voto de castidade e de pobreza, de boas festas ou de felicidade; voto por acórdão, unânime, de Minerva, de qualidade ou por maioria simples; o ex-voto, que é oferenda pela cura de uma doença por um santo milagreiro que é cura ou jura, coisa entranhada em nossa cultura. Escolheremos os dirigentes que nos guiarão nos anos vindouros – lembrando a mitologia grega: Teseu nos conduzindo pelo labirinto ou Caronte em seu barco sabe-se lá para onde?  Soa, ao fundo, o Va, pensiero, sull’ali dorate, belíssimo coro da ópera Nabucco, de Verdi, sobre a libertação do povo hebreu escravizado na Babilônia, hoje um segundo hino italiano (“Vá, pensamento, sobre as asas douradas”). Há que serem líderes que olhem de verdade para os mais pobres, os descalços, os que têm fome, os que  não possuem onde morar, pois são esses que precisam mais que nós da opção escolhida.

Ex-votos



É
de se lamentar o uso e abuso das notícias falsas, as fake news, ofensas, o acobertamento “nada canônico” – diria meu pai - de fatos e dados; a artilharia de bits e bytes no anonimato de uma tecnologia que cada vez mais foge ao controle da sociedade - pior, cujo futuro sequer imaginamos. Vimos avançarem novas palavras e expressões: bots, deep fakes e cyberwar, fora as já velhas hackers, likes e zap (esta última, redução mais fácil do que o original, What’sApp, trocadilho com a expressão what’s up? - “o que é que há?” Sai o up, entra o app, de application).

Falsos padres

A
lguém se arrisca a prever um cenário midiático para 2026? Com tudo isso e os gabinetes do bem ou do ódio, com o concurso de apologias ou execrações a Igrejas que nem deveriam ter entrado no tabuleiro, candidatos exóticos, ataques violentos aos tribunais superiores - e recursos a essas instâncias quando conveio -, faltou ética e acima de tudo civilidade a personagens dessa cruzada surreal. Basta relembrar como têm sido esses dias.


É
chegado o momento de, com o simples pressionar de um dedo, escolhermos os melhores. Na cabine, lá com nossos botões, sem mentiras, mídia e pressões a nos atormentarem, finalmente cravaremos a decisão final para presidente e governador. Mas atenção, seremos cúmplices dos que escolhermos! Não é um jogo, mas se acertarmos, a sorte estará lançada. Porém, se errarmos...

 

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

TIPOIAS, SISTEMAS PÚBLICOS DE SAÚDE, PARALELISMOS

 

(CNN)

Às
vezes, rascunhando um texto, somos atropelados por alguma ideia. Daí nos lançamos a pesquisar outros problemas, e quem sabe ainda aprender alguma coisa mais de nosso idioma. Explico. Ao sentar-me para escrever, fui desviado do tema escolhido: minha filha Marta me liga de Londres e avisa que Thomas, meu netinho de 8 anos, fraturou a clavícula. Pânico: assim de longe, tudo parece visto com lupa, a mente não tem limites. Conhecendo o NHS, sistema de saúde londrino, fiquei mais tranquilo, e esperei (o National Health System foi criado no pós-guerra para acesso irrestrito e gratuito de todos os cidadãos. Medicina privada existe, mas é para uns raros aquinhoados que, na emergência, correm para o NHS, claro).


Exame
geral, chapa de raios-x, laudo: fratura na clavícula. Nada grande, chororô, muita dor, um sling de gaze e pronto. A médica disse que ele poderia tirar para dormir, houve quem dissesse que não. Eu, daqui, fiquei com meu bom senso e a palavra dela – são pessoas que inspiram preparação e confiança - e a lógica: o sling é um suporte para retirar o peso do braço do ombro quando sentado ou de pé. Daqui mesmo, de Tatuí, comprei um sling especial, em uma grande loja de departamentos de Londres.  Uma tipoia chique, que abriu caminho para uma nova lição: eu sabia de slingshot, conhecido aqui pela forma abrasileirada de ‘estilingue’ - atiradeira, ou ainda bodoque. O termo remete a funda, uma faixa que, girada no ar, lança uma pedra, tal como fez Davi para derrubar Golias.


