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sexta-feira, 29 de abril de 2016

O RATO DE BOSTON

A autodestruição pelo desespero

The New England Conservatory of Music
Sempre recorro a um curioso fato real do passado para compreender certas situações na vida. Aconteceu assim: ao chegar em Boston, para estudar, morei primeiramente em uma das cidadezinhas do entorno, chamado Nova Inglaterra, todas com nome de pequenos burgos ingleses. O local, aprazível, jeito de cidadezinha inglesa, chama-se Brighton. Porém, como o inquilino que me cedera temporariamente o espaço retornaria de uma viagem, aproveitei mudar-me para o Centro, mais precisamente para a rua do New England Conservatory, onde passei a estudar. Longe da tranquilidade de Brighton, o nada bucólico Centro.

A bela Gainsborough St. 
Como tinha que viver com ralos dólares por mês e o dinheiro me obrigava a uma vida franciscana até que pudesse me colocar no mercado de trabalho, aluguei um apartamento em um prédio central bem antigo, coisa de uns 30 m2. Típica construção inglesa, bem antiga, tijolos aparentes, janelas protundidas (bay windows), prédio de 4 andares como todos os demais ao longo dos dois lados da rua Gainsborough, atrás do Symphony Hall, casa da Sinfônica de Boston.

Graffiti em prédio de NY
Ratos e camundongos infestam as grandes cidades americanas, chegam a somar o equivalente a 25% das pessoas em NY (em Boston a cifra é parecida). Ratos, os temíveis rats, chegam a ser enormes e asquerosos. Já os segundos, os camundongos, são muito bem tolerados, há que se conviver com eles: os “mice” (plural de “mouse”), não tão simpáticos quanto o Mickey e a Minnie, são nojentinhos e ariscos.

Os muitos meses de frio, as paredes ocas com lã de vidro ou outro material “aconchegante” e ideal para armar ninhos e colônias, tudo convida os pequenos roedores a se instalarem em todos os lugares dos prédios e casas, em uma quantidade que desafiaria qualquer censo do mundo.

Eugene O' Neal
O episódio que vou narrar aconteceu logo na primeira noite no apartamento em que, mal acomodado entre um colchonete sobre caixas de leite, meu instrumento, “meus discos e livros e nada mais”, como diria o saudoso Zé Rodrix, bom de música e de papo, vi-me às voltas com um acontecimento realmente inusitado: não conseguia dormir, por conta de uma interminável sequência de ruídos estranhos, um allegro ma non troppo percussivo e cadenciado, um flip-flop-pof, flip-flop-pof, em “longa jornada noite adentro”, parafraseando o título da peça do dramaturgo O’ Neal (morto na mesma Boston no ano em que nasci!).

Lá pelas tantas, o barulho ainda me perseguia, e necas de dormir: flip-flop-pof, flip-flop-pof, flip-flop-pof, só que agora com um gradual ritardando, mais e mais lento, o movimento cadenciado havia perdido a dinâmica, o volume e o ritmo. Assim que começou a clarear, já desistido do sono, levantei-me para fazer café, e aquele flip-flop-pof havia se transformado em um “largo” musical, andamento ainda bem mais lento: flip...plof...pof, repetido agora com muito pouco vigor, até esmaecer, smorzando, diria um compositor, para, enfim, cessar.

De manhã, após fazer o café, ao jogar o filtro de papel no latão de lixo da cozinha vi que lá dentro estava um pequeno rato, que havia caído e tentara escapar da arapuca das paredes altas da lata a noite inteira. Estirado e mortinho da silva (daí o irritante flip-flop-pof: foram incontáveis saltos no desespero!). A luta para tentar sair, debater-se em esforço desesperado, saltar insanamente para, em esforço inútil, galgar a imensa muralha do latão de lixo.

Fiquei um pouco chocado, e a cena me levou a algumas reflexões: o que realmente se passara? Não matei o rato, não o envenenei, não tinha ratoeira, sequer sabia que havia um rato preso na lata de lixo. De fome também não foi, pois havia alguns restos na lata e ele sobreviveria com facilidade até ser encontrado – ou, tarefa impossível, fugir. Mas como morreu? Foi mal súbito? Em um jovem roedor? (Com o bichinho já defunto, referia-me a ele quase como velho amigo da casa) Pois se não foi de morte matada ou morrida, como disse o poeta João Cabral, o que foi?

Platão e sua Alegoria da Caverna
Demorou muito para elaborar essa “teoria”, ou essa “alegoria” à avessas. (A alegoria é uma narrativa imaginária para lançar a ideia de outro fato, mas a história do rato era real como nunca, daí esse “às avessas”, do real ao imaginário. Já a teoria é um princípio básico artístico ou científico já posto à prova). Como autor sem pretensões literárias, filosóficas e muito menos psicanalíticas, tomo a palavra teoria emprestada e guardo o acontecimento misterioso como uma pequena e recorrente reflexão que ressurge, em certas situações. Atualmente, creio que presenciamos uma delas.


O rato morreu de desespero, desgosto, o brutal insucesso nas suas tentativas de escapar de um final longo, mas iminente. A cada salto, o cansaço lhe diminuía chances. Hoje, diante de situações que evocam certa similaridade com a breve história bostoniana – desta vez, sim, fazendo dela uma alegoria (“a história se repete, da segunda vez como farsa”, disse o velho pensador alemão) -, lembro-me do “rato de Boston”, sem querer que ninguém morra de verdade, claro! Serve para observar meu autocontrole, fazer correções de rumo e para analisar atitudes desesperadas e nem sempre explicáveis de pessoas que já encontramos ou haveremos de encontrar ao longo da vida, na história universal e nas crises de nosso país, tropeçando e caindo nas pedras que elas próprias jogaram em seu caminho. 

sexta-feira, 22 de abril de 2016

O IMPOSTO DE RENDA E MARK TWAIN

Mark Twain 
 “Quando pequeno, lembrava-me de tudo: do que realmente aconteceu e do que nunca acontecera. Porém, minha capacidade está decaindo, e logo vou lembrar-me apenas do que nunca acontecera”. Meu pai disse essa frase algumas vezes, algo a ver com a realidade interior e o passado que ele levava para seus livros. 

A curiosidade dessa menção de meu pai à frase de Mark Twain (de quem falaremos adiante), que construiu suas aventuras na fictícia cidade de Saint Petersburg, tudo a ver com a Hannibal (Missouri) de infância de Twain. A inegável influência em William Faulkner (que nutria por Twain grande admiração) sobre a obra de meu pai, veio da "corrente de consciência" que este último tomara de Proust. Como Twain, Faulkner também teve seu condado imaginário, Yoknapatawpha. No caso de meu pai, quase todos os romances se passam em uma também imaginária cidade mineira, Duas Pontes. Com Twain, Faulkner e Joyce. Claro, nenhuma dessas ligações foi por acaso)


A frase está em “A autobiografia”, do norte-americano Mark Twain (1835-1910), um dos escritores mais reverenciados da história. Seu “As aventuras de Tom Sawyer” (1876), é um apanhado da infância, ao sabor da frase com que iniciei este artigo. Ele mesmo, personagem de sua imaginação que iria pontuar seus personagens, nas “Aventuras”, apresenta Hucleberry Finn, seu amigo de traquinagens, que era uma espécie de nome de fantasia literária para seu amigo vagabundo, pilantra e maltrapilho, o garoto Tom Blankenship, na vida real. 

"Huck" Finn
“As aventuras de Huckleberry Finn” (1885) se tornaria, depois, um de seus livros mais importantes. Envolto nesse misto de “fantasia real” e realidade, Mark Twain – na verdade, pseudônimo de Samuel Langhorne Clemens – é recomendado para todas as idades, boa leitura para os jovens de ontem e de hoje. Por tão cativante, envolveu-me entre as leituras de criança, refletindo-se em minhas próprias imersões nos fatos que, em minha meninice, realmente existiram, quer tenham ou não acontecido.
Casa de Tom ("Huck" Finn)

Lembrei-me disso tudo porque recentemente, em uma noite de pouco sono, busquei distrair-me retirando da estante ao acaso, para folhear, “Estórias curtas britânicas e americanas” (British and American Short Stories). Story significa “estória”, conto, ao passo que history se refere à história, como ciência, disciplina. Guimarães Rosa (1908-1967) escreveu “Primeiras estórias” (1962) e “Estas estórias” (1969). Eu, sem pretensão de chegar à sombra de ambos, publiquei “Pequena estória da música” (1992), brincadeira com o título “Pequena história da música”, do Mário de Andrade. Bons dicionários, como o Houaiss, ainda conservam a palavra, enquanto outros pretendem condená-la à extinção, péssimo costume brasileiro de empobrecer nossa língua, enquanto acrescentam neologismos bobos como “deletar”.