Em
menos de 24h, o sling que comprei chegou na residência da minha filha, para conforto do moleque. Confortável, leve, ajustável, fácil de colocar e tirar. Segunda lição: de onde tipoia, se em inglês é sling? Dicionário. Claro, tipoia só podia vir do tupi, ti’poya, “barraca feita de folhagem”, dada a semelhança com a cobertura de uma oca. A palavra gerou outras, tão rica que é nossa língua portuguesa brasileira, acepções como “espécie de rede com que as indígenas mantinham os filhos às costas ou escanchados nos quadris”. Notável! Refere-se a apoios de tamanhos diversos, e eis enfim o ‘nosso’ significado: “tira de pano que se amarra ao pescoço para apoiar braço enfermo”. Quanta riqueza, quanta história aprendemos com os indígenas brasileiros de todas as etnias, quanto vocabulário! Se pesquisarmos a fundo, há uma vastidão de palavras e costumes que enriquecem nossa cultura e a dos que estavam aqui antes de nós (só temos a agradecer e pedir desculpa, mea culpa, pelo descaso ou violência de alguns).



stoneclinic.com

Volto
ao Brasil de doze anos atrás, quando meu filho Pedro, hoje engenheiro, era um meninão uns 4 anos mais velho do que meu neto hoje. Também jogando futebol, em São Paulo, caiu, machucou-se, foi levado a um hospital particular distante, na Zona Sul, e... Clavícula fraturada. A médica que o atendeu disse que teria de operar, e passou a descrever com detalhes como seriam as cirurgias (sim, duas, uma para fazer o serviço e outra para desfazer) – isso, na frente do menino, já pálido! Corri daqui para São Paulo e levei-o a uma clínica especializada na Vila Clementino. Não, nada de cirurgia, não é o caso, só tipoia, disse o médico. Trouxe-o a Tatuí, onde ele morava comigo, e mais uma consulta, com um ótimo ortopedista da cidade (e há vários!): tipoia. Nossos médicos falam a língua dos tupis-guaranis, quem diria. Assim, livrei-me do procedimento invasivo da médica de São Paulo, além das implicações que poderiam advir para o garoto, inclusive psicológicas, uma vez que ele já teria passado por uma torturante cirurgia imaginária ao assistir à descrição pormenorizada do procedimento.  Mas não. Com a tipoia, algum tempo depois tudo isso era assunto esquecido.


Fora
a parte léxica, houve a visão médico-hospitalar de dois países com sistemas públicos diferentes, gratuitos e para todos (a rede privada inglesa é para a mais casta elite, apenas). O NHS do Reino Unido – que na verdade são três - os NHS England, Scotland e Wales - foi criado em 1948, três anos após o fim da Segunda Guerra, e é 100% custeado com dinheiro público. No Brasil, quarenta anos depois, a Carta de 88, chamada “Constituição Cidadã”, criou o Sistema Único de Saúde, à imagem e semelhança do NHS. O sistema inglês consome 45% dos gastos em bens e serviços de Saúde (fonte: ONS, 2001 Census). As despesas governamentais chegam a R$ 14,5 bi (câmbio de 7/10). Quanto a nós, o site Transparência Brasil do mesmo ano (2001) pede desculpas mas... está “fora do ar”. Diz o federacaors.org.br, o Ministério da Saúde, principal mantenedor, o SUS recebeu um corte de 20% no orçamento de 2022.

Klinik NHS

Se
o nosso sistema público ainda não chega àquele NHS dos bons tempos, é pura questão financeira: orçamento cortado, rendimentos baixos, falta de equipamentos e aparelhos de todos os tipos, instalações, medicamentos e insumos. Lá, os salários vão do básico, R$ 14.130,00, ao do especialista, R$ 24.290,00, pelo câmbio de 7/10 (fonte: The Complete Guide to NHS Doctors, in BMJ Careers, 22/08/22). Isso, fora extras, bônus e gratificações. Mesmo considerando o custo de vida inglês, a diferença é gritante.


Em
decorrência dessa fratura na clavícula vim a descobrir que o sling inglês nada mais é do que uma tipoia ajustável, de material sintético. A origem da palavra tipoia é riquíssima, e traz à lembrança o grande Mário de Andrade, com sua ironia modernista: “Você sabe o francês singe, mas não sabe o que é guariba? Pois é macaco, seu mano, que só sabe o que é da estranja”.

sexta-feira, 7 de outubro de 2022

DEBATE: DISCUSSÃO OU POEMA

em tom satírico e alegórico?


Para discorrer sobre o debate, busquei o étimo de palavras e expressões. Além dos equívocos de que poderia ser vítima, aumenta a compreensão da matéria. Recorri ao basilar, com o etimologista Deonísio da Silva (De Onde Vêm as Palavras, ed. Lexicon). Diz ele que ‘debate’, com o sentido que tem em uma disputa eleitoral, vem do inglês to debate. Para o Oxford Dictionary, “uma discussão formal sobre um tema em um encontro público ou Parlamento”. “No debate são alegadas razões a favor e contra determinado tema”, completa Deonísio. E há outra acepção, que pode ser novidade para o leitor como foi para mim: “...poema dialogado, de tom satírico e alegórico, muito em voga na Idade Média”.


O Houaiss cita débat, do francês do século 13: “controvérsia, querela”, e entre seis acepções para a palavra destaco uma que serve de forma especial a este caso: “agitar veementemente o corpo e/ou membros (ou qualquer espécie de apêndice locomotor), na tentativa de livrar-se de sujeição física <a mosca debatia-se na teia da aranha>”. Sobre esses dois sentidos nos debruçaremos.