"A única diferença entre o cobrador de imposto e 
o embalsamador é que o segundo deixa a pele"
Meia volta e ao tema, o conto “O homem do Imposto de Renda” (The Income Tax Man), de Mark Twain. Narrado na primeira pessoa, traz elementos que sugerem ao autor papel de personagem, mas não deixa clara a identidade no narrador, apesar de falar na primeira pessoa. Portanto, ao descrever, em breves linhas, a narrativa do conto sem unir autor e personagem, mas deixando entrever um elo de ligação, usarei simplesmente a inicial M., tanto faz se o próprio Mark ou uma sua criação.

O fiscal do Imposto de Renda (por Leonard Rosoman)
Certo dia, M. recebeu a visita um homem que se identificou como assessor – palavra que em inglês também quer dizer cobrador de impostos -, a quem, ora em diante, chamarei apenas “C”. Sem saber o que o C. exatamente fazia, e pensando que fosse uma espécie de negociante, M. perguntou se ele estava abrindo algum negócio na vizinhança. O diálogo desenvolveu-se com palavras curtas. C.: Ahã. M.: Como vai o comércio? C.: Bem. Hábil e ardiloso, o visitante ensaiava uma aproximação, um jogo como em “crescendo” musical nas palavras e frases da narrativa interior envolvente de Twain (que lembra Faulkner, que o considerava “o pai da literatura americana”).

Não tardou, e C. logo foi abrindo as cartas: você imagina quanto eu ganhei em conversas com pessoas neste inverno e primavera? M.: dois mil dólares, talvez? (16 mil dólares, atualizados, ou R$ 56 mil, ao câmbio de hoje. A partir daqui, todas as cifras serão atualizadas pela inflação americana do período e convertidas em reais). M. logo se corrigiu: não, isso seria muito, talvez uns R$ 42 mil. C. deu boas risadas. Pois foram quase R$ 120 mil! M.: estou impressionado, você ainda diz que não é tudo?

Continuando a exibir seus rendimentos, C. disse que vendeu 95 mil cópias de seu livro “Os inocentes no estrangeiro”. (Agora, pausa. Este é o enigma e sua chave que não o abre nunca: trata-se do livro mais vendido do próprio Mark Twain! Seria aquele um diálogo do autor consigo mesmo?). C.: rendeu R$ 11.270.000, e a mim cabe a metade! E levantou-se, como fosse embora, entregando a M. um envelope, dizendo que ficaria feliz em poder ajuda-lo. Abrindo-o, M. viu que se tratava de sua própria declaração de renda, e C. disse que ele deveria declarar R$ 6 milhões. Pelo índice de taxação do governo (5%, na época), ele teria R$ 300 mil de imposto a pagar. Mas haveria ainda o desconto-padrão.

C. colocou seus óculos, pegou uma caneta e começou a calcular as deduções para M.: perdas com acidente, fogo em sua propriedade e outros. Prejuízos imobiliários, animais perdidos no incêndio, aluguel do imóvel, reparos e melhoramentos. Ao final dessa mágica contábil, C. mostrou-lhe que seu imposto devido seria de apenas R$ 35 mil.

E não é só, continuou. Seu desconto-padrão é de R$ 30 mil, portanto o imposto a pagar, depois de todas aquelas contas, seria de apenas R$ 5 mil! (Enquanto ouvia, M., perplexo, vira o filho de C. sacar uma nota de R$ 50 do bolso, e logo guardá-la. Teve certeza de que o menino, se perguntado, saberia mentir sobre o quanto ganhou). Você trabalha com essas tantas “deduções” todos os anos, senhor? Claro, caso contrário eu seria “um pobre mendigo sustentando este governo perverso, cruel e pavoroso”, respondeu-lhe C., que M. já achava ser o homem mais rico da cidade.

Resolvido, M. foi à agência da Receita e atestou a veracidade de “mentira após mentira, truque após truque, maldade após maldade”, até sua alma ficar "encoberta por polegadas e polegadas de falsas declarações, e seu respeito próprio desaparecer para todo o sempre”.



Mark Twain

sexta-feira, 15 de abril de 2016

BRASIL: FIGA, SAL GROSSO, ALHO,

FERRADURA, PÉ DE COELHO, ESCAPULÁRIO...

Superstições são crenças, e, assim como os amuletos, existem e existiram em todos os lugares, culturas e épocas da humanidade. Servem a inventar coisas que não há para explicar o inexplicável, dotar objetos e seres vivos de poderes que não têm. Surgem da ilusão de se estabelecer uma relação causal entre fatos e coisas – tanto as que já aconteceram quanto as que se deseja que aconteçam - ou, ao contrário, as que se espera nunca aconteçam. Às vezes, é uma mentira engendrada para se evitar algo, a exemplo de "não se deve tomar leite e comer manga". Essa crença, bem brasileira, foi instigada pelos senhorios nos escravos, porque nas fazendas as mangueiras abundavam, cresciam como capim, se dizia. E o leite era privilégio das famílias brancas, nas casas grandes. Assim, como sobrava manga, principal alimento dos escravos, virou verdade a mentira de que a mistura poderia até matar. A ameaça podia estender-se a outros frutos, a depender do plantio local.
O hamsa é um amuleto que vem da Cartago das guerras púnicas, e, pendurado na porta, afastaria o mal da casa. Em árabe, a palavra quer dizer cinco, e o formato do objeto simboliza uma mão, geralmente bem pintada ou decorada com pedras e pingentes. Está presente também na cultura judaica, apelidado Shin, letra do hebraico, simbolizando Shaddai, “o Todo-Poderoso”.
Espécies de escapulários judaicos
A tradição católica criou proteções bem particulares, como os escapulários e ágnus-dei (medalhão de cera), aqui de herança portuguesa. Na cultura não-religiosa cristã, há os patuás (espécies de “bentinhos”), talismãs, figas e os já mencionados pés de coelho.

Esses últimos têm origem na Idade Média: os moradores das vilas, no inverno, abrigavam em suas casas esses animaizinhos, ótimos para aconchego e aquecimento. Na Grã-Bretanha, os coelhos, na crença celta desde antes de 600 a.C., eram tidos como animais da sorte, daí o hábito de, após um deles falecer, carregar um pezinho consigo para a rua, como proteção onde for.
O trevo (oxalis tetraphyla) de quatro folhas traz boa sorte, e é associado a Saint Patrick, bispo do século 14 e patrono da Irlanda, mas vem de bem mais longe, dos druidas celtas, sacerdotes cujas origens vêm de séculos antes, entre os romanos.