O debate de 29/09 teve de tudo, um pouco do sentido emprestado dos americanos e da alegoria da mosca na teia de aranha – ou, quem sabe, “eu sou a mosca que pousou na sua sopa”, do Raul Seixas. Entretanto, pouco debate se viu, e se alguém tentou, o fez para si, sem interessar a resposta – arte em que é mestre Ciro Gomes. A ironia de Bolsonaro a Lula, chamando-o de ex-presidiário – “indivíduo que cumpre pena em presídio”, segundo o Houaiss –, além de equivocada foi inoportuna. Sem entrar no mérito, Lula não passou 580 dias em um presídio, mas numa sala da Superintendência da P. F. em Curitiba, condenado em segunda instância no TRF-4 e liberado pelo STF (proibição de prisão imediata após condenação em segunda instância). Inciso LVII do Art. 5º da Carta de 1988: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Não houve trânsito em julgado da condenação em sede de última instância recursal. Poderia ser chamado de “ex-preso”, mas ainda assim ironicamente, em um debate que deveria pretender-se uma disputa cordial entre senhoras e cavalheiros.

ofuxico.com

Fora intermitentes reprimendas do mediador William Bonner, houve desatinos e bravatas, com Simone Tebet chamando Soraya Thronicke de “Bolsonara”, pedindo logo depois perdão pelo ‘lapso’ – ora, ambas são colegas de anos de Senado e a segunda foi aluna da primeira... Soraya perguntou ao Padre Kelmon: “o senhor não tem medo de ir para o Inferno?” E eis uma dele: “Pessoas sem roupa, uma atrás da outra, com o dedo, né, você sabe aonde...” Soraya criou o mote para os memes mais populares: “porque o senhor é um padre de festa junina”.


Simone prometeu que os jovens que terminassem o ensino médio receberiam um prêmio de cinco mil reais, como se estudar fosse uma gincana premiada. Por sua vez, Lula, atabalhoado, deixou Kelmon invadir-lhe o tempo, e ainda o estimulou indiretamente, atiçando a discussão no seu turno. (Deveria ter deixado o púlpito, o Padre falando sozinho para microfones que seriam desligados).


Enfim, qual o papel que ‘Padre’ Kelmon estaria desempenhando no jogo (a serviço de quem?). Repetiu-se o questionamento sobre seu status clerical (negado em ofício público de 14/09 por Dom Tito Paulo George Hanna, arcebispo da Igreja Sirian Ortodoxa de Antioquia no Brasil). Bonner foi didático: “o senhor sabe que o debate tem regras e que o senhor concordou com elas?” Memes de todos os tipos e espécies tomaram as redes sociais por conta do ‘padre’. Desde vestimentas de festa junina, passando por montagens de Soraya ao lado de Kelmon junto a uma fogueira tendo como legenda a pergunta sobre o Inferno, um surto de criatividade. Se o debate perdeu em seriedade, a Internet ganhou em deboche e escárnio.

Sátira romana

Fico com a segunda definição do Deonísio da Silva: “tom satírico e alegórico, muito em voga na Idade Média”. A sátira seria, na literatura latina, uma espécie de poesia burlesca, cômica, contra instituições e costumes, um gênero que faz alusão à zombaria do coro satírico grego. A alegoria traduz ideias de maneira figurada, cada elemento disfarçando a realidade, mas representando-a. Quesito nos desfiles das escolas de samba, nas fantasias e carros alegóricos, também completa a ideia do termo.

Juan Muñoz: Conversation Piece

Kelmon foi a estrela da noite. Preparado nos bastidores pelo “filho 02”, tornou-se conversation piece: aquele objeto decorativo, geralmente um kitsch, que, colocado no centro da mesa, serve para puxar assunto quando chegam visitas do nada. Lula foi presidente duas vezes e era líder em todas as pesquisas (fora duas delas, fake, que invertiam os nomes na “pole”). Bolsonaro é o runner-up da corrida, Simone e Soraya são novamente senadoras e Ciro um experiente e eterno postulante que joga sozinho. Kelmon foi um outsider, e uma sátira de si mesmo. Presente o excesso de regras e candidatos, ausente a disciplina. Que tenha sido uma lição.


Terminado o 1º turno com grande abstenção (32 mi), Lula superou Bolsonaro em menos do que as pesquisas mostravam. Há um novo quadro, com expectativa de debates “olhos nos olhos” entre ambos: Ciro e Tebet tiveram juntos 8,5 mi votos (3,6 e 4,9 mi, respectivamente). Bolsonaro ficou em segundo, abaixo 6,18 mi votos de Lula, e precisa do equivalente a 72,6% dos 8,5 mi de Ciro e Simone (e ambos já declararam apoio a Lula!). Um novo debate promete ser acirrado, porém que seja mais sóbrio, como o momento exige.