Druidas

O sal é um elemento de diversos significados. Do lado católico, a crença tem origem no oriente, como força que vem da terra. Serve de proteção, afasta mau-agouro e protege – haja vista seu uso no batismo, costume da tradição apostólico-romana. É comum ouvir falarem “vai passar sal grosso na cabeça”, ou “vá tomar banho com sal grosso”, e até que comer sal em casa de alguém sela uma amizade. Outra virtude do velho cloreto de sódio: é fertilizante. “Vós sois o sal da terra” (Mateus, 5:13). Por outro lado, derramá-lo na mesa traz malefícios, e no catimbó (feitiçaria que mistura elementos negros, indígenas e católicos), segundo o folclorista Luís da Câmara Cascudo, é poderoso no trabalho de preparação do mal. Segundo ele, reza a lenda que cobrir com sal a pegada de uma pessoa na areia é feitiço praguejador que só pode ser desfeito com água do mar, em uma espécie de ritual.
A figa (do provençal francês, “figo”), por sua vez, tanto pode ser feita com a mão fechada, polegar entre os dedos indicador e médio, ou vir representada para servir de amuleto da sorte e contra mau-olhado. Segundo Moacyr da Costa Ferreira, há uma versão caipira chamada ‘mão carnuda’ (cheia), com os dedos indicador e mínimo estendidos e os demais fechados, e serve para afastar o mal e ajudar na fertilização da mulher.
Curiosamente, este é também o gesto de saudação dos adeptos do rock “heavy metal”, mas certamente no caso evoca um dos símbolos de rituais de morte ou satânicos, que eles tanto dizem cultuar pour épater la bourgeoisie (chocar a burguesia, no jargão dos estudiosos), haja vista nomes de grupos como “Madame Saatan”, “Sepultura” e “Black Sabbath”.
A ferradura é outro amuleto do bem, pois além de proteger as patas do cavalo, entre os homens atrai felicidade e repele o mal. Símbolo de proteção, o amuleto vem dos mesmos velhos druidas, em suas práticas religiosas na Idade do Ferro, mas a ferradura só funciona se for encontrada ao acaso na rua e depois afixada na porta de casa, crendice de longa data que chegou a nós vinda da Europa durante a colonização. Nos escritos de Plutarco (46 a 120 d.C.), o ferro teria poderes mágicos, e era chamado “o osso dos deuses”, donde talvez a origem do amuleto.
Já o alho teria o poder de afastar vampiros, lobisomens, mulas sem cabeça e caiporas, e seu uso benéfico vem do Egito antigo, passando pelos países eslavos, especialmente a Romênia, onde fica a Transilvânia – sim, a do Conde Drácula.
Eu, sinceramente, não sou chegado a crendices ou emprestar poderes a símbolos e objetos. Passo por baixo de escada – claro, se o pintor não estiver em cima com uma lata de tinta -, cruzo caminho de gato preto, tomo sorvete cremoso de manga, deixo bolsa no chão... mas quando as coisas estão tão feias, mas tão feias, tanto quanto agora, passo a adotar aquela velha máxima galega (de Galiza, noroeste da Espanha): Yo no creo em las brujas, pero que las hay, las hay. Além de lutar com suas mãos e palavras por um futuro melhor, vale cada um se apegar a seu Deus, credo, crença, e até se preciso amuletos. Não creio que funcionem, mas que existem, existem. Ou ao menos podem ajudar a torcer e alimentar esperanças no futuro.




sexta-feira, 8 de abril de 2016

GÊNESIS, DILÚVIO, NOÉ E O FUTURO DO BRASIL

Parece que as coisas andavam mal na Terra, bastante mal. Os homens haviam passado os limites do permitido. Desonestidade, perversão, iniquidade, desavenças, maldade. Como primeira punição, Deus ensaiou de limitar a vida humana a apenas 120 anos. Os malfeitos do homem na terra tanto incomodaram ao Pai que ele achou que era hora de uma solução radical: exterminar toda a humanidade, e com ela os animais, pequenos ou grandes, as aves, répteis (Gênesis, 6:7). Enfim, toda a vida na terra.

Noé (Noach, do hebraico), porém, era um homem correto, andava com Deus no coração (era dele descendente direto, pois que, conforme o sagrado Pentateuco, era filho de Lameque, este de Matusalém, filho de Enoque, que viera de Jarede, cujo pai foi Sete, filho de Adão, e este de Deus). Constituiu família honrada, com mulher e três filhos, Sem, Cam (“Cham”) e Jafé. De Sem, “pai da raça branca”, descenderam os chamados semitas, que foram os assírios, aramaicos, fenícios, árabes e hebreus, os principais. De Cam, “pai da raça negra”, vieram os camitas, que compreendiam os povos e tribos do Saara setentrional às Ilhas Canárias, do norte da África ao Sudão e Egito, da Líbia ao Chade. Finalmente, de Jafé, “pai dos persas e indianos”, descenderam os jaféticos, que alguns chamam jafetistas.

Árvore de gofer
Porém, crendo na pureza de Noé, Deus confidenciou-lhe que um dilúvio sem proporções haveria de cobrir a terra até que todos os seres vivos desaparecessem, e que ele, Noé, deveria construir uma embarcação, e foi cuidadoso até nas instruções de como fazê-lo, para suportar tanto tempo durante o monumental castigo: “você, porém, fará uma arca de madeira de gofer; divida-a em compartimentos e revista-a de betume por dentro e por fora” (6:14).

Reconstituindo a arca
O cuidado divino chegou às dimensões necessárias para a obra: “faça-a com trezentos côvados (135 m) de comprimento, cinquenta (22,5 m) de largura e trinta (13 m) de altura” (6:15). Foi criterioso até nos detalhes do que tinha em mente, já que deveriam suportar a longa a jornada: uma embarcação de dimensões jamais vistas (cerca de 8.900 m²). Detalhou o teto, com as devidas medidas, a rampa e os três andares da nave (6:16).

Noé prometeu a Deus total obediência, e seguiu à risca as instruções recebidas. Temendo o fato de que todos os seres vivos sobre a Terra pereceriam, Noé agradeceu o Senhor e chamou sua esposa, três filhos e suas mulheres, que com eles começariam o repovoamento do mundo (6:18). Prosseguiu escolhendo casais de animais, para que com ele sobrevivessem. 

“De cada espécie de animal grande e de cada espécie de animal de pequeno porte que se arrasta no chão virá a você um casal, para que sobrevivam com você” (6:19). E foram sete casais de cada espécie. (Na Cabala judaica, sete é o número dos que gostam de mudanças e viagens. Os números do Gênesis – aliás, como tudo o mais no Antigo Testamento -  têm um significado, e eles se repetem várias vezes nas escrituras. A Cabala é pródiga desses códigos).

Noé tratou de acomodar na arca suprimentos que mantivessem todos vivos, durante o tempo necessário à sobrevivência ao dilúvio, de acordo com o que Deus lhe havia determinado (6:22). O Pai ordenou-lhe, também, que cuidasse de todos os detalhes, pois o dilúvio duraria nada menos do que quarenta dias e quarenta noites, até que desaparecessem da Terra “todos os seres que eu fiz” (7:4). E Noé tinha paciência, pois já tinha seiscentos anos de idade, e aquilo seria um sacrifício passageiro (7:6).
Déluge (óleo de Konstatinovich, 1864

Em sete dias, como determinara Deus, um volume enorme de água se abateu sobre a Terra. Os céus se abriram despejando o dilúvio, que terminaria em cento e cinquenta dias (na Cabala, o somatório dá 6, número da harmonia, do equilíbrio e da justiça). As águas foram se avolumando e, conforme previsto, a arca começou a elevar-se da Terra, flutuando (7:18). Todas as montanhas, até as mais altas, ficaram encobertas, só se via água. E tudo o que tinha “fôlego de vida” morrera (7:21).

O Ararat
“No décimo sétimo dia do sétimo mês - na Cabala, somando seis (1+7+7 = 15 = 6), número da vitória, da superação e do futuro de prosperidade, a arca repousou sobre o Monte Ararat” (8:4). Deus então refletiu: "Nun­ca mais amaldiçoarei a terra por causa do homem, pois o seu coração é inteiramente inclinado para o mal desde a infância. E nunca mais destruirei todos os seres vivos como fiz” (8:22).

Uma vez repovoado o mundo, sem mais ameaças de destruição, coube aos homens que desembarcaram da arca reedifica-lo, mesmo que, conforme o texto do Gênesis do Pentateuco, Deus tenha dito que “o coração (do homem) é inteiramente inclinado para o mal desde a infância”. Cito, outra vez, meu romance favorito do Machado de Assis, Dom Casmurro, em seu capítulo IX, “A Ópera”, um raio de lucidez e conhecimento da virtù: Deus escreveu a partitura, mas quem rege é o diabo. (E não é o que os descendentes de Noé, então, fizeram tudo mais uma vez?).

Se o leitor está se perguntando onde entra “o futuro do Brasil” do título deste artigo, sinceramente não sei. A quem será permitido embarcar na Arca? Os escolhidos, os justos, que se preparem para navegar no dilúvio, até que ao fim do prazo baixe a água. Até porque, mesmo que se lute pelo melhor, o futuro “adeus” pertence, reinventando o dito popular.


[Textos do Gênesis extraídos da Bíblia de 1681 de João Ferreira de Almeida, primeira tradução dos cinco idiomas originais diretamente para o português]

sexta-feira, 1 de abril de 2016

O BRASIL DO CAVIAR, COXINHA, PÃO COM OVO OU MORTADELA



O famoso caviar Petrossian
Para entender o Brasil de hoje, os neologismos políticos e a tendência de rotular pensamentos 
e comportamentos, fui pesquisar o significado de “direita coxinha”, “esquerda caviar” e “pão com ovo”, além de outras denominações. Achei por bem consultar os universitários, como dizia um apresentador de TV, e indaguei minha filha Isabela, aluna da USP, que é o melhor lugar para se pesquisar e criar teorias, mas fértil também nos neologismos e modismos. Cheguei a uma breve Taxonomia do Coxinha, do Caviar e do Pão com Ovo.

Gráfico taxonômico
Taxonomia, segundo o Houaiss, é “ciência que lida com a descrição, identificação e classificação dos organismos”, e no caso brasileiro, serve também para classificar produtos alimentícios animais. Esquerda caviar (gauche caviar) é - claro - expressão francesa dos anos 1980, e se refere aos ‘socialistas’ que desfrutam dos melhores vinhos e iguarias finas nos bistrôs e cafés parisienses.
Assembleia Francesa pré-revolucionária
O conceito histórico de esquerda e direita foi esboçado na Assembleia Francesa pré-revolução: os nobres e a alta aristocracia partidários do Império de Napoleão sentavam-se à direita, para evitar atritos com a ala contrária, progressista e republicana - tal qual nos estádios de futebol hoje se aglomeram torcidas em lados diferentes, para evitar tumultos. Monarquia-República quase 230 anos atrás, Corinthians-Palmeiras hoje.


Disponível gratuitamente em e-books ou download
A definição moderna do termo esquerda consolidou-se com o socialismo “real”. Friedrich Engels (1820-1895) foi um historiador e filósofo marxista e depois um de seus maiores influenciadores. Lênin (1870-1924) escreveu um marco sobre o assunto, “Esquerdismo: Doença Infantil do Comunismo” (1920), pintando a esquerda como, diriam hoje, ingenuidade “sonhática” – a do sonhador pragmático, outro neologismo recente -, de mãos dadas com a burguesia (o que é isso, companheiro?). Segundo Lênin, os esquerdistas eram obstáculo ao progresso do socialismo e do comunismo – este último, versão do primeiro implantada pela força. Grande maioria dos que hoje se dizem de esquerda por puro modismo ficariam arrepiados ao ouvirem isso.

A III Internacional Comunista
A II Internacional Socialista (1889) isolou os esquerdistas, diagnosticando-os desde então com alguma coisa como a “doença infantil” do comunismo, que Lênin viria expor mais adiante. Enxergavam o chamado “sarampo” nos social-democratas, trabalhistas e liberais. A III Internacional (1919/1943), chamada Comunista (Komintern), definiu quem é quem no movimento e radicalizou posições.

Anarquistas italianos 
Curiosamente, a social-democracia, que já andou de braços com socialistas no passado, é expressão que faz a nova esquerda brasileira ter arrepios, jogando-a na vala comum da “direita coxinha”, essa disputa entre quitutes de frangos e ovas de peixes (no caso, o caviar dos esturjões), classificação que poderíamos dizer político-estruturalista-culinária. Essa “direita coxinha” refere-se aos que não comungam a integridade dos mandamentos, nunca escritos, da nova esquerda. Tutto sociale-democrazia, diriam hoje os anarquistas italianos do passado, jogando a nova esquerda e os coxinhas em um mesmo saco (o que é isso, companheiro?). Já o “esquerdopata”, outro neologismo, teria o perfil do socialismo utópico de certos filósofos e acadêmicos.
O “direita coxinha” é conservador e tem imagem e hábitos burgueses, enquanto a “direita pão com ovo” fica com as migalhas da parca distribuição de riqueza e recente maior acesso aos bens de consumo, mas nunca vai concretizar seus sonhos de ser milionária ou grande empresária capitalista. Bem como a cabrocha em ascensão social do Chico Buarque: “Você era a mais bonita das cabrochas desta ala / você era a favorita onde eu era mestre-sala / hoje a gente nem se fala / mas a festa continua / suas noites são de gala / nosso samba ainda é na rua” (Veja e ouça abaixo).

O XX Congresso do Partido Comunista da URSS
O Brasil seguiu a reboque das tendências da III Internacional e acompanhou o “racha” do XX Congresso do Partido Comunista da URSS. Aqui, partidos socialistas e comunistas dividiram-se, e cada parte subdividiu-se em tendências. Porém, com a redemocratização e a legalização dos partidos proscritos, o comunismo perdeu seu sentido histórico: o socialismo implantado pela ditadura do proletariado (classe operária), o fim do poder econômico, a implantação de um partido único e a propriedade coletiva dos meios de produção. Comunismo e fascismo, goste você ou não de qualquer um deles (ou ambos), não são designações superficiais, vagas nem adjetivos. São filosofias baseadas em vasta literatura e estudos, tratados, discussões, e não tendências dispersas e self-service como simplesmente dizer-se (ou de alguém) “de esquerda” ou “de direita”.
Marx e Engels, autores do Manifesto Comunista
Uma vez registrados na Justiça Eleitoral como partidos legais, disputam pelo voto cargos eletivos e aceitam ou pleiteiam até mesmo posições de confiança em governos à sua direita. Do comunismo ficou apenas o nome e a grife, venceu-o o interesse pelo poder de seus filiados e partidos, esquecidos os ideais de Marx, Engels e Lênin. 


É oportuno reiterar: o comunismo nunca ameaçou de verdade o Brasil, e isso a história e documentos liberados recentemente (aos milhares) pelos EUA revelam: ele foi um “fantasma” exportado para apavorar a família brasileira e suas Forças Armadas, um ‘Gasparzinho do mal’ criado e alimentado pelo exterior e propagado no Brasil por meio de cooperações sociais e estudantis não muito "canônicas" (como a Aliança para o Progresso e o MEC-Usaid). Jango e sua pueril aproximação com o sindicalismo, brincadeira se comparada nos dias de hoje com alguns partidos e as centrais sindicais, não ameaçava coisa alguma e nem sabia o que era comunismo. Seu fatídico e histórico Comício da Central do Brasil hoje seria algo light, coisa cotidianaNem o singelo e naïve (se comparado aos dos dias de hoje) discurso do deputado Márcio Moreira Alves poderia ser usado como estopim para a derrubada da democracia, ao lado do comício de Jango. Foi uma questão tática, como foi a informação vazada sobre a "derrama", para o início da derrocada da Inconfidência Mineira - "hoje é o dia do meu batizado", foi a senha dos inconfidentes.

Trama do golpe: Carlos Lacerda, Gen. Cordeiro de Farias
o US Gen. Vernon Walters, frequentador da casa
de Castelo Branco antes, durante e depois de 1964
Nos anos pré-1964 houve forte presença de militares (Gen. Vernon Walters, adido militar no Brasil, vice-presidente da CIA) e diplomatas americanos (Lincoln Gordon, embaixador, um dos articuladores do golpe e implantador da "Aliança"). Recentemente, documentos sobre os anos 1970 liberados pelos EUA e entregues à Casa Civil da Presidência e à Comissão da Verdade mostram que a "inteligência" e o governo norte-americanos eram informados sobre os desaparecidos e mortos pela repressão - coisa que no Brasil era uma incógnita devido à censura total. Os EUA buscavam o controle tático da América Latina na guerra fria contra a URSS. E foi Lincoln Gordon, no Salão Oval da Casa Branca, quem recebeu US$ 8 milhões (uma fortuna, há mais de 50 anos: U$ 62 mi, ou R$ 224.000.000) e o aval para dar luz verde aos militares brasileiros para desencadear o golpe, em 1964. Com a promessa de que a Casa Branca reconheceria o novo regime no dia seguinte. (Tudo documentado nos papéis entregues há dias - era julho de 2015 - ao governo brasileiro por ordem de Barak Obama). 

Goulash
Por fim, a criatividade política brasileira abre caminho para desdobrar-se até em novas culinárias. Não preciso dizer que não compartilho desses rótulos e acho infantis e ridículas as interpretações depreciativas de esquerda e direita de que se servem à mesa: “caviar”, “coxinha” e “pão com ovo”. Não fosse a enorme diferença de preço entre as mercadorias, seria algum meio termo político uma mistura dessas iguarias? Isso, sem falar no mais recente "pão com mortadela", o manifestante profissional ou de cabresto, que vai às ruas a troco de uma ajuda de custo mais um lanche de pão com mortadela. 

Pizza de frango com Catupiry 
Afinal, em um país onde se come pizza de frango com Catupiry até em bons restaurantes (perdono, vecchia Italia), poderia haver até coxinha com caviar e ovo. Um pot-pourri, ola odrida, goulash (misturada de panela)! O grande Jackson do Pandeiro já cantava: “...chicletes eu misturo com banana / e o meu samba vai ficar assim”. (Veja e ouça abaixo)